1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Abril de 2014:
Queridos amigos,
Para bem da literatura e das memórias dos combatentes, não há padrão narrativo para os nossos relatos que podem integrar emboscadas e flagelações, medo e solidão, heroísmo e bravura, abnegação ou medo, são ingredientes mas há outros mais.
Carlos Tomé explora o cumprimento de uma dívida, vem assaltado pelo remorso, evoca aquele desconforto de que muitos de nós sofremos de não termos cumprido uma obrigação a pedido de um camarada. Carlos Tomé consegue uma obra equilibrada entre a simulação de uma reportagem, coisas da sua profissão, e o reencontro com o amor do seu mais íntimo camarada de guerra, tudo numa tessitura de plausibilidade, dois cinquentões solitários sentem-se capazes de recomeçar a vida.
E há as memórias escritas que o Rui deixou. Ele promete dar-lhes forma. Como se diz algures, só se morre quando ninguém se lembrar de nós, até lá mesmo os que combateram em África estarão presente nos testemunhos que lhes dedicarmos.
Um abraço do
Mário
Não consigo livrar-me daquilo, é o meu inferno privado
Beja Santos
“Morreremos Amanhã”, por Carlos Tomé, Artes e Letras, Ponta Delgada, 2007 é um romance que procura ir mais além das contingências de um teatro de operações, versa duas questões raramente abordadas frontalmente na literatura da guerra em África: Qual a dimensão do remorso e como o gerimos no ramerrão do quotidiano? Como subsiste, na nossa mente, a história da guerra depois da guerra, a que continua na memória dos sobreviventes, onde temos dívidas morais para pagar e torneamos permanentemente a incomodidade, a dilaceração do espírito?
O autor é jornalista e tem a sua vida profissional ligada à RTP Açores, desde 1976. “Morreremos Amanhã” não é a sua estreia literária mas será porventura a sua primeira incursão na guerra. Combateu em Angola, como oficial miliciano de Operações Especiais, entre 1972 e 1974.
O remorso não é obsidiante mas a memória dos acontecimentos não o larga:
“Aquele tiro, todos os dias o ouço.
Ecoa na minha cabeça, num pontinho bem definido, atrás do ouvido esquerdo.
Às vezes surge sem aviso, no meio de uma conversa, na rua, no cinema, a meio da noite. Outras, adivinho-lhe o estampido à passagem de uma motorizada barulhenta ou quando algo cai, um vidro se estilhaça. No instante imediato, a minha cabeça parece explodir, sacudida por esse som que nunca consegui esquecer e me parece, até, cada dia mais nítido”.
Ele é jornalista, recebeu a incumbência de ir fazer uma reportagem a S. Miguel, as térmitas estão a destruir edifícios fundamentais do centro da cidade de Ponta Delgada. Tomou a decisão, passadas estas décadas, de procurar a Alice Tavares, a viúva do Rui, tem uma promessa para cumprir.
A guerra perpassará ténue e diáfana no contexto deste romance, mas é o condimento poderoso da amizade entre Tozé e Rui, fizeram uma jura de honra. Vacinados em Luanda, Rui Tavares tem a premonição que nunca mais irá voltar a ver a Alice, a família, os Açores. Tozé volta-se para Rui e propõe-lhe a seguinte combinação: se só um sobreviver dará um mês de ordenado à mulher amada. O Rui aceita. Rui já está em Ponta Delgada, bate à porta da Alice, na rua de Santa Catarina. Alice está maravilhada com o encontro, sempre previra aquele encontro, sempre ansiara ouvir da boca do maior amigo do Rui as razões da sua morte. A saudade não passou, transformou-se: “Já não choro quando me lembro do Rui, não me tranco no quarto, ao escuro, por dois ou três dias, e não rejeito o lado bom da vida. Tenho saudades, Tozé. Mas não é tanto saudades dele. São saudades da vida que não chegámos a viver os dois”. Conversam, Alice quer saber notícias da Luísa, Luísa e Tozé separara-se dois anos após o regresso de Angola. Marcam encontro para o dia seguinte, Tozé não teve coragem de cumprir o acordo que fizera com o Rui.
A reportagem sobre as térmitas é convincente, a desinfestação é cara, há monumentos como o Convento da Esperança que estão profundamente afetados. Interpolam-se cenas da guerra, ganha realce o acidente que vitima Rui Tavares, este estava a jogar às cartas numa divisão, ao lado, um furriel a limpar a G3 descarregou inadvertidamente a arma sobre uma parede de fraca espessura, atingiu Rui Tavares no pescoço, esvai-se em sangue. Isto em Mucondo, não muito longe de Nambuangongo. Tozé está ao lado do Rui naqueles momentos de estertor. A reportagem continua, Tozé está no Convento da Esperança, onde se guarda a imagem do Santo Cristo dos Milagres, e ele lembra-se que o Rui nunca se separava de uma pequena medalha do Santo Cristo, trazia-a, sempre, pregada com um alfinete, no interior do bolso esquerdo dólmen. “Se me acontecer alguma coisa, pá, deixa-a ir comigo”.
Tozé percorre Ponta Delgada e descreve-a na perfeição, visita os estabelecimentos afetados pelas térmitas, toma notas. Continua as entrevistas, um biólogo assegura-lhe que é impossível erradicar a praga. O seu pensamento viaja para a guerra de Angola, e lembra-se da salalé, a formiga aí constrói em altura: “Muitas dessas construções, enormes, por vezes com mais de dois metros de altura, surgiam, quase da noite para o dia, na improvisada pista de aterragem do Mucondo. Em dia de avioneta tínhamos de arrasá-las. À picareta”. Alguém, na Direção Regional da Habitação, dá-lhe conta das comparticipações do Governo e dos empréstimos a juro bonificado para todas estas obras.
Tozé vai jantar a casa da Alice, as suas recordações viajam até Mucondo, Tobias, um guerrilheiro capturado, pedira-lhe insistentemente para ir buscar a família, o capitão e os outros alferes opuseram-se, parecia a armadilha descarada. A operação correu bem, reganhou-se a confiança da população. Alice pede a verdade, Tozé conta-lhe o acidente com a armada de fogo. A única mentira foi de que o Rui não sofrera muito, ele bem vira aquele ferimento e os borbotões de sangue saindo da jugular seccionada. Alice entrega-lhe uns apontamentos do Rui que vinham dentro das cartas, eram notas para um livro que pretendia escrever quando regressasse, o que dá aso a vastas rememorações, por exemplo:
“Cheguei a Angola com uma ideia errada do que acontece em combate. Soubesse que ia entrar numa guerra, pensava ter treinado o suficiente para enfrentar situações difíceis e, com um pouco de sorte, sair delas com vida. Mas não há um simulador para o medo. Nem treino para a estupefação ao som de uma rajada. De um momento para o outro somos invadidos, brutalmente, pela certeza de que alguém nos quer matar. O choque com a realidade é duro”. Todos aqueles apontamentos do Rui deram para recordar várias operações no Norte de Angola, havia ali notas de profunda indignação do Rui pela quase escravatura montada pelos fazendeiros:
“O que não revelava era a existência de uma cantina onde, a preços exorbitantes, vendia tudo o que aos desgraçados poderia interessar. Fornecia açúcar, arroz, farinha, feijão, mas também roupas, sapatos, rádios a pilhas, óculos de sol.
De tanto de endividarem, quase todos ficavam de um ano para o outro, cada vez mais presos. Trabalhavam, já, por menos de um terço do terço que lhes cabia. Uns míseros tostões. O grosso ficava nos bolsos do fazendeiro, para abater na dívida.
O motim que os bailundos desencadearam só não acabou mal porque fomos chamados a intervir. Foi lá o Rui com os seus homens. Como ele próprio disse, o 7.º de Cavalaria desta vez salvou o bandido”.
E veio a propósito o pedido do sargento Figueiredo de trazer duas ou três raparigas de Quibaxe para consolar a companhia, deu-se luz verde, a operação seria supervisionada pelo furriel enfermeiro. Tudo correu lindamente, as meninas regressaram um mês depois desfeitas em lágrimas, nunca tinham encontrado gente tão civilizada.
Caminhamos para o desfecho, o jantar termina e fala-se na manhã seguinte em irem ao cemitério. Desta vez, Tozé arranja coragem e entrega-lhe o envelope que Alice prontamente devolve, não se podia insistir, o fundamental fora a nobreza do gesto. Tozé acaba de ler as últimas notas deixadas pelo Rui: “O 25 de abril veio trazer-nos mais esperança. Não queremos morrer aqui. Estamos demasiado longe das nossas casas, das nossas mães e das nossas mulheres. Havemos de morrer, sim, mas não aqui. E morreremos amanhã, se Deus quiser, de velhice, de cancro, de colapso cardíaco ou de outra maneira qualquer”. Rui pensa “Morreremos Amanhã é um bom título".
Ainda há algumas lembranças esparsas daquela guerra. Mas algo aconteceu entre Alice e Tozé. Alice corresponde a um beijo mas responde prontamente: “Pensei estar livre. Mas não estou. A tua vinda fez-me recuar muitos anos. Reabriu feridas que já estavam curadas. Preciso de tempo para me situar, de novo, e para voltar à mulher que sou”. Reconhecem que ainda é muito cedo para eles, precisam de tempo. E despedem-se, já estão a preparar o reencontro. Tozé é um solitário, reencontrou o amor, está embevecido com S. Miguel.
Nós só morremos no dia em que mais ninguém se lembrar de nós nem de quantos combateram em África.
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14219: Notas de leitura (677): Do livro "Família Coelho", edição de autor, 2014, de José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (5): A Terceira Geração d'Os Coelhos (1)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Desta vez BS trouxe a "minha guerra" à baila.
Estes sim são domínios onde andei de arma em punho.
Na carreira de tiro ainda dei alguns tiros, mas a limpar a arma nunca a disparei.
Mas ainda um dia gostava de "abusar" da boa vontade e explicar como se exploravam os bailundos, bem explorados (contratados).
Porque eu também fiz trabalhos à base de contratados.
"O que não revelava era a existência de uma cantina onde, a preços exorbitantes, vendia tudo o que aos desgraçados poderia interessar. Fornecia açúcar, arroz, farinha, feijão, mas também roupas, sapatos, rádios a pilhas, óculos de sol.
De tanto de endividarem, quase todos ficavam de um ano para o outro, cada vez mais presos. Trabalhavam, já, por menos de um terço do terço que lhes cabia. Uns míseros tostões. O grosso ficava nos bolsos do fazendeiro, para abater na dívida.
O motim que os bailundos desencadearam só não acabou mal porque fomos chamados a intervir. Foi lá o Rui com os seus homens. Como ele próprio disse, o 7.º de Cavalaria desta vez salvou o bandido”.
"bandido" era o branco que enganava o preto.
Cumprimentos
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