segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Guiné 63/74 - P15317: Os nossos seres, saberes e lazeres (122): No meu tempo chamava-se Pão Por Deus, hoje chamam Halloween, não sei por alma de quem (Juvenal Amado)

1. Em mensagem de ontem, 1 de Novembro de 2015, o nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), fala-nos do Pão Por Deus de ontem em contraponto com o Hallween de hoje.

No meu tempo chamava-se Pão Por Deus, 
Hoje chamam Halloween, não sei por alma de quem

Nos Casais dos Chãos da Mendiga este dia era de festa.

Fazia a minha avó paterna anos e era dia de Todos Os Santos que para mim e minha irmã se traduzia no dia de Pão por Deus.

Íamos no dia anterior à tarde de camioneta dos Claras até Porto de Mós, onde esperávamos por um autocarro que seguia para a Mendiga e que nos deixava no Cruzeiro, onde estava o meu avô à nossa espera com uma candeia com que alumiava o caminho. Era um carreiro de terra onde as pedras, algumas enormes, o tornavam mais próprio para as cabras do que para as pessoas.

Andávamos bem mais de meia hora, carregados com mercearias que eram difíceis de comprar na aldeia. Só havia uma loja chamada de “ferro-ó-bico”, que vendia coisas pouco mais primárias como velas, petróleo, tabaco, café e café de cevada, etc. Era uma loja pequeníssima, onde as coisas se amontoavam num equilibrismo duvidoso e mesmo assim, muito isolada e afastada do povoado. Não vou jurar, mas penso que se acarretavam os géneros de mula, pois não me recordo de ver caminho suficiente largo para lá passar um carro mesmo que de bois. Na aldeia também havia uma taberna de um tio do meu pai, que foi assassinado com um tiro de caçadeira nas costas por se negar a vender um copo de vinho ao um homem, que já estava demasiado bêbado no seu entender. Coisas de todos os tempos como se sabe.

Mas era assim que se vivia naquela terra agreste onde a maior riqueza era a azeitona e onde as terras, para serem amanhadas, se tinha de retirar pedra e mais pedra. Dizia o meu pai com o humor muito dele, que “aquilo é que era uma terra boa para agricultura, até dava pedra sem ser semeada”.

Na maioria das casas, de pedra nua por fora, criava-se um porco que dava arranjo para um ano inteiro após morto e metido na salgadeira.

Mas eu e a minha irmã, ansiávamos por aquele dia. Logo de manhã muito cedo bebíamos café que sabia a fumo, comíamos pão praticamente com oito dias, grelhado nas brasas e abalávamos de saca às costas com um rancho de garotos, que inicialmente desconfiados logo nos aceitavam de bom modo. Corríamos a aldeia e as aldeias todas da região batendo a todas as portas, pedindo pão por Deus e salvo raras excepções ninguém nos negava as nozes, os figos e as brandeiras de erva doce e azeite que faziam as minhas delicias. Está claro que primeiro no nosso caso, que éramos de fora, tínhamos que responder invariavelmente a um pequeno inquérito tal como “donde és menino”? Eu respondia então que era neto da Maria Cordeiro e do Lino Amado e que vinha de Alcobaça. Antecipava-me assim à próxima pergunta e recuperava do atraso. Logo um sorriso se abria, pois ali eram quase todos primos e primas e acabavam com umas palavras sacramentais tais como, “infalivre estão muito bem informados”.

A palavra “Infalivre” servia praticamente para todas as situações. Exemplos: Infalivre está muito gordo, infalivre está muito magro, ou alto, ou se o tempo estava bom ou mau, etc. Enfim, o termo procedia quase tudo.

As madrinhas faziam uns bolos maiores e mais elaborados para oferecer aos afilhados/as de véspera. Eram de farinha diferente com limão e algum açúcar e depois de cozidas faziam-lhe desenhos com açúcar em calda que lhes conferia um aspecto diferente e muito bonito.

Mas lá íamos nós cantando “Pão Por Deus à magalona saco cheio vamos embora” e “aqui cheira a rosas, aqui moram as formosas”.

Quando alguém não nos abria a porta a cantilena já era outra, “aqui cheira a nabos, aqui moram os diabos”.

Entretanto crescemos e já não parecia bem andarmos ao pão por Deus, a menos que quiséssemos passar pela vergonha de nos oferecerem uma rapariga no saco, dando assim a entender que já éramos demasiado espigadotes.

Avô Lino, avó Maria, Natálio, Cremilde e Manuela

Tenho mais dez anos de idade que a minha irmã e mais dezassete que o meu irmão mais novo. O facto dos meus avós acabarem por irem viver para Alcobaça, ditou um longo interregno sobre a nossa ida aos Casais. Quando lá voltei, a aldeia estava mais triste e abandonada onde os caminhos, as casas e cisternas, continuavam na mesma.

Só tinham ficado os velhos e as crianças. Quem podia abalou para as “franças” em busca de vida melhor deixando os filhos com os pais já demasiado idosos para também se porem ao caminho.

Entretanto as minhas tias venderam a casa e as terras, e eu só lá voltei quando regressei da Guiné. As casas pareciam mais pequenas as ruas mais estreitas, mas em contrapartida havia novas construções de casas de regressados da estranja e a suinicultura abundava bem como o cheiro quase insuportável e nauseabundo, contrastava com alguma abundância e bem estar daquelas gentes. “Infalivre” o Pão Por Deus deve ter por lá continuado a praticar-se, mas não era o mesmo da minha infância.

Hoje os meus sobrinhos-netos vão ao Halloween, mascaram-se e dizem “doçura ou travessura” como se vê na América.

Fomos colonizados até nas mais pequenas coisas e é pena, pois trocou-se uma tradição por uma prática e moda, que nada tem a haver com este povo de quase mil anos.

“Infalivre” estamos em risco de desaparecer culturalmente, salvam-se as bifanas de Vendas Novas para fazer frente aos hamburgers.

Um abraço e faço votos que tenham tido um bom Pão Por Deus que aqui em Fátima se chama o “bolinho”.

Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15300: Os nossos seres, saberes e lazeres (121): Entre Antuérpia e as Ardenas, e algo mais (4) (Mário Beja Santos)

8 comentários:

Hélder Valério disse...

Pois é, Juvenal

A "nossa tradição" já não é nossa!
É certo que as coisas evoluem, tomam novas formas e conteúdos, mas sabemos que o que manda é o 'mercado'.
E o 'mercado' agora diz que nestes tempos essa coisa do "halloween" é capaz de dar um bom negócio. E então há que o promover! Doses maciças na televisão até se tornar omnipresente.

Referiste as 'bifanas de Vendas Novas'... pois, mas não faltará muito que 'eles' não venham apresentar um 'estudo' qualquer a dizer que podem ser potencialmente prejudiciais à saúde.

Abraço
Hélder S.

J. Gabriel Sacôto M. Fernandes (Ex ALF. MIL. Guiné 64/66) disse...

A nossa tradição já não é nossa, porque não temos força suficiente para a defender e muito menos para a impor ao estrangeiro. E quando surge alguém com essa força, é ostracisado, e ridicularizado como aconteceu com o ex ministro da economia Alvaro dos Santos Pereira (O Alvaro, como pedia para o chamarem) e que era só: Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Doutorado em Economia pela Simon Fraser University, em Vancouver.
Foi docente na Simon Fraser University e professor visitante na University of British Columbia[2] . Entre 2000 e 2004, ensinou no departamento de Economia da University of British Columbia. Entre 2004 e 2007, foi docente no departamento de Economia da Universidade de York, onde leccionou Economia Europeia e Desenvolvimento Económico. Foi colunista no jornal Público[3] . Desde 2001, colaborou regularmente com o Diário de Notícias e o Diário Económico, e escreveu ocasionalmente para o Expresso, a revista Exame e o Jornal de Notícias[4].
Conseguiu impor ao estrangeiro o hábito de comer o nosso famoso, a partir dessa altura, PASTEL DE BELÉM ou PASTEL DE NATA, que passou a ser vendido em muitos lugares do mundo.
Um abraço,
JS

Luís Graça disse...

Infalivre, Juvenal, que eu já aprendi hoje, contigo, palavras novas que faziam parte do meu léxico, mesmo se somos vizinhos da Estremadura, tu mais a norte (Alcobaça), eu mais a sul (Lourinhã)... Infalivre é uma delas, uma expressão coloquial que desconhecia e que não vem nos meus dicionários.- "Brandeiras" é outra palavra que não vejo grafada... Será um corruptela de "merendeira" ?

Também, meu caro, me lembro desses tempos de menino e moço em que andávamos, de porta em porta, na minha vila, a pedir o "pão por Deus"!

Do ponto de vista histórico e antropológico, este ritual parece estar associado ao culto dos mortos.

Quanto à "globalização cultural", ela é uma consequência inevitável da "globalização económica"... Resta-nos, com inteligência, saber preservar a nossa identidade...


https://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3o-por-Deus

Juvenal Amado disse...

Na verdade Luís termo que se usava era brendeiras ( o comp assumiu brandeiras e eu não dei por isso) que é uma degeneração da palavra merendeira como tu dizes.
O infalivre é também uma degeneração de Infalível que se tornou grande moda para dar ênfase ao que se ia dizer a seguir.
Também quando lá fui pela última vez em 74, era o grande orgulho do meu tio José Prudêncio, homem com 90 anos que diziam curar a dor ciática com um corte na orelha, na sua Casa do Povo onde dizia ele, que se faziam grandes "bailhos" com um conjunto de rapazes lá de Alcobaça, que me vi em palpos de aranha para descobrir quem eram eles. Depois de muitas voltas à cabeça, vim a saber que eram uns rapazes com quase sessenta anos chamados os "Irmãos Sequeiras"
Bom essa dos rapazes, ainda hoje me dá vontade de rir , porque para ele com 90 anos eles eram mesmo uns rapazes, enquanto para mim com 24 anos, essa rapaziada já estava a passar de prazo.
Hoje já passo dos sessenta e ainda me dá vontade de rir.
Quanto à cura da dor ciática ia lá muito boa gente e quando da sua morte o mister passou para a filha e depois para a neta.
Lembro-me dele contar que quando via algum com a dor mas que tinha medo do "tratamento" ele dizer, ainda cá hás-de vir acrescentando um riso manhoso.

Juvenal Amado disse...

Faltou-me aqui deslindar uma frase. "Infalivre estão bem informados" que dizer que estávamos muito bem criados, crescidos etc.

JD disse...

Olá Juvenal!
Hoje o pão-por-Deus encheu o teu saco com recordações da tua mãe, familiares e amigos. Isso é que é vivificar a tradição, infalivre quando a descreves tão bem. Até na cidade nós fazíamos uma ronda pela vizinhança, e, mais recentemente, apareciam pequenos grupos a bater à porta. Chocolate, ou dinheiro, era coisa que a garotada apreciava. Há dois ou três anos que não me dou conta da tradição, mas os comentadores anteriores já avançaram com as razões mais convincentes, e os putos também não querem perder oportunidades de brincadeiras tecnológicas, apesar de algumas poderem conter alguns perigos. Tudo mudou, e cada vez mais estamos metidos num processo de uniformização cultural, cujos estímulos derivam de criativos de multinacionais.
O meu filho também é do mesmo dia, mas estava algures no Atlântico, e não pude dar-lhe os parabéns.
Um abreço

Anónimo disse...

Caros amigos,
Ao ler o excelente artigo do Juvenal recuei no tempo, ao Dia de Todos os Santos e voltei a sentir a alegria da pequenada no peditório do Pão por Deus. Eu também fui um dos meninos que fez parte daquela fortíssima tradição na Ilha do Faial.
Já nos Estados Unidos, a noite das bruxas, o Halloween, que se realiza na noite do dia 31 de Outubro, nada tem a ver com as nossas belas tradições. Neste País americano o Dia de Todos os Santos passa despercebido e a sua grande expressão religiosa e tradicional passa pelo Memorial Day, um feriado nacional, que tem sempre lugar na última Segunda-Feira do mês de Maio.
Se é certo que os emigrantes têm muito a ganhar com a sua integração na vida americana, com tudo o que isso possa significar, não é menos verdade que muitos travam uma luta insana para manter bem vivas as suas tradições portuguesas, sobretudo as religiosas. Enriquecem culturalmente um pouco esta grande nação americana que os acolheu, ao mesmo tempo que mantêm as suas raízes culturais no recôndito dos seus corações.
Calculem como me sinto quando visito Portugal e vejo tanta americanice embutida (a estragar) no que de mais belo o nosso País tem para oferecer: as suas tradições, sobretudo as religiosas. Infelizmente, muitos portugueses não se apercebem que copiar este tipo de estrangeirismos é empobrecer o seu próprio País. Bem pior, que sejam as escolas os grandes veículos desse empobrecimento.

Anónimo disse...

Desculpem...esqueci de assinar o artigo acima.
Um abraço,
José Câmara