Queridos amigos,
Trata-se de uma chamada edição de prestígio, boa encadernação, bom papel, fotografias exemplares. Fica-se com a ideia de que aquele país está no bom caminho, que tem um povo feliz, cada vez mais serviços sociais, que as fábricas fabricam, desde sumos e compotas a automóveis.
Dou comigo a pensar se este álbum poderá ser classificado como material auxiliar para interpretar um tempo, mas estou convicto que o povo retratado, passado este tempo todo, é aquele que continua a votar na esperança por melhores dias. E estão ali os rostos de reis e de princesas, por ali perpassa a imagem da dignidade, estão ali os traços fundos e profundos de uma especificidade cultural que nos assombrou quando passámos de meninos a homens.
Um abraço do
Mário
A Guiné-Bissau pelo fotógrafo Michel Renaudeau
Beja Santos
Em 1978, com financiamento do Banco Nacional da Guiné-Bissau, as Éditions Delroisse, Paris, publicavam um luxuoso álbum intitulado Guiné-Bissau, Reconstrução Nacional, com texto em quatro línguas, sendo óbvios os objetivos de apresentar aos investidores aspetos aliciantes de uma promissora Guiné-Bissau aberta a diferentes formas de cooperação internacional.
O texto é simples e corresponde ao pensamento da época: a Guiné é apresentada como um país essencialmente agrícola onde preside um princípio de justiça social, já que a população rural fora a classe mais explorada durante a dominação colonial; faz-se o enquadramento geográfico dos recursos naturais, alude-se aos elevados índices de florestação, à qualidade das suas madeiras e enumeram-se culturas onde o país parecia estar em vantagem: arroz, mancarra, coconote e caju; quanto aos recursos naturais diz-se explicitamente que são constituídos por depósito de bauxite de uma capacidade estimada em mais de 250 milhões de toneladas métricas de mineral e mencionam-se os indícios de presença de petróleo nas zonas costeiras, bem como de ferro, minerais calcários e fosfatos, Aqui e acolá, no luxuoso álbum há uma certa tentação em empolar as notas da propaganda. Um exemplo:
“Não existe uma informação segura sobre a população do país, havendo contudo dados básicos para uma estimativa. A última realizada em 1970 nas áreas então ocupadas pelo exército colonial atingia 350 mil pessoas, segundo um censo preliminar realizado em 1974. Considerando as fontes e os números acima indicados e supondo uma taxa de crescimento anual de 2% e ainda o retorno de cerca de 70 mil refugiados desde a libertação completa do nosso território em 1974, a população estimada é de cerca de 930 mil habitantes”.
É apresentada a forma de organização política e administrativa do Estado, na órbita do PAIGC: este é a força política dirigente da sociedade na Guiné e em Cabo Verde, com um papel na definição e de direção política em relação a todas as atividades sociais, elenca-se em seguida a estrutura do partido, os três congressos do PAIGC então realizados e os órgãos do poder político: Assembleia Nacional Popular, Conselho de Estado e Conselho dos Comissários de Estado.
Estamos chegados à estratégia de desenvolvimento, utiliza-se uma linguagem suave para referir uma lógica de regime totalitário:
“O elemento essencial da estratégia de desenvolvimento consiste em dirigir de preferência o processo de acumulação de capital para o setor agrário onde se encontra mais de 90% da população ativa do país.
A modernização das estruturas produtivas das zonas rurais permitirá elevar rapidamente o excedente agrícola e incrementar simultaneamente o rendimento do trabalho rural. O excedente agrícola comercializado deverá permitir, a médio prazo, reduzir substancialmente as importações de bens alimentares. A crescente interpenetração entre o campo e cidade constitui o núcleo essencial do processo de desenvolvimento futuro. Sobre ele deverá articular-se o desenvolvimento industrial, o das infraestruturas e dos serviços básicos, devendo também definir-se sobre essa base a organização institucional do Estado, os sistemas de distribuição e os chamados setores sociais (Educação e Saúde) estima-se que os aumentos de exportações conseguido em 1977 deverá continuar num ritmo acelerado nos próximos anos. Será dada ênfase no que se pode caraterizar como um modelo de desenvolvimento para dentro, fundamentado na progressiva ampliação do mercado interno e na integração campo-cidade. A concretização a médio prazo desta estratégia de desenvolvimento implica amplo recurso à ajuda externa. Esta ajuda externa será, na medida do possível, orientada para o desenvolvimento da infraestrutura económica e social, da importação e produção industrial de meios de produção para a agricultura e da importação e produção de bens de consumo popular. A necessidade de se atingir a fase de crescimento autossustentado na base da estratégia desenhada impõe a superação do atual período de transição pós-colonial”.
Em 1976, o PNB era estimado em 3780 milhões de pesos guineenses, o que representava um rendimento per capita de 123 dólares. Segue-se a enumeração dos setores produtivos (agricultura e pesca, indústria, energia, transportes e telecomunicações). Falando do comércio interno, são referenciados os Armazéns do Povo, assim apresentados:
“Nas zonas libertadas do país foram criados em 1964 os Armazéns do Povo, entidade comercial cujo objetivo era manter o abastecimento dos bens essenciais nas referidas zonas. Ao mesmo tempo, os Armazéns do Povo absorviam parte da produção gerada pelo setor agrícola. Após a libertação, os Armazéns do Povo, passaram a constituir a principal empresa do país, estendendo a sua atividade a todo o território nacional. De 20 postos comerciais em 1974, os Armazéns do Povo passaram atualmente a 129”.
O álbum faz igualmente referência a salários e preços, comércio externo, situação fiscal, dívida externa e situação monetária.
Beneficiando já de uma impressionante ajuda externa, é natural que a publicação desse destaque à cooperação internacional, e mais uma vez se incensa a política de não alinhamento e a diversidade de formas de cooperação internacional. Na primeira linha, os países socialistas, depois a assistência sueca, a seguir a CEE no quadro da Convenção de Lomé, seguindo-se países europeus e os EUA e tece-se uma consideração para o que há de determinante nesta cooperação:
“O governo da Guiné-Bissau, consciente das dificuldades económicas inerentes ao atual período de transição, atribui uma grande importação à manutenção, durante os próximos anos, destes fluxos de assistência internacional, que deverão continuar a desempenhar um papel equilibrador das relações económicas internacionais do país a fim de permitir que se reúnam as condições para um crescimento económico autónomo”.
É um tanto ocioso descrever o que aqui se sonhou e fantasiou e as derrocadas que tomaram conta desses sonhos, as atividades económicas que se soçobraram, as infraestruturas que perderam préstimo, as fábricas que fecharam. O que fica de palpitante são estas de fotografias de Michel Renaudeau, rostos que saem do papel, arte africana de incomparável beleza, a atmosfera nostálgica de Bolama já em fase de irreversível decadência, gente na labuta, a cor de bauxite. Não sei se este álbum passará à história como material auxiliar de um tempo de aspirações que em breve se transformou em desilusões. Sei que esta gente é transmissora da boa-fé e era portadora de uma esperança que, como se vê em sucessivos atos eleitorais, ainda não murchou. Este fotógrafo pode gabar-se de ter alcançado imagens únicas de um povo que teima em sonhar.
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Nota do editor:
Último poste da série de 12 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16383: Notas de leitura (869): "Memória de elefante", a literatura de guerra, por António Lobo Antunes (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Espantoso como pessoas inteligentes continuam a escrever estas coisas: "mais uma vez se incensa a política de não alinhamento e a diversidade de formas de cooperação internacional. Na primeira linha, os países socialistas, depois a assistência sueca, a seguir a CEE no quadro da Convenção de Lomé." "Não alinhamento", mas "na primeira linha os países socialistas", depois os outros,ou seja o alinhamento total.
Pois, pois, mais o sonho.
Dizia o Jean Paul Sartre que o "o pão é mais importante do que a poesia."
Tanto sonho e má poesia, infelizmente num pesadelo real chamado Guiné-Bissau.
Ficam as fotos. E aí estou de acordo com o MBSantos.
Abraço,
António Graça de Abreu
O que se passava na Guiné, nesses anos de governação "burmedja"aos meus olhos de ex-colon foi a governação mais caricata e tão hilariante, que se o povo não passasse a fome que passava, (fome de arroz e bianda), o povão só de rir podia encher a barriga.
E o povo via o ridículo do que era aquela governação, apoiada por conselheiros "brancos" às dezenas, em todas as pastas ministeriais.
(Era a reciclagem colonial, termo patenteado por mim)
Mas o povo tinha que calar, afastar-se e bater palmas quando os Volvos ministeriais passavam em gincana por entre os buracos e o lixo das ruas de Bissau.
Mas ainda há guineenses (aqui), que me dizem que Portugal devia ter dialogado com o irmão do Luís, um tal Amílcar, que mais tarde foi Amílcar Cabral.
Não chegou o apoio dos Suecos e Russos, Vaticano e ONU, durante mais de 20 anos?
Atenção que não é da Guiné que existem mais jovens africanos desesperados a subir o Sahara ao encontro do Mediterrâneo a pedir explicações.
Há outros paises em situação mais grave e perigosa que Bissau, mesmo com os dirigentes em diálogo e apoiados pelos "drones" do ex-colon.
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