Durante a vida militar passei por algumas vilas e cidades: Mafra, Lamego, Amadora, Lisboa e Beja. Falarei só das duas mais marcantes, Mafra e Lamego.
Mafra, onde fiz a recruta, foi o assombro, a desilusão e a revolta.
O assombro foi o Convento de Mafra aquele edifício imponente que o rei D. João V, qual brasileiro rico, mandou construir com ouro do Brasil, para sua honra e glória, tal como os "brasileiros" ricos construíram palácios mais modestos naturalmente nas suas terras de origem.
O Convento enorme na parte superior da vila de Mafra parecia ter toda a terra ajoelhada em sua adoração e homenagem. Lembro-me de Mafra com algumas ruas largas que iam desembocar ao largo do Convento, com alguns cafés grandes cheios de recrutas como eu.
Palácio Nacional de Mafra
Foto: Wikipédia, com a devida vénia
A desilusão, foi aquele inverno frio e molhado, a recruta começou em janeiro de 1969, e a instrução na tapada de Mafra, quase sempre com as fardas molhadas, o tenente do pelotão, um transmontano, duro até ao sadismo a obrigar-nos a rastejar na água e na lama, éramos sempre os últimos a regressar ao quartel.
Havia um camarada baixote e um pouco forte, que não sei se teria um metro e meio, muito sofreu, pois o comandante do pelotão queria obrigá-lo a fazer todos os exercícios. Acabou por ser dispensado da tropa antes de acabar a recruta.
Revolta na foz do rio Lisandro, naquela noite fatídica de acção psicológica com todo o batalhão encerrado numa espécie de grande redil, formado por cordas, a ouvir as provocações lançadas por altifalantes, enquanto rebentavam petardos e granadas à nossa volta.
Maus cálculos ou excesso de zelo de algum especialista de explosivos, petardos muito próximos provocaram a morte de alguns cadetes*.
Gritos de cólera e fúria saídos de quinhentas ou mais gargantas encheram a noite dum clamor de revolta imenso.
O regresso ao quartel foi imediato, por iniciativa dos instruendos. Sem qualquer ordem nem enquadramento de oficiais ou sargentos, mais parecia um exército em retirada.
Entre os três mortos estava um camarada que eu conhecia muito bem por dormir próximo de mim na camarata. Era natural duma aldeia de Figueira da Foz, tinha estudado no seminário, era um tipo puro, sossegado, um camarada estimado por todos.
Recordo o ar triste e choroso dos pais dele, com aspecto de gente pobre como no geral eram os portugueses nesse tempo. Nunca esqueci aqueles pais na sua dor e na pobreza que patenteavam, na forma de vestir, no ar humilde, na resignação perante aquela imensa tragédia. Senti-me tão próximo deles.
Os meus pais, seriam um pouco mais altos, talvez um pouco mais bem vestidos mas a dor e a resignação seria a mesma. Na linha da morte os filhos devem preceder sempre os pais, é a lei natural da vida. Pobres pais que tinham sonhado uma vida melhor para o seu filho.
Quando jovens, já na posse de todas as suas aptidões físicas e intelectuais a aceitação da morte torna-se difícil não só para a família próxima mas também para toda a comunidade.
No fim da recruta em Mafra, para testar as minhas capacidades, quis entrar na difícil seleção a nível físico das tropas especiais.
Já nos Rangers em Lamego entrei nas provas de seleção dos Comandos onde também consegui entrar.
Nos Comandos apesar da dureza da instrução encontrei sempre graduados, tanto oficiais como sargentos, educados e respeitadores.
Lamego uma terra bela pelo traçado das ruas com um traçado histórico, romano, árabe, medieval e monástico, ruas estreitas do passado, mais largas dos tempos mais recentes A avenida principal, onde em noites quentes de verão os militares passeavam para apreciar as belezas da cidade que se queriam mostrar, dominada a sul por uma colina onde se situava o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios e a sul pela Sé, em frente a uma praça com uma rotunda.
Lá conheci o já infelizmente falecido Jaime Neves, Comandante da Companhia de Instrução de Comandos que apesar da dureza da instrução sempre se portou connosco como um autêntico cavalheiro.
Na instrução as provas físicas sempre as fui fazendo. Nunca consegui foi absorver um certo fervor patriótico que devia fazer de mim um guerreiro com uma fé inabalável. Educadamente e sem ressentimentos excluíram-me daquela tropa e eu sem muitas explicações compreendi perfeitamente o motivo.
Tal como o tenente de Mafra, o Jaime Neves também era transmontano mas pelos exemplos e pela comparação cheguei à conclusão que só as origens não bastam para qualificar alguém. O Jaime Neves independentemente das diferenças da mais variada ordem que possa ter havido entre nós, considero-o um chefe militar corajoso, patriota, frontal, como Portugal raramente teve.
Como português, como transmontano, inclino-me perante a sua memória.
Tenho uma dívida de gratidão e camaradagem para com ele e para com todos esses camaradas dos Comandos e dos Rangers, tanto instrutores como instruendos.
Sé de Lamego
Foto: Blogue Asas da Montanha, com a devida vénia
Para acabar esta crónica que já vai longa e para a amenizar com algum humor, vou contar um episódio acontecido em Mafra aquando do terramoto de 1969.
Já era noite alta quando sentimos o edifício do convento a estremecer, acordaram alguns, outros foram acordados pelo alarido. A camarata situava-se no oitavo e último andar. A terra tremia e nós sentíamos a violência desses tremores mas dada a distância do solo julgo que ninguém daquela camarata se aventurou a fugir para rua.
Ficámos todos por lá, cada qual com sua coragem ou com os seus medos. Lembro-me que alguns rezavam e outros choravam mesmo. Nunca esqueci porém o camarada que morava na cama ao meu lado, um tipo alto, forte, bonacheirão, um alentejano típico e bem disposto. Quando havia muitos outros por perto cheios de tremuras, agarrou numa garrafa de brandy que tinha para lá guardada e disse:
- Deixa-me beber antes que seja tarde.
Obrigado camarada alentejano pela tua coragem e pelo teu humor que nunca esqueci!
Um grande abraço a todos os camaradas.
Francisco Baptista
OBS: - * - Haverá algum camarada que saiba o número exacto de mortos neste incidente?
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Nota do editor
Último poste da série de 26 de Janeiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12639: A cidade ou vila que eu mais amei ou odiei, no meu tempo de tropa, antes de ser mobilizado para o CTIG (12): Lisboa e Figueira da Foz (António Eduardo Ferreira)
2 comentários:
Caro camarada Francisco Baptista
Do teu percurso só tenho em comum, Lisboa.
Dado que o objectivo era tentar saber da relação amor-ódio que ficou nos nossos corações (e mentes) às terras onde cumprimos a nossa formação militar, acho que fiquei a saber o que significa Mafra.
Em relação a Lamego presumo que te tenha deixado boas recordações.
Agora, o que é um 'mimo' é a história que contaste no fim, sobre o tremor de terra e as diferentes reacções, absolutamente naturais nessas circunstâncias, do conjunto dos Instruendos...
E podemos concluir que a velha sabedoria alentejana deu cartas!
Abraço
Hélder S.
Caro Francisco Baptista
Desse não sei, porque não estive lá ... mas na recruta que teve início em Abr71 estava no pelotão do
Alf S.. Numa manhã em que tinha chovido forte o pelotão passou junto ao paiol a cumprir uma ordem de passo de corrida; pouco depois o alf deu ordem de voltar a esquerda tendo os homens da frente ficado a cerca de oito passos da lagoa ... em corrida! parar! empurrões! entrar na água! ... foi uma confusão geral de que resultaram 4 mortos . Pouco passou para os órgãos de comunicação social.
Curvo- me à memória destes 4 camaradas e dos teus , mais sofrido pela irresponsabilidade e inutilidade dos actos
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