Décimo nono episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
As pessoas mais ou menos da nossa idade, quando as
coisas não correm em conformidade com os seus
desejos, normalmente dizem: “É o destino”.
Neste caso, ”O Destino” foi termos nascido nesse
“cantinho à beira-mar plantado”, foi termos idade adulta
naqueles anos para sermos militares, participando na
“Guerra do Ultramar”, que Portugal manteve
“orgulhosamente só”, foi sermos perseguidos pela então
“Polícia do Estado”, foi vermos alguma oportunidade de
vida, de liberdade, podendo criar uma família, na
emigração, no outro lado do Atlântico, muito longe desse
sol radiante, onde às vezes fazia geada pela manhã, a
que os nossos vizinhos chamavam “orvalho”, foi ter
havido uma greve, na companhia aérea que viaja pelo
mundo com a bandeira de Portugal, houve atrasos, ainda
os há, mas nós, não pedíamos mais nada, só adquirir
dois normais bilhetes para ter lugar nos aviões, daqui de
New Jersey para onde nos queríamos deslocar, mais exactamente para atravessar o Atlântico,
usando como destino a cidade de Lisboa.
Não era nossa intenção ir para uma aventura em
qualquer floresta no Bali, numa perspectiva diferente
desta incrível ilha, onde os arrozais podem cobrir cerca
de vinte por cento de toda a ilha, com densas florestas do
interior, mas nas áreas mais secas, podemos esperar um
matagal, com algumas savanas, onde os cones
vulcânicos nos surpreendem com paisagens estéreis.
Não era nossa intenção ir para as “Cataratas de Iguaçu”,
na fronteira do Brasil com a Argentina, onde
chamam “Cataratas del Iguazú”, onde existe um conjunto
de cerca de 275 quedas de água, localizado na bacia
hidrográfica do rio Paraná, com cerca de 250 mil hectares
de floresta subtropical, que já é considerada Património
Natural de Humanidade.
Não era nossa intenção ir conhecer uma qualquer Igreja
perdida na Ilha de Lewis, no mar da Escócia, ou ver a
cidade arqueológica Maya, de “Chichén Itzá” cujo nome tem raiz Maya, que significa "pessoas que
vivem na beira da água", no norte no México, localizada
no estado de Lucatã, que funcionou como centro político
e económico da civilização Maya, onde ainda hoje se
encontram várias estruturas como a Pirâmide de
Kukulkán, o Templo de Chac Mool, a Praça das Mil
Colunas ou o Campo de Jogos dos Prisioneiros, que
podem ainda ser admiradas e são demonstrativas de um
extraordinário compromisso para com a composição e
espaço arquitetónico, e claro, também foi declarada
Património Mundial da Unesco.
Não era nossa intenção ir visitar o “Monte Merapi” na
Indonésia, (Merapi, em indonésio significa “Gunung
Merapi”), que por sua vez significa Montanha do Fogo,
que é um vulcão localizado na ilha indonésia de Jawa,
que atinge os 2968 metros de altitude, e que tem a
particularidade de ser o vulcão mais activo da Indonésia,
país que tem a maior densidade de vulcões do mundo.
Não era nossa intenção ir de visita à cidade perdida
“Machu Picchu” também chamada "cidade perdida dos
Incas”, que é uma cidade pré-colombiana, bem
conservada, localizada no topo de uma montanha, a cerca
de 2400 metros de altitude, no vale do rio Urabamba, no
actual País, chamado Peru, que é provavelmente o
símbolo mais típico do Império Inca, quer devido à sua
original localização e características geológicas, quer
devido à sua descoberta tardia, somente no ano de 1911,
onde apenas cerca de 30% da cidade é de construção
original, o restante foi reconstruído. As áreas
reconstruídas são facilmente reconhecidas pelo encaixe
entre as pedras, mas a construção original é formada por
pedras maiores, com encaixes com pouco espaço entre
as rochas, dividindo-se em duas grandes áreas, a
agrícola, formada principalmente por terraços e recintos
de armazenagem de alimentos, e a outra, a urbana, na
qual se destaca a zona sagrada, com templos, praças e
mausoléus reais.
Estava longe do nosso pensamento ir até às dunas de
areia, no deserto da Austrália, que por lá chamam “Kurnell Dunas”,
está estimado em cerca de 15.000 anos de idade, sendo
formadas quando o mar atingiu o seu nível actual,
começando por se estabilizar onde uns rios que por lá
existiam fluíram para o sul-leste sob o actual sistema de
dunas e, se juntou ao oceano, claro, isto resultou no
isolamento de Kurnell, que era uma ilha do continente, e
os rios, eventualmente, ficaram bloqueados com o
acumular da areia e sedimentos, e é fácil compreender,
com os rios assoreados gradualmente, foram forçados a
mudar seu curso.
Também não era nossa intenção ir ao “Palácio de Jaipur”,
na Índia, que inclui os palácios Chandra Mahal e
Mubarak Mahal e outros edifícios que formam o
complexo do Palácio em Jaipur, a capital do Estado de
Rajasthan, que foi residência do marajá de
Jaipur, o chefe do clã Kachwaha Rajput, onde hoje se
abriga um museu, mas a maior parte deste complexo
ainda é uma residência real, onde se incorpora um
conjunto impressionante de pátios, jardins e edifícios,
onde os seus arquitetos conseguiram uma fusão do
Shilpa Shastra da arquitetura indiana com Rajput, Mughal
e, alguns estilos europeus de arquitectura.
Longe do nosso pensamento estava ver as “Cataratas
Vitória” a que também chamam “Quedas Vitória”, que são das mais espectaculares do mundo,
situando-se no Rio Zambeze, mais propriamente na
fronteira entre a Zâmbia e o Zimbabwé, que têm cerca de
1,5 km de largura e uma altura máxima de 128 metros,
vistas em 1855 por um explorador escocês, que foi o primeiro ocidental a vê-las,
e que lhes deu o nome em honra da rainha
Vitória, mas o nome do local é Mosi-oa-Tunya, que quer
dizer "fumo que troveja". Diz-se que o explorador
português Serpa Pinto também contribuiu para que
aquela zona ficasse mais acessível o que ocorreu por
volta do ano de 1905, com a construção de uma linha do
caminho de ferro.
Não queríamos ir ao Curral das Freiras na nossa Ilha da
Madeira, onde no princípio da colonização possuía
apenas a designação de Curral, ou Curral da Serra,
derivando esta do facto de ser este local um centro de
pastagens, mas a passagem da denominação de Curral
ou Curral da Serra para a de Curral das Freiras terá
acontecido segundo uns autores entre 1492 e 1497, aquando da passagem da propriedade dos terrenos para a
posse das freiras do convento de Santa Clara, segundo
outros, dizem, só se tenha verificado mais tarde, em 1566
aquando do saque da cidade do Funchal por corsários
franceses, o que fez com que as religiosas do convento
de Santa Clara se refugiassem ali, nas suas
propriedades, talvez para não serem violadas.
Não vamos dizer que não queríamos ir à Ilha de Kiribati
na Micronésia, que é o primeiro país do mundo a mudar
de ano, na ilha de Kiritimati, devido ao fuso horário, pois
Kiribati é o país mais adiantado em questão de horário e,
como consequência das mudanças climáticas em curso
no planeta, especula-se que a existência do país esteja
ameaçada, estando as ilhas de Kiribati condenadas a
desaparecer.
Porque o texto já vai longo, não vamos dizer que não
queríamos ir até à Patagónia, onde existe uma grande
concentração de “pinguins”, pois na verdade o
queríamos era que todos chegassem a um acordo, não
houvesse greves, não houvesse atrasos, era podermos
adquirir dois bilhetes normais, numa data normal, num
dos aviões que descolam de New Jersey, atravessam o
Atlântico, aterrando pela madrugada nesse País distante,
na Península Ibérica, era ir ver as nossas raízes, ir
cumprir uma “promessa” da esposa e companheira,
conhecer pessoalmente alguns companheiros
combatentes que já considero a minha segunda família,
ver aquela mulher descendo a montanha, a caminho da
sua aldeia rural, com uns restos da planta de milho às
costas, desviando-se dos arbustos que lhe tocam
constantemente nas pernas, ferindo-a, mas não se
queixa, vem descalça, não usa, ou talvez nunca usou
sapatos e, quando lhe falam, podemos capturar na sua
face um sorriso inocente de bondade, fazendo com que
nós, a viver por aqui, viajantes do mundo, nos sintamos
portugueses, mas a viver e a adquirir os costumes duma
terra estrangeira.
Seja qual for a razão, estas são as histórias que
transformam o emigrante, viajante do mundo, não
importando os anos de ausência do seu País, nunca
perdeu as suas raízes, sendo talvez um verdadeiro
“Indiana Jones”.
Tony Borie,Maio de 2015
____________
Nota do editor
Último poste da série de 24 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14655: Libertando-me (Tony Borié) (18): Os carapaus em molho de escabeche da Ti'Glória
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Nitidamente Tony, és um verdadeiro compatriota descendente de um Bartolomeu Dias, de um Pedro Álvares Cabral e como dizem que Colombo é de Cuba do Alentejo, terás o ADN desta gente toda.
Mas quem te podia prender nestas minúsculas quatro paredes rectangulares?
Com tanta "gana" de liberdade quem segura quem?
Até admira como houve portugueses que nunca viajaram e podiam-no fazer.
Apenas foram uma única vez Mérida aqui a dois passos.
Cumprimentos
Tony tens mesmo que mandar reservar os bilhetes para Abril de 2016 e marcares encontro no almoço de convívio anual da Tabanca Grande.
Um abraço
Colaço.
Enviar um comentário