sábado, 25 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14520: Memórias de Gabú (José Saúde) (54): Amarras do medo



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua magnífica série.

As minhas memórias de Gabu
Amarras do medo

Manietados pelas amarras do medo, fomos antigos combatentes que, não obstante a nossa jovialidade, conhecemos os horripilantes terrores da guerra colonial. No horizonte de além-mar vislumbravam-se, a espaços, sinais de esperança. Uma esperança por todos ambicionada e literalmente com honra concretizada.

Porquê estas breves palavras de liberdade? Há 41 anos que as armas justamente se calaram nas antigas províncias ultramarinas. Eu, furriel miliciano de Operações Especiais/Ranger, tive o condão em pertencer a uma lista imensa de camaradas que prestávamos serviço militar obrigatório na Guiné.

Em Gabu cruzei a guerra com a paz. Vivi intensamente os momentos que se seguiram após a Revolução dos Cravos. Os primeiros contactos com os guerrilheiros do PAIGC e o subsequente duvidar da facilidade deparada. Estávamos em liberdade e o inimigo de ontem eram os homens que agora conviviam libertos das amarras do medo.

Lembro-me de as cavaqueiras, precisamente no bar de sargentos de Nova Lamego, entre antigos opositores no palanque da peleja. Recordo, infelizmente, as armas que outrora serviram, única e exclusivamente, para matar outros homens. Os confrontos diretos onde os horripilantes sons das armas se difundiam num horizonte manchado pela negridão de uma África sempre harmoniosa. Porra, porquê aquela malvada guerra? O regime novo assim o ordenava e nós lá partíamos desconhecendo o destino.

Escalpelizando esses enviesados trilhos guineenses, somos forçados a mergulhar em realidades que tendem cair no limbo do esquecimento, essencialmente por parte daqueles que fogem do tema como o diabo foge da cruz. Não fomos e não seremos reconhecidos por uma gentalha de malfeitores que desconhece o sofrimento dos soldados portugueses nas “trincheiras”. Ponto final.

Todavia, existe uma certeza que ainda nos prende o coração: miúdos de 20, 21, 22 e 23 anos foram heróis numa guerra para a qual foram atirados à força e mal preparados para lidar com a guerrilha.

Conheci essa indesmentível verdade. Coloco-me, justamente, no leque de “putos” que tinham como missão comandar outros “putos” apesar do momento hostil vivido. Não temiam a imprevisibilidade da densidade de um mato que escondia inesperados encontros sempre indesejados. Iam em frente. Desafiavam o medo. 

O 25 de Abril foi o momento solene para todos os camaradas que combatiam nas três frentes de guerra - Angola, Moçambique e Guiné - se libertassem das amarras do medo e gritassem bem alto “viva a liberdade”.

Os alaridos das armas deram então lugar às tréguas. Os inimigos definiam-se em abraços fraternos. Porém, existia em cada um de nós uma imensurável raiva do passado. Revíamos os camaradas mortos, os estropiados, os feridos com menos gravidade e desconhecíamos o futuro. Um futuro onde hoje damos contas de camaradas que jamais conseguiram reencontrar-se com a estabilidade emocional numa sociedade que os renega. Sofrem do stress pós traumático de guerra. 

Camaradas, é tempo de vivermos Abril, é verdade, mas no nosso baú de antigos combatentes existem mágoas que ainda mexem com o nosso ego. 


Revejo a portas-de-armas do nosso quartel em Nova Lamego. Nativos que procuravam quiçá ajuda. Nas suas caras, com idades transversais, notavam-se sinais de medo e de incertezas no futuro. Tentavam um presumível “assalto” ao quartel. Queriam arroz e outros bens alimentícios. A sua ingenuidade parecia atroz. As forças da ordem no futuro imediato chamavam-se PAIGC. Eles, membros de uma população com a qual habitualmente convivíamos, por lá ficaram sujeitos a um novo regime e nós partimos.

Sinais de Abril que cruzavam fronteiras e que libertavam as amarras do medo de um exército que ambicionava o seu regresso a casa. E foi assim o culminar da Revolução dos Cravos em Abril de 1974.

Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


3 comentários:

José Pedro Neves disse...

Bom dia Grande Amigo e Camarada Ranger Saúde. Como entendo as tuas palavras, referentes aos momentos de angustias e medos, que passámos, enquanto jovens e vermos tombar junto de nós, outros jovens, com quem minutos antes tínhamos estado á conversa ou a tomar o pequeno almoço. Depois do que passámos, é triste ver alguns Camaradas, com graves problemas sociais, económicos e mentalmente afectados, sem que uma mão Amiga lhes seja estendida, sendo até ignorados, pelo poder politico. Mas a minha maior indignação, vai para os que tombaram e que mencionas, não tendo o "direito" de serem transladados, para que as suas Famílias possam finalmente fazer o seu luto. Infelizmente, Abril não foi para todos. Um Grande Abraço Amigo.

Abílio Duarte disse...

Este Quartel estava em construção no meu tempo (1970), junto á estrada para Bafatá.

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

O que o José Saúde aqui refere é, em larga medida, os momentos da "passagem de testemunho".
É sempre difícil prever o futuro.
Pode-se conjecturar e até acertar mas é sempre um exercício aleatório. Há, no entanto, situações que não é preciso "ser bruxo" para antecipar os problemas...

O José Saúde dá conta da satisfação com que foram recebidos, pelos nossos militares, as notícias, os sinais, que a "Revolução dos Cravos" foi dando. E reagiram com assentimento, segundo percebi, e se sabe....
Já a população, sabendo da mudança "dos Senhores", naturalmente que estaria apreensiva pois, naquele caso, Gabú e arredores, tinham sido também hostilizados pelos guerrilheiros e suspeitavam que o futuro próximo, sem a tropa portuguesa por perto, fosse 'problemático'.

Seja como for, esses tempos já passaram, as experiências por que passámos, são nossas e não as podem tirar.

Abraço
Hélder S.