segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13556: Notas de leitura (628): A Tricontinental: Quando Amílcar Cabral se tornou num teórico mundial da revolução (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2014:

Queridos amigos,
A Tricontinental não teve impacto previsto pelo Terceiro Mundo, o processo revolucionário foi encontrando escolhos uns atrás dos outros, desde a morte de Che, o modo como os revolucionários da América Latina foram sendo neutralizados, a própria doutrina da “coexistência pacífica”, os golpes de Estado que assolaram África, a ascensão de ditadores sanguinários como Sékou Touré, por exemplo. Mas Cabral viu reconhecida a sua fórmula teórica, a partir daquele momento o seu prestígio catapultou: os cubanos forneceram materiais, abriram-se as portas junto da social-democracia europeia, os soviéticos foram cedendo armamento de ponta face ao conflito com as tropas portuguesas. Aquele dia 6 de janeiro de 1966 foi fausto para Cabral.

Um abraço do
Mário


A Tricontinental: 
Quando Amílcar Cabral se tornou num teórico mundial da revolução (2)

Beja Santos

Havana, desde as primeiras horas de 1 de janeiro de 1966 está em ebulição, a todo o momento desembarcam os convidados que vêm participar na Tricontinental, vietnamitas, venezuelanos, africanos, as comitivas da Europa de Leste. Aqui e acolá pergunta-se onde está Che Guevara, parece ser o grande ausente. Por todo o lado faixas anunciando o ano da solidariedade e a Tricontinental. Há festa por toda a parte, os participantes enchem todos os andares dos hotéis Habana Libre, Habana Riviera e Capri. A rádio também está eufórica, a cantora mexicana Consuelo Velázquez, entoa com a sensualidade de Joséphine Baker: Bésame, Bésame mucho,/ Como se fuera esta noche la última vez! O presidente Dorticós faz a saudação inaugural. A delegação do PAIGC é constituída por Amílcar Cabral, Pedro Pires, Domingos Ramos e Vasco Cabral. Joaquim Pedro Silva, Barô, que está na escola de guerrilheiros, também é cooptado. Amílcar cedo revela os seus dotes, logo na entrevista que concede à Granma, deixa entender que a sua visita será curta pois o dever de um revolucionário é estar a fazer a revolução e explica a sua posição perante o conflito sino-soviético: “Somos por um não alinhamento ativo. Não seguimos a estratégia de nenhum grupo ou bloco, o nosso movimento não é influenciável por eles. Como disse a Fidel, nós não temos necessidade da cabeça dos outros para pensar”.

Há encontros de delegações por toda a parte, os jornalistas de todo o mundo andam febris, nunca tiveram tão à mão a parada de estrelas revolucionárias. Já foram cumpridas as cerimónias protocolares, a conferência tem o seu discurso inaugural feito por Raúl Roa, o ministro cubano dos Negócios Estrangeiros. Os vietnamitas falam a seguir sobre a sua luta, intelectuais proeminentes como Morávia, Vargas Llosa, Régis Debray fazem alocuções aos trabalhadores. Depois do Vietname, depõem o Laos, a República Dominicana, o Congo Léopoldville, os chineses sempre insinuantes e recalcitrantes. É um desfile de declarações por vezes aplaudidas apoteoticamente. Será assim até ao final do dia 5. E no dealbar de 6, o auditório rende-se a um teórico inesperado, há gente que se mexe e remexe nas cadeiras, estão a ouvir coisas inacreditáveis, à revelia dos dogmas.


Cabral dispõe de muito tempo, tal como os vietnamitas, ele vem falar em nome de todos aqueles que estão a combater o colonialismo português. Presta homenagem ao povo cubano, considera corajosa a política de “porta aberta para a saída dos inimigos da revolução”. E o seu discurso teórico começa por um provérbio africano: “Quando a tua casa está a arder não serve de nada o tam-tam”. Isto para dizer que não é a proferir injúrias contra o imperialismo que se chega à sua liquidação, é a combater, é a estudar a solução dos problemas vitais de cada um dos nossos países e da luta em comum. Lança-se numa autocrítica, ao reconhecimento das próprias fraquezas: “A nossa luta é a expressão das contradições internas da realidade económica, social e cultural em cada um dos nossos países. Estamos convencidos que toda a revolução nacional ou social que não possui como base fundamental o conhecimento desta realidade arrisca-se ao insucesso”. O auditório está preso, sabem que aquele dirigente político é um agrónomo que preparou passo a passo o início da luta armada. “A libertação nacional e a revolução social não são mercadorias de exportação, são o produto de uma elaboração local, nacional, mais ou menos influenciada por fatores externos, mas essencialmente determinada e condicionada pela realidade histórica de cada povo. Devemos reconhecer que não temos sabido dar toda a tenção necessária a este problema importante da nossa luta comum. O defeito ideológico, para não dizer a falta total de ideologia, no seio dos movimentos de libertação nacional, constitui uma das maiores, se não a maior fraqueza da nossa luta contra o imperialismo”. E surge uma declaração que vai agitar os soviéticos e companheiros de estrada: “Aqueles que afirmam que a força motriz da História é a luta de classes estarão certamente de acordo em rever esta asserção a fim de lhe dar um campo de aplicação ainda mais vasto, caso eles conheçam as caraterísticas essenciais de certos países colonizados. De facto, na evolução geral da humanidade, as classes não aparecem nem como fenómeno generalizado e simultaneamente na totalidade destes grupos nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo”.

A sala segue-o atentamente, o inesperado já aconteceu, Cabral pergunta se a história começa somente a partir do momento em que se desenvolve o fenómeno “classe” e por consequência a luta de classes. Se assim fosse, muitos grupos humanos de África, da Ásia e da América Latina, viviam fora da história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo. E diz que há história nos Balantas da Guiné e nos Maconde de Moçambique, por exemplo. A libertação nacional é a reconquista da personalidade histórica. A seguir, tece considerações sobre a situação neocolonial de um grande número de países que acederam à independência política e procura a justificação para concluir que os compromissos com o imperialismo são inoperantes. E dirige-se ao auditório: “Não queremos escandalizar esta assembleia afirmando que a via única e eficaz para a realização definitiva das aspirações dos povos é a luta armada”.

Enunciando a sua conceção de luta de classes, Cabral releva o papel da pequena burguesia a quem compete um papel revolucionário mas que consomada a revolução deverá fundir-se com o povo libertado, “deve ser capaz de se suicidar como classe”. Praticamente em terminar a sua intervenção, Cabral comete em confidência de anunciar que o PAIGC se está a preparar para lançar operações em Cabo Verde. Insiste que está a falar em nome de todos aqueles que lutam contra o colonialismo português, apela à luta com as armas na mão, termina dizendo: “Nós venceremos”.

Não é por acaso que em “Tricontinentale”, Roger Faligot, Éditions La Découverte, Pais, 2013, esmiúça inusitadamente o discurso de Cabral, a peça dará volta ao mundo e tornar-se-á um texto sagrada do Terceiro Mundo Militante, um pouco à semelhança do discurso que Guevara proferira em Argel, meses antes. Mais adiante Osmany Cienfuegos dará uma declaração em nome da delegação cubana insistindo para que se construa uma organização tricontinental permanente. A seguir a Cabral falou o orador que iria também ser muito ovacionado, Turcios Lima, explicou, em nome das FAR guatemaltecas, a situação no seu país. É nesta altura que Cabral questiona o guatemalteco, assim: “Estou intrigado camarada, porque é que não há índios no teu exército, como, aliás em quase nenhum exército de libertação latino-americano?”. Turcios Lima respondeu impassível, “Guardo-os de reserva!”, sem saber se se tratava ou não de um dito espirituoso. Falando para outros guineenses, Cabral comentou: “É esta a fraqueza deles, há cinco séculos que os índios são colonizados, continuam na mesma depois dos espanhóis terem partido”. Porque esta era a força que Cabral exibia junto de todo e qualquer interlocutor, a de querer fazer convergir para a luta toda as etnias, muçulmanos ou animistas, todos os chamados assimilados cabo-verdianos.

Este surpreendente thriller de Roger Faligot é agora a obra incontornável sobre a Tricontinental, a despeito de pequenos dislates, alguns deles que têm a ver com a questão guineense, dizendo que a mãe de Cabral era guineense, que as tropas portuguesas tinham sido expulsas da Ilha do Como, etc. A conferência teve o seu fecho oratório no dia 11, com uma resolução sobre Ben Barka e a constituição de um comité de solidariedade, seguiu-se a pompa do encerramento. Cabral vai ficar mais uns dias, conseguirá de Fidel uma ajuda militar significativa e o envio de técnicos, Oscar Oramas será, a pedido de Cabral, nomeado embaixador cubano na Guiné-Conacri e Victor Dreke, que tinha acompanhado Guevara no Congo, será enviado para junto do PAIGC como o elemento de ligação cubano.

As conclusões de Faligot quanto à Tricontinental merecem leitura atenta. Tudo jogou a desfavor destes eventos de Havana: o alinhamento de Fidel com Moscovo; o refluxo do movimento revolucionário na América Latina e a morte do Che na Bolívia; a consagração da doutrina da “coexistência pacífica” que obrigou os soviéticos a permanentes jogos de cintura com os acontecimentos africanos e asiáticos; a ascensão de ditaduras ao longo das décadas seguintes, envolvendo figuras sinistras como Sékou Touré e Robert Mugabe. Resta a Organização de solidariedade com os povos da Ásia, de África e da América Latina (OSPAAAL), criado em janeiro de 1966, continua a existir, é uma pequena ONG reconhecida pela ONU que pode organizar um colóquio à memória de Che, um seminário sobre a revolução sandinista ou apelar à ajuda quando há um tremor de terra no Haiti.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13543: Notas de leitura (627): A Tricontinental: Quando Amílcar Cabral se tornou num teórico mundial da revolução (1) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Obrigado MBS, por mais esta.

"...Cabral comete em confidência de anunciar que o PAIGC se está a preparar para lançar operações em Cabo Verde..."

Não havia a mais pequena sinceridade de Amílcar nesta "boca" para russos e cubanos ouvirem.

Os milhares de caboverdeanos e amigos do MPLA que em Angola admiravam Amílcar sabiam que em Caboverde e mesmo São Tomé nunca podiam entrar armas.

Iam disparar contra o pai e a mãe e o ermon?

No fim, a maior vítima foram os guineenses e os que por lá passaram, brancos pretos e bormejos.

Abílio Duarte disse...

Como dizia o Gen. Spinola, nada acontece por acaso.
Passando a afirmação de Cabral, para os dias de hoje, compreendo a táctica do Partido Comunista Português, ao ter apoiado a nascença do actual governo!Porquê?
Pois com a destruição da classe média , e não o seu suicídio como Cabral pretendia, torna-se mais fácil a instauração de um regime autoritário. Pois só que em Portugal esse regime será uma ditadura de Direita, que não terá nada a haver com os trabalhadores.

Anónimo disse...

A utopia levada ao extremo..ou "para russo ouvir"...

Iam fazer o quê ?...guerrilha urbana ?..por bombas ?

Não contesto o nível superior intelectual de Amílcar Cabral..quanto a "revolucionário"..estamos conversados..

Não fazia a guerra contra o povo português...era contra o regime (dizia)..e nós combatentes éramos o quê..

Cometeu muitos erros..baseado em utopias..uma das principais foi precisamente esta..tentar desviar-se da linha política traçada pelo politburo do pcus..e estes não perdoavam.
Permitiu, por passividade ou falta de poder e ou incapacidade, as mais diferentes tropelias dos quadros intermédios e até da cúpula da hierarquia do paigc.
Não promoveu ou distinguiu uma parte dos guerrilheiros que actuavam no terreno..eram só carne para canhão..gerando descontentamento e até revolta.

Como era inteligente..previu o seu futuro.."vou ser morto pela minha gente"..provavelmente não seria assim tanto a sua gente..e assim foi.

A.B.

C.Martins

Antº Rosinha disse...

C.Martins, e porque não dizer que esse do PCUS é que foram os mandantes directos dos 3 tiros em Conacry do Touré?

É que passados uns anos esse tal de PCUS comportou-se muito duvidosamente em Bissau, quando viu os seus carros de combate e suas Kalash derrubarem o irmão Luís Cabral, darem um tiro em Vasco Cabral e mataram Buscardini.

Quem devia explicar e não esconder nada era os meia dúzia de caboverdeanos do PAIGC, porque eram de fato muito poucos que fizeram tanto estrago.