Caros amigos
Cá vai mais uma estória passada na Guiné
Abraços
Antonio Martins Matos
Blue on Blue
Quando se faz um planeamento de exercícios militares, é procedimento habitual identificar as forças intervenientes por duas cores, os “nossos” são sempre marcados como sendo os Azuis (BLUE), até há pouco tempo os opositores (quaisquer que fossem) eram sempre denominados como sendo os Vermelhos (RED).
Depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento do Pacto de Varsóvia, tendo em conta uma aproximação mais “politizada”, os opositores deixaram de ser Red e passaram a ser Laranja (ORANGE). Enfim, modas, quando eram RED sabíamos para onde nos voltar, agora com o ORANGE, temos de olhar para tudo à volta, só espero que qualquer dia não mudem para BLACK ou YELLOW.
“BLUE ON BLUE” é o termo utilizado quando forças “amigas”, por razões estranhas e indeterminadas, disparam contra outras forças, posições ou entidades igualmente “amigas”.
Por vezes também aparece a designação de FRIENDLY FIRE (fogo amigo) ou COLLATERAL DAMAGE (danos colaterais).
Sendo algo triste, preocupante e de lamentar não é um acontecimento tão raro como se possa supor, sempre aconteceu e acontecerá em todos os conflitos, sejam eles pequenos, médios ou grandes.
E não se julgue que os estragos possam ser sempre pequenos, apenas dois exemplos:
- Na Batalha Naval de Algeciras (1801) dois navios espanhóis (Real Carlos e San Hermenegildo), por engano lutaram furiosamente um contra o outro, no final ambos foram ao fundo, cerca de 1700 mortos.
- No final da Segunda Guerra (1945) 3 navios mercantes foram afundados pela RAF à saída do porto de Lubeck, transportavam sobreviventes judeus de campos de concentração e prisioneiros de guerra Aliados, mais de 5000 mortos.
Parece que os campeões destas modalidades de tiro ao alvo são os americanos, sempre foram rápidos no gatilho, só no Vietnam houve mais de 7000 incidentes deste tipo.
Em sua defesa o que posso dizer é que os americanos tem a mania de reportar tudo o que se lhes ocorre, enquanto muitos outros tem a mania oposta, a de varrer para debaixo do tapete, só quando já cheira mal é que os acontecimentos aparecem, estou-me a lembrar do Airbus da Malaysian Airlines abatido na Ukrania, agora e segundo as últimas notícias publicadas na imprensa, parece que não foi ninguém…
Nos dias de hoje não há que fugir, as aviações (e agora os drones) estão quase sempre envolvidos nestas tramas, seja por terem bombardeado a “nossa tropa”, por engano do piloto ou do drone-driver, seja por terem sido abatidos pela “nossa tropa”, por engano de alguns artilheiros mais escrupulosos ou descuidados.
Não sei se na nossa Guerra do Ultramar aconteceram alguns destes casos, não devemos ser excepção à regra, não tenho conhecimento de nenhum mas … tampouco ponho as mãos no fogo.
Nesta coisa de tentar apoiar as forças terrestres uma coisa era certa, quartéis em que o pessoal quase nunca saia para o mato tornavam-se mais simples, podíamos bombardear “tudo à volta”, sem medo de acertar em alguém amigo.
Para os outros era mais complicado, até porque a tropa não estava habituada a falar ao rádio, perdiam-se em MIKE, OSCAR, ROMEU, TANGO, ECHO, INDIA, ROMEU, OSCAR, só para dizer uma palavra tão simples como “morteiro” e, vá-se lá saber o porquê, nunca tinham potes de fumo à mão (as duas únicas maneiras de sabermos onde andava a tropa, uma tela laranja ou um pote de fumo).
A partir de 1973 e como os apoios de fogo se tornassem cada vez mais frequentes, violentos e confusos, passámos a gravar as comunicações entre o chão e o avião, o Fiat G-91 permitia isso já que dispunha de um gravador interno.
A fita gravada era guardada um certo período de tempo, se nada de relevante tivesse entretanto acontecido, era reutilizada.
Mas nem tudo era mau, com os pára-quedistas não eram precisas grandes conversas, pote de fumo, a partir do pote o inimigo está na direcção x, distancia y, tudo dito.
Quanto aos fuzileiros, tropa difícil de entender…
A estória que hoje conto, não sendo um “blue on blue”… podia ter sido.
Ainda não eram 6 da manhã e já o “Alerta aos Fiat” soava no altifalante.
A estória que hoje conto, não sendo um “blue on blue”… podia ter sido.
Ainda não eram 6 da manhã e já o “Alerta aos Fiat” soava no altifalante.
Devido à falta de pilotos que se fazia sentir, até às 8 horas apenas havia um piloto a pé, o outro descansava num quarto perto das Operações da Base, quando o alerta soava iam-no chamar, o piloto mais acordado ia avançando para o objectivo, de lá acabava por dizer ao “dorminhoco”, entretanto arrancado da cama, se a sua presença ainda era necessária.
Lá fui eu, sozinho, rumo sul na direcção do Cantanhez.
No caminho e pelo rádio lá me foram dando mais alguma informação, era um grupo de fuzileiros que, ao atravessar uma bolanha, tinha tido um encontro com o PAIGC.
Fuzileiros, tropa difícil de entender…
Não foi preciso contactá-los, ao ouvirem o avião logo se chegaram ao rádio e contaram o que se estava a passar, tinham sido surpreendidos por fogo IN, precisavam de atravessar uma bolanha mas tinham medo de, a meio da travessia, serem emboscados.
Aquela bolanha… Para eles só havia aquela bolanha, visto cá de cima bolanhas era mato!
- “Qual bolanha?”
- “Um momento….. BRAVO OSCAR LIMA ……” o fuzileiro esmerava-se em me dar as coordenadas do local, devia pensar que eu podia esticar um mapa em cima de uma mesa e ir à procura do que me dizia…
- “Ó homem, deixe-se de conversa e abra um pote de fumo !”
Quando o fumo branco apareceu junto da copa das árvores logo fiquei a saber três coisas, onde estavam, qual a bolanha da discórdia e o sentido que a tropa queria seguir.
O passo seguinte foi fazer uma picada em direcção à mata que tinham pela frente e disparar os 8 foguetes que trazia, tentando neutralizar alguma possível emboscada,.
O pessoal agradeceu, fiquei a sobrevoar o local enquanto eles se meteram a caminho, a travessia fez-se sem qualquer incidente, só que….
Pelo tempo entretanto decorrido calculava que já deviam ter completado o percurso e avançado mata adentro, mas sem uma ideia precisa onde,... quando o fuzileiro do rádio me chamou:
- “Estão a disparar contra si!”.
Num momento tudo se modificou, ao olhar para a zona já não havia qualquer fumo branco, no meio do verde iam aparecendo aqui e ali uns pequenos cogumelos de fumo ou pó, sinal que alguma coisa ia rebentando, e riscos vermelhos que vinham lá da orla da mata e passavam perto de mim.
A minha reacção foi rápida e um pouco instintiva, voltei o avião para o onde vinham as balas tracejantes, iniciei uma picada apontado ao local, encolhi-me dentro do cockpit e … gastei as munições das minhas 4 metralhadoras.
Ainda estava a recuperar da picada e já o fuzileiro no rádio gritava a plenos pulmões que tinham 4 ou 5 feridos…
A dúvida instalou-se-me… “Querem ver que acertei nos nossos?”
Não podia ser, só tinha disparado para o local de onde saiam as malditas tracejantes a mim apontadas mas, por outro lado, uma coisa também era certa, já não fazia a mínima ideia por onde andariam aqueles fuzos tresmalhados.
Quando a situação serenou regressei a Bissau com as dúvidas a avolumarem-se, o ter ido à missão sozinho tornava-me mais vulnerável, não ter com quem desabafar ou partilhar ideias.
Uma vez aterrado resolvi ir falar com o Cmdt Grupo, lá lhe expliquei o que se tinha passado e os meus temores.
Ouviu-me atentamente, fez um comentário sobre os fuzileiros (censurado), no final deu-me folga para o resto do dia e um conselho, ir averiguar.
Assim fiz, soube que tinha saído o Dakota para Cufar para recolher os feridos, ao fim da tarde estava à espera da chegada do avião, lá vinham eles, 4 feridos, em macas, todos ligados e a soro, não podiam responder às minhas dúvidas.
Estava neste impasse quando, saídos do meio dos feridos, apareceram umas calças de camuflado e uma tshirt branca, a enfermeira pára-quedista que tinha feito o acompanhamento e agora ajudava a transportar os feridos do avião para a ambulância, ninguém melhor que ela para me poder dar a informação pretendida.
Muito de mansinho lá me fui abeirando e, num tom de voz aparentando alguma indiferença (o meu coração a bater), cumprimentei-a, que tal o tempo em Cufar, se a missão tinha corrido bem, … já agora… se os ferimentos eram graves e de que tipo.
Olhou-me espantada com aquele meu súbito interesse, algo não encaixava na sua cabeça, um piloto dos Fiats a tentar “meter conversa” nas horas de serviço?????
Depois abriu um sorriso, deve ter percebido os meus problemas.
- “Náa, têm uma série de buracos mas não correm perigo, levaram com estilhaços de um RPG”
A VIDA É BELA!!!
António Martins Matos
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14197: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (29): Aeronáutica na Guiné - Os CESSNA dos TAGP e os seus pilotos (Jorge Araújo)
4 comentários:
Pois é, Camarada AMM, quem já atirou projéteis para além do campo de visão, com a nossa tropa por perto, sentiu o "pavor" do "blue on blue".
Forte abraço.
Vasco Pires
Ex-soldado de Artilharia
Meu caro António, é sempre um prazer ler as tuas histórias. Por mais do que uma vez, já te disse que tens de pensar em fazer um livrinho com uma antologis dos teus textos, aqui editados... Nada mais pessoal para oferecer, aos netos, filhos e amigos no Natal, do que as nossas histórias de vida...
Imagino a tua angústia, como piloto e camarada, ao imginar que podias ter atingido,com o fogo amigo das tuas metralhadoras, os pobres dos fuzileiros perdidos no inferno verde dop Cantanhez...
Felizmente, a enfermeira paraquedista tranquilizou-te... Ainda bem que quiseste inteirar-te do sucedido, e pudeste dormir em paz nesse dia...
Um abração. Luis
António, para além dos exemplos históricos que citaste, de vítimias do "fogo amigo", tens o caso do Italo Balbo (Ferrara, Itália, 6 de junho de 1896 — Tobruk, Líbia, 28 de junho de 1940), ainda há dias aqui referido, a propósito da sua primeira transatlântica, de itália ao Brasil (Orbetello, 17 de dezembro de 930 - Rio de Janeiro em 15 de janeiro de 1931).
Dos 14 aviões Savoia-Marchetti S.55, apenas onze concluíram a viagem. 5 pilotos morreram ao descolar da ilha de Bolama,...
Ministro da aeronáutica do seu país e governador da Líbia, à época, colónia italiana, morreu m 28 de junho de 1940, quando o avião em que viajava foi abatido por engano pela artilharia antiaérea italiana em Tobruk, na Líbia.
O sue Savoia-Marchetti SM.79 foi confundido com uma aeronave inimiga, na sequência de um ataque anterior da força aérea britânica a Tobruk. Ao que parece, os disparos que o atingiram foram efetuados pelo cruzador San Giorgio.
Foi enterrado em Trípoli. Os seus restos mortais só mais tarde em 1970, regressaram à sua terra natal.
Oficialmente o acontecimento foi considerado um acidente. Houve especulações sobre eventaul assassinato politico, a mando de Mussolini, versão que hoje não tem fundamento histórico.
Para saber mais:
https://www.youtube.com/watch?v=7ftmdQwAz7Q
http://en.wikipedia.org/wiki/Italo_Balbo
Apoio 100% o desafio do Luís Graça, venha o "livrinho", eu compro.
Abraços,
António Brandão Ccaç 2336
(2015 02 05, um dia em que a moral não é grande e a saudade é enorme)
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