O Segredo De… e ainda a propósito de Mafra
O maior frio da minha vida
Presentemente não se pode considerar propriamente um segredo mas, na altura em os factos aconteceram, tive que me abster de falar nesse assunto para eventualmente não sofrer represálias dos meus superiores, instrutores, na classificação final da especialidade, determinante para a mobilização, ou não, para a guerra.
Começo novamente por lembrar a muita sorte que tive na tropa e na guerra:
Nas marchas finais da especialidade que duraram quatro dias o meu PEL REC foi escolhido para representar, nessa guerra de quatro dias, o inimigo. Enquanto o resto da tropa percorreu a pé talvez mais de uma centena de quilómetros, nós, o IN tínhamos à disposição uns “jeepões” para nos deslocarmos sempre à frente dos outros para lhe fazermos as emboscadas e outras tropelias.
Recordo, agora com tristeza, que quando íamos, de jeep, a subir para o cimo da serra de Montejunto passámos por “uma guerra” que ia a subir a pé. Nessa coluna de pessoal ia um cadete meu conhecido, o Brandão, a quem acenei mas não obtendo qualquer resposta dado o seu cansaço. Digo com tristeza, porque ele veio a falecer na Guiné, na zona de Mato Cão, num estúpido acidente com uma arma capturada ao IN.
Caminho que levava ao cimo da serra
Foto: All 4 Running, com a devida vénia
Num à-parte e sobre o cansaço, andando mesmo os quatro dias sempre de jeep, acabei por nunca dormir. Na última noite armámos a tenda, com os habituais três panos, debaixo de uma oliveira. Peguei no sono e passado uma ou duas horas fui acordado dizendo-me que já estava todo o pessoal em marcha. Perguntando aos meus dois camaradas de tenda, porque não me acordaram, a resposta foi:
- Então não ouviste a granada que rebentaram no meio do acampamento?
Não, não tinha ouvido.
Feita a guerra que tínhamos que fazer nesse dia e já noite escura, foram-nos posicionar mesmo no cimo da serra. Era Agosto e lembro-me que nesse dia à tarde andámos a tomar banho numa lagoa. Porém no cimo da serra, de noite, estava nevoeiro, havia muito vento e um frio terrível. Estávamos só de camisa pois era verão.
Durante algum tempo estivemos todos encostados a um pequeno muro. Também, como era costume em casos semelhantes, fomo-nos encostando uns aos outros para conservar melhor o calor corporal. Alguns camaradas e eu próprio tentámos acender uma fogueira mas tornou-se impossível por estar tudo molhado. A situação estava a tornar-se insuportável, pelo menos para mim. Agora à distância posso dizer que efectivamente foi o maior frio que apanhei na minha vida.
Passado algum tempo, não aguentando mais a situação saí do local e comecei a andar, às escuras pelas imediações procurando algum local mais abrigado, quiçá um buraco, mesmo de bicho, onde me meter.
Alargando mais o meu raio de acção, em plena escuridão, às apalpadelas, a cerca de cem metros, fui dar com um jeep de capota de lona com alguém lá dentro nos bancos da frente. Instrutores pela certa. Como o meu desespero era grande e correndo o risco de ser escorraçado dali, resolvi, sem fazer barulho, entrar para a parte de trás do jeep, pensando eu que com assobiar do vento não me iriam ouvir.
Levantei parte da capota e entrei.
Os bancos, laterais, eram metálicos, frios portanto, mas como aí havia muitas cartas militares envoltas em plástico coloquei algumas num banco e cobri-me com as outras. Estando eu nesses preparos ouvi uma voz ensonada vinda da cabine:
- Tenham cuidado com isso.
Não dormi mas estive ali toda a noite no quente e com uma diversão suplementar.
A partir de determinada altura os elementos que estavam à frente estabelecem uma conversação, via rádio, com outra viatura daquela guerra. Tentavam perceber onde se encontravam uns e outros não chegando a conclusão alguma. Falaram, falaram até que ao fim de muito tempo o outro jeep ligou as luzes. Estava ali a uns cinquenta metros. Foi uma risada geral, lá e cá e eu muito calado a tentar suster o riso.
Quando começou a clarear o dia, sorrateiramente, saí do jeep e fui ter com os camaradas da minha guerra. Nunca soube quem estava na cabine daquele jeep e muito menos a eles lhe teria passado pela cabeça que naquela noite gélida deram guarida a um cadete instruendo.
Abraços
Fernando Gouveia
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Nota do editor
Último poste da série 25 DE JANEIRO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12632: O segredo de... (16): Ricardo Almeida (ex-1.º cabo, CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879, Farim, K3 / Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71): Como arranjei uma madrinha de guerra, como lhe ganhei afeição e amor, e como por causa da minha terrível doença fui obrigado a tomar uma dramática de decisão de ruptura... A carta de amor pungente que ela me escreveu, em resposta...
2 comentários:
Na parte final do meu CPC, talvez nos pricípios de DEZ69, também tivemos uma guerra aí nessa Serra. Pelos vistos era um local predilecto para os utentes de Mafra.
Recordo que fomos apanhar um meio aéreo a Sintra, um daqueles aviões antigos da 2.ª Guerra (peço ajuda ao nosso "Maior da FA" para confirmar se era algum Junquer ou Dakota) e desembarcámos na OTA. Seguimos nos camiões até dado local e depois toca de começar a subir a pé. O pior é que veio chuva e o pessoal começou a resmungar entre dentes. Era quase tudo pessoal "um pouco insubordinado que armava algumas broncas".
Lembro-me que pernoitámos numa grande casa que me parecia desabitada enrolados em palha.
De guerra não me lembro, mas que não gostei nada do avião lá isso é verdade. As chapas tinham já umas folgas que permitiam uma certa visibilidade para o exterior.
Abraços
JPicado
Caro camarada Fernando Gouveia
Pois não será um 'grande segredo', é verdade, mas não deixa de ser interessante.
E mostra como é possível encontrar soluções quando se procura tomar a iniciativa, não ficar a 'carpir' as dificuldades. Não, não é discurso na linha 'anti-piegas', é uma verdade bem real e que acho que todos já tivemos oportunidade de comprovar.
Seja como for a cena final é digna de um filme dos 'Monty Python' com uns 'artistas' à procura uns dos outros colocados quase frente a frente! E parece que nem deram por ti!
Abraço
Hélder S.
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