1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:
Prezado Luís Graça
Envio mais alimento para o Blogue.
Trata-se de mais algumas dicas
sobre o dia a dia de um destacamento militar, concretamente, Guidage.
Um grande abraço, extensivo a todos os navegantes do Blogue.
Domingos Gonçalves
MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967)
REPORTAGENS DA ÉPOCA
6 - GUIDAJE 1967
Setembro
Dia 1
Pedi a evacuação da mulher de um soldado nativo que se encontra bastante doente. Antes consultei o médico via rádio.
Como o problema não tinha solução aqui, a doente foi enviada para Bissau, onde ficou internada.
Pelo meio-dia chegou o helicóptero. Em vez de uma mulher, levou duas.
Doentes para tratar é, infelizmente, o que mais temos aqui. Só os casos muito graves é que se enviam para Bissau,
quando, como desta vez, surge a possibilidade de transporte.
O homem que veio do Senegal para se curar de uma doença venérea já regressou a casa.
A medicação que o enfermeiro lhe aplicou, produziu bom resultado. Curou-se relativamente depressa.
Se tiver juízo pode continuar a ser uma pessoa perfeitamente normal e cheia de saúde.
De tarde fui activar diversas armadilhas que estavam desactivadas para permitir a passagem das nossas tropas.
Informações vindas do outro lado da fronteira confirmam que os turras levaram para Ierã 8 mortos, tendo procedido ao
enterramento de 4 na referida localidade, e de outros 4 na tabanca de Corumbo.
Pela mesma altura apareceram na referida localidade bastantes feridos.
Dia 2
Às oito e meia saí para o Cufeu a picar a estrada, mas a coluna não conseguiu passar.
Algumas viaturas ficaram atoladas na bolanha. Naquele sítio apenas se pode passar de barco, ou, então, em viaturas anfíbias!
Se tudo assim continuar, no fim da época das chuvas o transporte ideal para as nossas tropas passarem por ali deve ser o submarino.
Vou pensar em requisitar um!
Um grupo de 120 turras, desarmados, uns vestindo à civil e outros fardados, foram do Dungal para Corumbo.
Caminhavam ordeiramente, em formação, mas muito à vontade. O informador acompanhou-os.
O comandante dos tipos, suspeitando dele, quis prendê-lo. No entanto, como se tratava de um cidadão senegalês deixou-o ir em paz.
Os tipos movimentam-se em território do Senegal com a mesma liberdade que têm os cidadãos desse país.
Dia 3
Pela manhã fui ao Cufeu com o nosso Unimog. Fomos levar vinho, pão e marmelada ao pessoal que ficou durante a noite a guardar as viaturas.
Na coluna vinha a Companhia de Cavalaria nº 1747, que deverá permanecer em Guidage com a finalidade de efectuar uma operação. Todavia, o pessoal está muito cansado e aqui não têm condições para descansar.
A noite que passaram a guardar as viaturas atoladas na bolanha deixou-os demasiado cansados.
O trabalho que vinham realizar vai ter de ficar adiado no mínimo por alguns dias.
O comandante dessa companhia é um bom homem, inteligente e sensível, mas é também um revoltado.
Ele tem já bastante idade e foi de novo mobilizado. Tem mulher. Tem filhos. Tinha uma vida profissional organizada, construída com sacrifício e dedicação. E a tudo a mobilização veio, inesperadamente, colocar um ponto final.
Este é mais um dos horrores desta guerra sem fim e sem o mínimo de sentido.
Este capitão é mais um dos sacrificados neste altar da guerra.
Mais um, de entre tantos.
Dez anos depois de ter cumprido o serviço militar foi de novo convocado para cumprir uma comissão, aqui, na Guiné.
Desiludido com a vida, confessa com tristeza:
- Para mim tudo acabou.
Dia 5
Esperávamos que chegasse, de helicóptero, o Comandante de Batalhão, acompanhado pelo médico. Devido, talvez, ao mau tempo,
não apareceram cá. Entretanto a Companhia 1747 vai descansando. É o que interessa.
O capitão Y, falou bastante comigo. Ele odeia tudo isto. Não se resigna a esta triste sorte. Estragaram-lhe a vida.
Tinha família constituída, bons clientes, tudo o que um homem de trinta e poucos anos pode desejar.
E quase tudo foi pela água abaixo. É uma tristeza...
À noite comeu-se uma magnífica frangalhada e fez-se festa rija. É a nossa homenagem aos homens desta Companhia de cavaleiros que nos vieram visitar.
Aplica-se perfeitamente a nós, oficiais, este pequeno texto retirado de um livro de J. Lateguy:
“A existência do oficial divide-se muito irregularmente entre alguns momentos de esforço e de fadiga, de perigos,
e longos períodos de inacção e tranquilidade. Nesses momentos de esforço, o oficial pode ser levado a realizar, apesar do medo,
da fome, do cansaço, actos extraordinários, que farão dele, mas apenas por um instante, um ser superior, mais desinteressado,
mais resistente que os outros homens.
Nos períodos de repouso, move-se com a lentidão do urso entorpecido pelo Inverno, através de um pequeno mundo fechado.
O esforço é banido, ou pelo menos extremamente limitado por leis, ritos, hábitos.
Nele os gracejos são tradicionais, e a própria maldade codificada.”
A existência do oficial, aqui na Guiné, apesar da especificidade da guerra que fazemos, e da pequena dimensão
das guarnições, é tudo isso e ainda muito mais.
Os momentos de heroísmo e de grandeza são quase nulos, e os de estupidez preenchem a quase totalidade da vida.
E tudo quanto nos rodeia contribui de forma mais ou menos acentuada para que não se possa fugir desse fatalismo.
Parece que o oficial existe para se mover num mundo feito de mediocridade. Todos nós sentimos de forma muito nítida
a tentação de viver na trivialidade. É este o nosso mundo. O mundo que nós vamos dia a dia construindo e no qual vivemos,
sem qualquer possibilidade de lhe fugirmos.
Somos prisioneiros da mediocridade que dia a dia vamos criando para nós próprios, tantas vezes com
esforço e sacrifício enormes.
Domingos Gonçalves
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (1967) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (5): Guidaje 1967
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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