1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa (ex-Ten Pilav, BA 12,
Bissalanca, 1972/74, hoje Coronel Pilav Ref), co-editor da Tabanca do Centro, com data de 6 de Janeiro de 2014:
Desafiámos o nosso camarigo José Belo, a viver há quarenta anos no extremo norte da Suécia, a descrever-nos o tipo de vida e as adaptações a que um lusitano se teve que sujeitar para viver num ambiente que para nós é difícil de imaginar... e de suportar...
A resposta está aqui, explicada pormenorizadamente por este nosso camarada.
Apreciem...
Miguel Pessoa
VIVER NA LAPÓNIA
José Belo(*)
Perguntam-me como se consegue (sobre)viver na Lapónia. Em primeiro lugar há que ter em conta que esta vastíssima área do Círculo Polar está enquadrada pelas fronteiras da Noruega, Suécia e Finlândia.
Não sendo propriamente países com dificuldades económicas, as realidades locais estão muito distanciadas das realidades árticas russas, para citar o exemplo mas próximo.
As auto-estradas e estradas que ligam os centros populacionais estão bem mantidas e a funcionar 365 dias por ano, independentemente das temperaturas, com um sistema de limpeza de neve e gelo, assim como os aeroportos locais, com carreiras regulares a funcionar também 365 dias por ano, independentemente das temperaturas extremas.
Muito importantes para a economia local (exportação que sai da maior mina Europeia de ferro situada em Kiruna, para o porto atlântico norueguês de Narvik) as vias férreas estão sempre abertas.
Um serviço de urgências, com helicópteros-ambulância estrategicamente distribuídos, garante um máximo de 30 minutos de voo até aos locais mais isolados.
Os custos destes serviços, somados ao facto de todas as auto-estradas, pontes (com excepção da que liga a sul a Suécia à Dinamarca), barcos transportadores de viaturas (serviço muito importante num país com inúmeros lagos) são obviamente muito elevados. Não será por acaso que os países Escandinavos, com a Suécia à frente, são mundialmente conhecidos pelos seus altos impostos.
Quanto ao "porquê" de eu viver largos períodos do ano em tal exílio, e procurando tornar uma longa história curta... A minha mulher é filha única de um conhecido industrial sueco com negócios na Escandinávia e nos Estados Unidos.
Este senhor mandou construir uma casa para convidar os amigos e outros industriais para umas férias exóticas, com passeios de trenó, pescarias várias, e nas horas vagas dar uns tirinhos nos animais selvagens circundantes.
Como não seria propriamente parvo, fez construir a casa junto do maior parque natural europeu (e dos mais espectaculares da Suécia), que é o de Abisko.
A casa está situada na margem norte do lago Torneträsk, precisamente a meio caminho da cidade fronteiriça sueca de Karesuando a nordeste, e o porto atlântico norueguês de Narvik a oeste.
A pequena localidade de Karesuando é a situada mais ao norte da Suécia, onde termina a estrada Europa-45 e a estrada do Reino-49.
Será talvez interessante para alguns uma vista de olhos às fotos aéreas do Google-Earth, tendo como referência a estrada que liga Kíruna a Narvik na costa atlântica. Aí poderão observar montanhas e lagos mais espaços infindáveis... mas casas?!
Cerca de 2/3 da população sueca vive a sul de Estocolmo e Estocolmo está a 1700 quilómetros lá para o sul daqui.
A Suécia tem uma área 14 vezes maior que Portugal com uma população menor (Para nos "situarmos", a distância da fronteira norte sueca à fronteira sul é a mesma que a da fronteira sul sueca à cidade italiana de Milão). Dentro deste contexto não se torna tão estranho o facto de o meu vizinho mais próximo viver a 200 quilómetros da minha casa… ou mais.
Como é que aqui se vive tendo em conta os Invernos de 9 meses e os 4 meses de escuridão total nas 24 horas do "dia", a somarem-se ao curto Verão de semanas em que o Sol nunca se põe?
Uma casa de madeira nórdica (e é importante ser de madeira!), com paredes duplas e largo material de isolamento intermediário.
Isolamentos extremos tanto em alicerces como no tecto.
Janelas de vidros duplos que criam uma almofada de ar quente entre eles.
Porta exterior dupla seguida de uma entrada que permita encerrar a porta da rua antes de entrar propriamente na parte residencial.
Uma boa caldeira dupla (!) de aquecimento a óleo, construída na cave da casa.
Um muito razoável depósito exterior (subterrâneo) para o óleo.
Óleo fornecido periodicamente por camiões cisternas.
A temperatura em toda a casa mantém-se entre os 22 e os 24 graus, sendo esta a recomendada como saudável. Nesta zona ártica tanto o óleo como a electricidade são subsidiados em percentagens muito elevadas pelo Estado, numa política inteligente de procurar manter alguma ocupação populacional da área.
Aquecimento eléctrico em forma de serpentina envolvendo os canos que ligam o furo de água sob a casa (Esta água obtida de furos profundos mantém uma temperatura de 8 graus positivos ao longo do ano).
Um "pequeno detalhe" a não esquecer... os esgotos. Os canos são também electricamente aquecidos até atingirem o depósito exterior, também subterrâneo, sendo este esvaziado periodicamente pela mesma firma que fornece o óleo para aquecimento.
Quanto a alimentos, e tendo em conta as quantidades necessárias para garantir aprovisionamentos confortáveis, o problema é inverso.
A serem guardados em arrecadação exterior esta tem que estar aquecida (!!!) às temperaturas normais de um frigorífico, que estão à volta dos 8 graus positivos.
Arcas congeladoras também são importantes para guardar durante todo o ano as grandes quantidades de carne selvagem aqui abatida e consumida, para além dos diversos peixes locais como a truta e o salmão.
Entrando em detalhe, um alce fornece muitos mais quilos de carne consumível que um cavalo. As renas funcionam um bocado como os porcos na Lusitânia... tudo se consome, desde o lombo, filé, febras, perna fumada, sangue para enchidos etc.
A isto somam-se as lebres e perdizes (ambas brancas!), alguns tipos de gazelas e... por muito que aí me não acreditem... enchidos de carne de urso (Um pouco como o nosso paio)!
E, um detalhe importante: Toda esta lista, tanto de carnes como de peixes, é obtida a umas centenas de metros da casa sem ser necessário o uso de dinheiro.
Quanto a bebidas para fins "medicinais... não há casa sem um alambique (dos antigos em cobre) que não produza vodka com percentagens de álcool que aí seria vendido nas farmácias…
Para frutas, vegetais, vinhos, drogarias e tudo o resto, tanto a cidade sueca de Kíruna como a norueguesa de Narvik estão a cerca de 200 quilómetros.
Tenho que concordar que talvez seja "um pouco" para se comprar tabaco ou o jornal da tarde, mas por outro lado o bacalhau norueguês que para aí vai é em grande parte da região de Narvik, só que... aqui se compra a menos de 80% do preço que custa na Lusitânia. Deste modo, bacalhau e "coubinhas quentes" por aqui não faltam.
Quanto ao isolamento, ou dificuldades de transporte, é claro que quando
os temporais de neve, gelo e nevoeiro apertam não se pode esquecer que
estamos muitas centenas de quilómetros dentro do Círculo Polar.
Dá por vezes trabalho extremo mas é um preço que vale a pena pagar tanto pelo sossego, silêncio quase místico, e a grandiosidade desta natureza envolvente, nas suas montanhas, bosques, rios e lagos que se veem de todas (!) as janelas da casa.
Detalhes práticos... Um bom Jeep com tração às quatro rodas, de modelo de fábrica aconselhado para estas condições extremas.
Pelo menos duas "scooters" para a neve. Uma para transporte pessoal e outra para rebocar trenós de cargas várias.
Existe um aparelho muito prático que consiste essencialmente numa larga pá facilmente adaptada à frente do Jeep, que permite remover a neve e gelo nas estradas secundárias que ligam as casas às estradas principais (as tais que têm a neve continuamente removida por empresas do Estado).
No que me diz respeito, a casa fica situada a 10 quilómetros da estrada principal.
A ter que deslocar-me coloco o aparelho á frente do jeep, e ao atingir a estrada principal o mesmo é facilmente colocado sobre o tecto da viatura. É aconselhável repetir esta operação nas estradas secundárias (mesmo que não se tenha que viajar) para evitar um acumular demasiado de neve e gelo.
Mas, e como tudo na vida, com um pequeno pagamento "amigo" aos condutores que limpam dia e noite as estradas principais, estes por vezes "enganam-se" e fazem também uns percursos pelas estradas secundárias. Tendo em conta as centenas e centenas de quilómetros que limpam dia e noite… não se notam estes "enganos" a nível central.
Quanto a renas à frente dos trenós, ou os cães, claro que aqui os usamos. Mas definitivamente não nos trabalhos ou actividades do dia a dia.
As renas... são mais para passear os netos ou outros visitantes.
Os cães de trenó... servem para algumas passeatas em busca de bons locais para abrir um buraco no gelo para a pesca, ou, mais uma vez, para aquando da vinda de alguns visitantes "turísticos", tanto suecos como dos Estados Unidos.
Em verdade, os cães servem hoje mais para companhia do que para transporte útil.
Mas se julgam que os cães comem pouco (8 de trenó e 4 de reserva)... posso garantir que é um alto consumo "por quilómetro"... mesmo quando estão parados! E não é propriamente ossos o que comem!
Nestes bilhetes-postais românticos não se pode esquecer que, hoje em dia, as manadas de renas em deslocamentos são seguidas durante o Inverno por modernas e potentes scooters para a neve, e nos reagrupamentos de Primavera e Verão são utilizados helicópteros. Desde o ano passado começaram a ser aqui também utilizadas os modernos "drones" aéreos para esse fim.
Para a minha família, esta casa mais não é que um refúgio de paz.
Para a manter com os níveis de conforto, modernidade e funcionalidade neste isolamento extremo, é claro que se torna necessário um custo económico considerável e, não menos, um planeamento contínuo e sempre bem antecipado.
As profissões, tanto da minha mulher como a minha, permitiram, felizmente, os largos períodos em que aqui nos refugiámos.
Já aqui me visitaram alguns Lusitanos amigos, e por esta zona passeou um simpático casal frequentador dos almoços da Tabanca do Centro.
Aos restantes… Sejam bem-vindos!
José Belo
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Nota: Boa parte das fotos apresentadas neste texto foi retirada do blogue da Lapónia, http://laplandnearkeywest.blogspot.pt/, com a natural autorização do nosso camarada José Belo.
Os nossos agradecimentos.
Miguel Pessoa
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Notas do editor
(*) José Belo foi Alf Mil Inf na CCAÇ 2381, (Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70), actualmente é Cap Inf Ref e vive na Suécia)
Último poste da série de 13 de novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13886: Da Suécia com saudade (47): A ajuda sueca ao PAIGC, de 1969 a 1973, foi de 5,8 milhões de euros (Parte VII): E depois da independência e até 1994, atingiu os 2 mil milhões de dólares! (José Belo)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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11 comentários:
Há que cumprimentar o "instigador" Miguel Pessoa e, principalmente, o "respondente" José Belo por este belo texto tão informador para os aqui residentes (assim a uma distância do sul da Suécia quase igual à do norte a sul da mesma).
MAS, aquilo de que mais gostei foi do "... silêncio quase místico...". (que não tem nada a ver com "tosta mística", mesmo que pudesse ser feita com fiambre de rena).
Abraços
Alberto Branquinho
Sem querer cair na cantiguinha do Zeca Afonso "o que faz falta"...tenho que admitir que "o que por aqui me(!) faz falta" é o humorismo lusitano.
Principalmente o do tipo..."COM/SISO"...como o do meu Amigo e Camarada Alberto Branquinho.
Um grande abraco do José Belo.
De Pequim à Lapónia,tudo depois da Guiné, apenas a continuação da viagem, o nosso estuporado, depurado estralejar dos dedos, à mistura com o golfar do sangue no coração.
O imenso mundo é sempre tão pequeno!
E nós portugueses, que embarcámos um dia em todas as caravelas, (Uiges e Niassas)contra ventos, contra a razão, contra as monções, ainda na descoberta e impossível pacificação do mundo. Contra o bom-sendo, com cem mil brisas.
Enraizados na Lapónia,
em Xangai, na Florida, em todo o lado, com a "terra portuguesa para nascer, com todo o mundo para morrer", como explicou exemplarmente o nosso Padre António Vieira, em finais do sécuulo XVII.
Abraço,
António Graça de Abreu
Gostei de ler este "conto", tão bem descrito que me arrepiei de frio.
José Belo aqui na varanda marca +11º e dentro de casa 20. Sou friorento e era penoso para mim viver na Lapónia. Há dias escrevi (facebook)por debaixo de uma foto, vinda de um banco de jardim no Canadá,com uma irmã de minha mulher nele reflastelada: aqui temos mais frio na rua ou em casa do que vocês por aí...roupas e casas, por aqui, pouco preparadas para os -1 e os +35/40.
É tudo uma questão de habito.Protesto com o frio aqui e com o calor no Alentejo, mas vive-se com o humor do Branquinho, a poesia ou patrioticas frases do AGA e, ainda bem que o Miguel Pessoa te levou a escrever. Quantos graus estarão a 10.000metros de altitude? Não deitar op braço de fora...e continua a enviar essas fotos e escritos...Abraços, T.
Brrrrr...
Neste momento..lá fora..estão -3,cá dentro não sei.. mas estou quentinho.
Confesso que eu jamais conseguiria adaptar-me a esse frio e principalmente à escuridão..daria em maluquinho.
É uma das minhas debilidades..não me adapto ao frio..que saudades do calor da Guiné.
Sabendo-se que por cada 1000 m em altitude a temperatura diminui 6º..a 10 km de altitude é em média -60º.
Em latitude não sei mas não é proporcional..a corrente do golfo do México faz com que aqui na Europa as temperaturas sejam mais amenas do que na América do Norte à mesma latitude.
O anti-ciclone dos açores é o grande culpado deste frio..deslocou-se para sul e deixa entrar este frio vindo do ártico..não há direito..não estamos preparados para isto..e os friorentos como eu sofrem.
Gostei muito da descrição ambiental do camarada José Belo ..não é para me gabar mas é mais ou menos como eu imaginava.
ab
C.Martins
Imagino que o José, que é lusolapão e não é parvo, tire partido do melhor da Suécia e da Florida (não digo já dos EUA)... Imagino-por isso em Key West...
Há um bocado, à hora do almoço, estava a escrever-lhe o seguinte:
" Se estivesses em Lisboa, convidava-te, a ti e aos teus, para comer um cozido à moda de Candoz...feito pela 'tia' Alice (que é uma mulher nortenha). Em dia de sol e frio, com requeijão, queijos e tintol do Alentejo, mais os amigos e a lareira, a vida pode ser perfeita... por umas horas!... O João infelizmente não está, foi dar um concerto a Valladolid... Está tudo coberto de neve por lá... Bom, chegaram os convidados. Abraço grande. Luis"...
... Zé, ha tua resportagem está perfeito... Fico com ganas de um dia poder ir provar o teu vodca... Que continues a ser feliz e livre com quem amas... Luis
Vou replicar aqui o comentário que deixei na "Tabanca do Centro".
Acabei de ler.
De um fôlego!
E fiquei a tentar imaginar-me nessas situações.
E não consigo verbalizar.
Meu caro José Belo, obrigado por esta partilha. Por ela sinto que fiquei mais enriquecido de conhecimentos e não posso deixar de dizer que fiquei muito impressionado com a organização que referiste e também com a coragem que é necessário ter para passar mais que 15 dias nessa paz, nessa calma, mas também nesse isolamento.
Abraço
Hélder Sousa
"A felicidade está onde nós a pomos, mas nós nunca a pomos onde nós estamos"...
Provérbio português
Amigo José Belo, e se quatro reformados quizerem jogar uma suecada, também têm uma mesinha no jardim da freguesia?
Ou um joguinho de malha ao Domingo enquanto se ouve o jogo da bola?
Cumprimentos
Caro António Rosinha.
Posso juntar à lista de melancolias várias...um cozido à portuguesa entre amigos da Tabanca do Centro?
Umas sardinhas assadas em Peniche?
Uma acorda de marisco na lisboeta cervejaria Trindade?
Uma ginja do Montez em noite de lua cheia de Óbidos?
Uns rojöes em Caminha?
Um cálice de vinho do Porto na Régua?
Uma santola na Ericeira?
Um passeio pelo paredäo do Tamariz a Cascais?
Uma volta completa por todos os bares das madrugadas de Lagos?
Um mergulho na Arrábida?
Um ensopado de borrego em Reguengos de Monsaraz?
Um cálice de cognac na Pousada de Estremoz?
E,näo menos,esta conversa e um abraco em Português?
É um relato pormenorizado da forma como se vive e convive nessas terras distantes de onde vem o bacalhau…
Não sei se a descrição poderia ser mais bem feita do que aquela que nos faz o José Belo, sei é que nem todos nos conseguiríamos adaptar, não digo viver/sobreviver, refiro-me mesmo a adaptar a um clima onde o sol pouco brilha e a noite é rainha.
Como Alentejano que sou, o Sol tem uma influência predominante na minha maneira de ser e estar, não me imagino tanto tempo com tão pouco Sol.
Obrigado José Belo por nos explicares o que acontece se nos descuidarmos a passar aí muito tempo. É que mesmo com todas as condições onde até os esgotos são aquecidos, compreende-se, prefiro ir aguentando por aqui, com gente fria e insensível. Tenho esperança que isto ainda vá, não sei quando, mas há-de ir.
Um abraço,
BS
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