domingo, 3 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11184: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (39): Uns alunos foram à matança

1. Em mensagem do dia 13 de Fevereiro de 2013, o nosso camarada Belmiro Tavares (ex-Alf Mil, CCAÇ 675, QuinhamelBinta e Farim, 1964/66), enviou-nos mais uma memória do seu tempo de estudante.


HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DE BELMIRO TAVARES

39 - Uns alunos foram à matança

Em princípio de Dezembro de 1960 (poderá ter sido no mesmo mês de 1959, mas de qualquer modo ocorreu há, apenas há uma escassa “meia dúzia” de anos) um grupo de alunos finalistas do COA aceitaram, contentes e alvoraçados, o convite para se deslocarem a Rocas do Vouga, a casa dos meus pais, para participar num almoço diferente do habitual, porque era fora do COA e não só. Esta refeição, chamada localmente, de “rejoada”, ou seja, o prato principal constava de rojões – lombo de porco cozinhado, em nacos de bom tamanho, na própria banha do animal, em panela de ferro e ao lume brando da lareira.

Nos dias de hoje, principalmente no Ribatejo e Alentejo, tal almoço típico, ocorre no próprio dia do abate dos animais (matança) e consta quase só de carne grelhada (febras ou fêveras, costeletas e entremeada).

Naquele tempo, lá na terra, os animais eram abatidos na quinta-feira; ficavam pendurados, para escorrer o sangue, e arrefecer até sábado; neste dia, logo pela manhã, procedia-se à “desmancha” (desfazer, com arte, os animais em pedaços). A carne devidamente cortada era guardada em sal, dentro de grandes arcas (salgadeira) feitas de madeira de pinho ainda verde; não se utilizavam pregos, parafusos ou dobradiças metálicas, pois o salitre corroeria essas peças em tempo curto e as tábuas da arca desconjuntar-se-iam de seguida.

O dia da matança não era escolhido ao acaso; os agricultores tinham em grande conta as fases da lua, não só para matar os animais, mas também para semear cereais e até cortar as árvores cuja madeira eles utilizavam nas suas construções ou reparações.

No espaço de tempo que decorria entre o abate e a própria rojoada, preparavam-se morcelas e chouriças com produtos dos porcos abatidos – morcela com carne e um pouco de sangue; as chouriças eram elaboradas só com carne, tudo temperado a preceito - todos os artigos eram absolutamente frescos, da melhor procedência e de superior qualidade.

O colega José Sá e Sousa, oriundo lá das bandas da Vila da Feira, tinha carro (coisa raríssima naqueles bons velhos tempos); o Armando Figueiredo, creio que não era ainda encartado, mas a mãe emprestou-lhe a sua viatura e lá fomos cinco em cada carro, até quase ao limite interior do distrito de Aveiro.

Quem se lembra de todos aqueles convivas? Eu recordo apenas 8: Sá e Sousa, Reis Ferreira; Armando, Valdemar, Eugénio, Belmiro, Eberl e Ribeiro, havia mais dois; destes o Miller, talvez fosse um deles. Se alguém se lembrar do outro ou se houver imprecisão da minha parte, há que esclarecer.

Chegámos ao local pouco antes da hora aprazada. Solicitei ao Eberl que me acompanhasse até ao canto da eira e perguntei-lhe, apontando para determinada planta ali existente:
- Que arbusto é aquele?

O Eberl ficou surpreendido e comentou:
- Tu não podes ter isto aqui! É absolutamente proibido!
- Não foi isso que eu perguntei! Responde à minha pergunta!
- Isto é a planta do tabaco e não é permitido cultivá-la na Metrópole!
- Eu só pretendia o teu esclarecimento! Sempre ouvi dizer que se tratava de tabaco, mas faltava-me a opinião dum conhecedor.

O Eberl nasceu em Angola, no Pango Aluquem, mais precisamente na fazenda Quenuma Numa e era filho de pais alemães; creio que cultivavam café e tabaco.

Ainda hoje, lá no meu quintal, existem plantas dessas que ali aparecem sem serem semeadas. Até faz lembrar o alecrim. Nesse tempo, a “botica” (remédio de farmácia) tinha por ali pouca utilização; as pessoas vizinhas quando sofriam de determinadas mazelas vinham lá a casa pedir umas folhas de tabaco para curar as suas chagas; diziam que as folhas continham excelentes efeitos curativos.

O padre, como, à época, não podia deixar de ser, também foi convidado. Como era domingo e teria outros compromissos, enviou, em sua representação, a sua irmã que, até era uma solteirona de “profissão”. Bem tentou arranjar partido lá na terra mas não conseguiu.

Logo que nos sentámos à volta da mesa, ela tentou comandar as tropas o que não terá agradado a ninguém. Aí o Ribeiro fez com que ela desistisse da ideia e ela “perdeu o pio”.

Lembras-te, Ribeiro, da anedota que contaste e que a fez encabular? Esta tinha-nos sido narrada pelo Dr. Magalhães Lima, um excelente mestre de matemática do 3º ciclo.

Resumindo: uns anjos, lá no céu, participaram a Jesus que sua Mãe introduzia almas naquele paraíso celeste, clandestinamente, puxando-as por meio de uma corda com nós. Jesus perguntou:
- Sabeis que corda é essa?

E de seguida esclareceu, aquelas celestiais criações:
- É o terço! É através do rosário que as almas pecadoras podem ficar limpas (perdoadas) podendo assim entrar no Reino de Meu Pai!

A senhora Ana, (menina cinquentona), irmã do Padre e certamente conhecedora dos preceitos da Fé, não achou graça alguma ao que ouviu (não lhe chamou blasfémia)! Mas acabado o almoço… desapareceu!

O Reis Ferreira pediu à minha mãe que lhe arranjasse uma “assadura” (um pedaço de carne assada), grelhada nas brasas da lareira; alegou que adorava aquilo e já não comia havia muito tempo.

Iniciou-se o almoço:
1º Prato - cozido à portuguesa – hortaliça colhida no próprio dia e carnes bem frescas.
O meu avô presidia à mesa, ele adorava “passar rasteiras” à malta jovem. De maneira que todos ouvissem, ele avisou:
- Oh! Rapaziada! Isto é o que há! É o nosso almoço e não há mais nada! Cá em casa há só um prato, mas isto dá para todos!

Eu lembrei aos colegas, sem desdizer o meu avô – que participávamos duma rejoada… mas ninguém acreditou no que eu proferi: todos comeram o cozido que nem uns desalmados! Até parecia que no COA se comia mal! Mas aquele cozido era mesmo do outro mundo! Estaria mesmo divinal!

2º Prato – massa meada guisada com carne.
Perante este prato ninguém se alarmou porque… era massa e, como de costume, ninguém apreciava aquilo.

3º Prato – rojões de lombo, arroz do forno, batatas assadas e salada.
O Reis Ferreira foi “aos arames” e comentou descoroçoado:
- Nunca na minha vida fui enganado por um velho, senão hoje! Sinto-me ludibriado; furibundo!

O meu avô adorou aquela brincadeira! Ria-se a bandeiras despregadas, porque tinha enganado os estudantes; durante muito tempo, sempre que se lembrava, comentava comigo aquela “tirada” do Reis Ferreira. Tornou-se célebre! Na verdade, os alunos quase não provaram os rojões, o prato principal que dava o nome ao repasto pois tinham enchido os “bandulhos” com o espetacular cozido.

De seguida colocaram sobre a mesa, à frente do Reis Ferreira, a tal assadura, um bom pedaço de suculenta carne, perfeitamente tostada, doirada, nas brasas da lareira. O jovem Reis Ferreira ficou envergonhado, pois não conseguia comer o que tão delicadamente havia solicitado. No seu estômago não havia lugar para mais… nem uma “assadura” tão desejada.

Todos colaboraram comendo um naco cada um para tirar o Reis Ferreira daquela dificuldade.
Ele sentiu um grande aperto no estômago, mas daquela… lá o safámos.

Já agora a sobremesa também tem de ser citada: castanhas assadas e fruta da época.

Assim terminou um almoço muito diferente do habitual, porque foi servido fora do ambiente colegial e porque, já naquele tempo, a carne dos animais criados em casa era bastante melhor que a carne do talho.

Os porcos abatidos lá em casa tinham sempre mais de um ano e meio quase sempre pesavam mais de 180Kg (limpos) cada; eram umas bestas avantajadas!

Foi um domingo bem passado… em plena liberdade… sem o Correia… nem diretores, professores ou quejandos!

Saudações colegiais
Fevereiro 2013
B T
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 22 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11135: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (38): O Carinhas

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