Décimo terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Já passava da meia-noite, como a nossa mente é jovem,
pois agora pouco dormimos, sentamo-nos em frente ao
computador, abrimos a página das mensagens e, um tal
Vítor Carvalho, procura companheiros criptos do ano de
1964\66, e mais, quem tivesse passado pelo
aquartelamento da Trafaria.
Era demais, será que... será ele... aquele companheiro
inteligente, magro, muito bom em tudo o que fazia, mas
sobretudo na disciplina de ginástica, parecia que tinha sido
treinado para fazer parte dos atletas que naquele tempo
iam aos “Jogos Olimpicos”, tal era a desenvoltura com
que nos deliciava naquelas acrobacias, pois o instrutor
dizia, dez exercícios deste modo, todos acabavam
cansados, o Vítor continuava naquelas corridas
desgastantes para a Costa da Caparica, por vezes levava
a minha espingarda e, mesmo assim, chegava na frente.
Era mesmo ele, e responde-me em seguida, dizendo:
“...quanto eu adorava apanhar mais alguns como te
apanhei a ti, deu-me uma alegria enorme, tenho
esperanças de apanhar ainda mais algum”.
“...lembras-te quando íamos fazer os crosses até à Costa
da Caparica, e o nosso amigo alferes Coutinho nos levava
para a praia e para um café no centro da vila, onde
bebíamos o nosso cafezinho e o grande Coutinho pagava
a despesa?”.
“...também tinha o melhor pelotão, éramos famosos,
éramos o 2.º pelotão. Tivemos coisas giras, tais como
duas que me recordo bem, uma foi na parada, estávamos
a marchar mas numa agradável cavaqueira e o oficial de
dia, o Capitão Oliveirinha mandou parar o pelotão, cujo "comandante” era o instruendo Brandoa, que dava umas
vozes em idioma “marroquino”, muito à maneira dele, e o
dito capitão fez-nos marchar em ala, não sei se te
recordas, era marchar em frente com as duas filas, e
fizemos isso impecavelmente e o Oliveirinha disse-nos
que realmente estava rendido ao 2.º pelotão”.
“...outra vez foi alguém que foi dizer que o 2.º pelotão ia
para a mata contar anedotas e o comandante ordenou ao
Coutinho que ficássemos no quartel a fazer ginástica com
arma, pois nem isso nos tirou a nossa disciplina, e
mesmo com o comandante na janela estivemos
impecáveis”.
Pois, do companheiro “Brandoa”, cujo apelido era
Lourenço, era da Brandoa, agora até nos lembramos
muito bem, falava “marroquino”, “apache”, “cheyenne”,
“Cherokee”, “Sioux”, “Navajo” e, talvez um pouquinho de
“Balanta”, oxalá esteja vivo, leia esta mensagem e
também apareça por aí.
O nosso companheiro Vítor, defendendo a bandeira do
seu País, sem culpa absolutamente nenhuma, que uma
tal personagem, que dava pelo nome de Luís Mendes de
Vasconcelos, por volta do ano de 1617, após aquelas
incursões portuguesas na África Austral, invadisse a
aldeia de N’Dongo, em Luanda, território de Angola, e
tivesse carregado 60 cativos a bordo do navio negreiro
“São João Baptista”, enviando-os para o porto de Vera
Cruz, no México. Ninguém ao certo sabe se o negócio era
rendoso, houve alguns séculos de história, talvez maior
que a “espada de D. Afonso Henriques”, mas o
companheiro Vítor, tal como nós, num daqueles anos de
guerra no Ultramar, não no navio negreiro “São João
Baptista”, não indo para o porto de Vera Cruz, mas sim no
navio português “Vera Cruz”, indo talvez para a aldeia de
N’Dongo, em Luanda, território de Angola.
Este trocadilho faz alguma confusão, mas
bate quase certo, qualquer dia vamos contar a
continuação da viajem do navio negreiro “São João
Baptista”, mas agora falemos do companheiro Vítor, que ia
fardado, equipado, mentalizado e treinado para combate,
tal como nós, para defender o seu País, a sua bandeira, a
tal mãe Pátria, que muitos jovens, hoje, não sabem o que
isso é, passou lá dois anos, sobreviveu e regressou,
seguiu a sua vida, completou os seus estudos, que a
guerra interrompeu, criou a sua família e, está aí a dar
notícias, passado mais de cinquenta anos.
Isto não é absolutamente maravilhoso!
É mais um dos
nossos, anda por aí, procura mais companheiros do curso
da Trafaria, dos Criptos do ano de 1964.
Tony Borie, Abril de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14460: Libertando-me (Tony Borié) (12): Quatro da madrugada. Estou acordado
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Tony
Aqui nos contas mais uma feliz história de reencontros.
Ainda bem que foi possível.
Nesta época da nossa vida, estas situações são como que injecções de vitaminas.
Carregamos as nossas lembranças, recuamos um bocadinho no tempo e logo se chega à conclusão que "valeu a pena", principalmente quando os afectos nos vêm a aquecer o coração.
Deves perceber e calcular como foi então agradável o X Encontro que tivemos em Monte Real.
Abraço
Hélder S.
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