1. Quadragésimo nono episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 2 de Fevereiro de 2013:
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (50)
A foto com que o Cifra inicia este texto, veio-lhe parar às mãos, na região do Oio, na então província da Guiné, nos
anos de 1964/66.
Não sabe se são mesmo guerrilheiras, ou se é
somente uma foto para impressionar, mas ambas mostram uma cara
com alguma angústia, também não sabe se foi o Cifra que a tirou,
nas suas andanças de fim de mês, na entrega de material
classificado de cifra, pela região onde estavam as forças
militares que pertenciam ao seu agrupamento, que estava
estacionado em Mansoa. O Cifra acredita que foi ele que a tirou,
mas não sabe em que situação ou em que lugar, ou se estava mais
algum militar com ele nesse momento com máquina fotográfica,
sabe que foi na região do Oio, e talvez em Mansoa, Mansabá,
Bissorã, Olossato, Cutia, Nhacra, Encheia, ou qualquer outro
lugar, na região do Oio ou próximo. As armas que elas seguram
são parecidas com as que as milícias usavam, e que acompanhavam
os militares, servindo de guias tradutores. Se os antigos
combatentes, que nessa altura lá se encontravam e souberem a sua
proveniência, por favor contem a história, o Cifra e os demais
agradecem, oxalá que ainda estejam vivas, e esta fotografia, é
uma homenagem de respeito e apreciação, pelo seu sofrimento e
pela sua coragem, não só delas, como todas as mulheres africanas
que de uma maneira ou de outra estiveram envolvidas no conflito,
e é assim que deve ser vista.
Agora vamos ao texto:
O Cifra, entende que nos relatos em
que lembramos as nossas memórias, os homens, antigos
combatentes, sempre falam de si, contam isto e aquilo, às vezes
até criam um certo protagonismo. E então as mulheres, não
estiveram por trás dos homens, não sofreram, não sentiram a
ausência, não ficaram viúvas, não ficaram sem noivos, namorados,
filhos, irmãos, netos, não choraram a ausência do marido, não
ficaram sozinhas, às vezes com filhos bebés? E não foram só as
mulheres dos militares europeus, foram também as mulheres
africanas, das famílias dos guerrilheiros, isto é uma verdade,
que alguns de nós, mas infelizmente poucos, ainda lembramos.
Somos sobreviventes de uma guerra horrorosa, que não
desejo, em nenhuma circunstância, se volte a repetir, mas vou
mencionar algumas passagens de relatos de textos anteriores,
onde o Cifra fala da mulher, portanto cá vai:
“Na aldeia havia somente uma mulher, magra, já de uma certa idade, nua da
cinta para cima, com algumas argolas em volta do pescoço, servindo de enfeite,
talvez. Estava sentada, ao lado de um balaio de arroz com casca, com as mãos ao
lado da cara, falando aflita, numa linguagem incompreensível, e de vez em
quando, tirava as mãos da cara, fazia gestos para a frente, ao mesmo tempo que
balançava o corpo para a frente e para trás. Na sua frente, estavam duas crianças,
também magras e nuas. Estas três pessoas, eram no momento, os habitantes da
aldeia.
Os soldados africanos, chamados pelo alferes, para traduzirem as palavras da
mulher, diziam:
- Ela se lastima, por os militares lhe terem morto os seus dois filhos, e diz para
se irem embora, que aqui não há mais ninguém. Também diz que tem quatro
filhas, que desapareceram um certo dia pela madrugada, e que as visitam de vez
em quando, pois neste momento eram guerrilheiras, transportadoras de material
de guerra”.
E agora, outro relato tirado de outro texto:
“Em Portugal, o Cifra, visitou a família deste militar, por diversas vezes. Era
de uma aldeia da serra da Estrela, tinha uma irmã e um irmão, ambos casados. A
mãe andava sempre vestida de preto e dizia:
- Ainda não fui, mas não tarda muito tempo. Sou viúva duas vezes, do meu
Joaquim, que Deus lhe guarde a alma em descanso, e do meu António, que era a
cara do pai, quando nasceu, e que foi dar o corpo às balas, e que morreu na guerra,
lá na África. E mostrava sempre o farrapo do camuflado ensanguentado, que o
Cifra lhe mandou, e a fotografia do António, que beijava e encostava ao coração”.
Estes relatos exprimem dor, angústia e sofrimento, da
mulher, tanto africana com europeia, e o Cifra acredita, que não
existe nenhum ser humano, por mais estudos e experiência que
tenha, que esteja qualificado para analisar o que ia na mente
destes seres humanos, que perderam os seus entes queridos.
Só para terminar, o Cifra fez o arranjo desta foto que é
uma simples homenagem À MULHER, que de algum modo, esteve
envolvida no conflito, tanto africana como europeia, que colocou
frente-a-frente, os militares de Portugal contra os
guerrilheiros que lutavam pela independência do seu território.
O Cifra fez um arranjo com uma cara jovem, não expressando
muita alegria, porque nós também éramos jovens, quando lá nos
encontrávamos, e a nossa família, tanto a que ficou na Europa,
como a que vivia em África, sabendo que os seus estavam
envolvidos num conflito armado, como era de prever, também não
expressavam muita alegria.
____________
Nota do editor:
Vd. último poste da série de 2 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11044: Do Ninho D'Águia até África (49): Eram guerreiros (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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5 comentários:
Caro "Cifra"
Tens toda a razão.
A mulher, as nossas mulheres (mães, esposas, irmãs, namoradas, amigas) e as mulheres 'deles', também participaram na guerra.
Cada qual a seu modo. Mais activas, mais participantes, com mais ou menos dor, mas não foram 'parte menor'.
Obrigado por produzires esta bela homenagem.
Abraço
Hélder S.
Tony
"A mulher e o conflito"!
Quanto sofrimento,quanta dor,quantas lágrimas terão rolado pelas faces da incerteza,do desconhecimento,da saudade,da resignação...
Singela mas linda homenagem a tua a essas mulheres,que em muitos casos ainda hoje sofrem e apoiam os seus entes nas fragilidades ganhas nesses conflitos.
Abraço
Luis Faria
Uma ajuda ao Cifra:
Essa arma não será a Kropatschek Portuguesa, depois substituída pela Mauser ?
Vd. aqui na Wikipédia
http://pt.wikipedia.org/wiki/Kropatschek_Portuguesa
Olá Luis.
Esta arma deve de ser a típica Mauser, que se usava no nosso tempo no Exército de Portugal.
Uma delas, já não tem "bandoleira", talvez por ser mal tratada, o que se compreende, talvez andasse nas mãos, das milícias, ou guerrilheiros, ninguém sabe.
Técnicamente, chama-se "Mauser Karabiner 98 Kurz", ou até "Mauser K98", é fabrico alemão, e entrou ao serviço em 1935, foi usada em diferentes conflitos, como na Segunda Guerra Mundial, na Guerra Civil de Espanha, na Guerra Colonial Portuguesa, e também nas forças armadas de muitos países, principalmente da Europa.
Só entre nós, devia de ser naquela época, uma arma certeira e portanto mortífera. Também se podia adaptar um telescópio.
Um abraço, Tony Borie.
Caro Tony Borié,
Não sei como estas armas foram parar as mãos destas meninas (balantas?), mas na verdade a guerra, na Guiné, assim como toda a violência que dela resultou, estavam exclusivamente reservadas aos homens, tanto de um lado como d´outro.
Na minha aldeia, as espingardas (Mausers) estavam distribuidas à todos os homens válidos, de modo que numa morança podiam existir várias armas.
Não me lembro de as terem usado contra a guerrilha, mas para os mais novos, dava jeito aprender a praticar o tiro. O único problema era depois justificar perante a tropa a utilização das balas que eram distribuidas.
Quando iamos levar os animais (gado bovino) ao pasto, levávamos sempre algumas connosco, mas limitávamos a gastar as munições roubadas no quartel para assustar os macacos fandangos que se refugiavam em cima das árvores.
De resto, a semelhança dos burros
(jumentos) que abundavam na nossa região, também havia mausers boas e más, dependendo da violência dos coices que davam ao atirador.
Um abraço amigo,
Cherno Baldé
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