Vista do Parque da Cidade do Porto
Foto: Com a devida vénia à Câmara Municipal do Porto
1. Em mensagem do dia 11 de Agosto de 2016, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos das Amizades e Memórias que o tempo vai apagando.
AMIZADES E MEMÓRIAS QUE O TEMPO VAI ESFUMANDO
Já quase no final da minha caminhada, no Parque da Cidade do Porto, fui abordado por um cavalheiro, que vinha em sentido contrário, que me perguntou educadamente pela minha naturalidade. Eu disse-lhe qual era e ele disse-me que se lembrava de mim depois muitos anos já passados, talvez cinquenta e cinco, e que eu o tinha iniciado na aprendizagem da língua francesa, e para minha surpresa começou a contar em francês: un, deux, trois, quatre, cinque...
Era um homem afável, de estatura média, que denotava além de uma boa dieta alimentar, cuidados físicos para manter a forma. Quis corresponder à simpatia demonstrada por ele e ao apelo que fazia à minha memória, mas para meu desgosto e dele possivelmente, não me fazia lembrar ninguém do meu passado.
Para avivar a minha memória ele disse-me que me tinha conhecido na Vila, na casa de uma tia dele, irmã da mãe, casada com um alfaiate onde eu estava “ aboletado”, foi o termo que ele usou, quando eu estudava no colégio. Eu teria catorze ou quinze anos e ele, pela diferença de idades de que falamos depois, teria sensivelmente metade da minha idade.
Ele, numa tentativa de acordar a minha memória adormecida, ainda me disse que era o Emílio e que a mãe dele se chamava Luísa.
Tinha seguido a carreira militar, tendo entrado na Academia Militar onde ainda estava quando aconteceu o 25 de Abril e a independência das colónias. Atingiiu o posto de coronel, actualmente já está reformado.
Eu que por um preconceito comum na nossa sociedade, justificado ou não pelo comportamento dos oficiais superiores, distantes e autoritários por formação, ou deformação, profissional mesmo quando abandonam a vida militar, fiquei muito sensibilizado por ver um coronel despir a farda militar, calçar as sapatilhas e vestir os calções de garoto, para me cumprimentar, a mim que sou um civil desalinhado e sem condecorações, e fui oficial miliciano por um acidente da história. Falámos doutras circunstâncias das nossas vidas e despedimo-nos com um até breve, numa próxima caminhada no Parque da Cidade, que ele também frequenta com assiduidade.
Abandonei o Parque da Cidade pesaroso e consternado por não ter correspondido às expectativas dessa amizade prolongada, que eu esqueci e que esse menino, hoje coronel reformado, conservou para sempre. Pus-me a contar em francês, nessa língua que eu sempre amei, como quem reza, a pedir perdão pelas falhas da minha memória traiçoeira.
Nas horas e nos dias seguintes procurei forçar a minha memória relapsa, para me abrir caminho através do nevoeiro dos dias cinzentos, dos dias tristes e dos dias escuros do meu passado. A revelação aconteceu e voltei a rever esse rapazinho, simpático e curioso, que me adoptou como o irmão mais velho, com mais conhecimentos do que ele, pois já estudava francês, uma outra forma de falar com palavras diferentes. Palavras tão diferentes que ele iria inscrever na memória para a vida inteira, associadas a esse adolescente de catorze anos que lhe tinha dedicado alguma atenção e era tão alto como o pai dele.
As crianças gravam para uma vida inteira nas folhas brancas da sua alma os conhecimentos que elas misturam com os afectos que recebem dos pais, dos avós, dos irmãos e dos amigos .
Tudo é real menos os nomes do coronel reformado e da mãe dele. Para ele e para a mãe, que recordo como uma senhora simples, simpática e delicada e que ainda é viva, conforme ele me contou, desejo uma longa vida com muita saúde.
Este episódio, na falha de memória que assinala, é semelhante a outros que me têm acontecido nos últimos anos quando comecei a despertar com nostalgia na procura dos meus velhos camaradas e amigos da Guiné. Alguns que eu tinha esquecido e não consigo lembrar, lembram-se de mim com pormenores que eu já tinha esquecido.
Um deles com quem convivi diariamente pelo menos dois meses e que encontrei num almoço da companhia 44 anos depois, cumprimentou-me com muita familiaridade e eu disse-lhe que nunca o tinha conhecido. Ele disse-me que se lembrava bem de mim e que eu nesse tempo usava bigode. Não me lembrava de alguma vez ter usado bigode. No ano seguinte, noutro almoço ofereceu-me uma fotografia onde estávamos os dois entre outros oito ou dez a jantar e eu com um bigode, que não era de cavalaria mas de infantaria para não renegar a minha Arma.
Noutro caso sou eu que me lembro muito bem de um alferes de outra companhia que reforçou a minha durante dois meses, que dormiu no meu quarto durante esse tempo, com quem tive uma boa relação de amizade. Para meu desgosto, ele apagou-me completamente da memória sem se dar conta pois ele era um bom camarada e acredito que pela vida fora conservou as boas qualidades que lhe reconheci, quando jovem.
Ao camarada do destacamento de fuzileiros com quem falei por telefone este ano, e que me disse que se lembrava bem de mim, das muitas refeições que fizemos na messe, não tive coragem de lhe dizer que não me lembrava nada dele e menti-lhe.
Enfim quando estivemos em África, ao tempo na chamada província portuguesa da Guiné, não trouxemos a imagem de elefantes vivos, que já não havia, nem a sua memória prodigiosa. Viemos com o cérebro esturricado e zonzo pelo sol ardente dos trópicos, pelo calor do álcool que o adormecia, pelo estrondo das granadas e das bombas e pelo matraquear das metralhadoras.
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de agosto de 2016 Guiné 63/74 - P16384: Blogoterapia (279): A odisseia da minha prótese (Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728)
9 comentários:
Amigo Baptista.As tuas histórias sao um verdadeiro prazer de lêr.
Como nao costumo ser longo nos meus comentários, lanço-te o repto.
Porque não passa-las para o papel??
Um abração caro amigo e camarada....
Parece-me que se adapta bem ao célebre concurso no início da RTP no ano 1958 do lendário locutor Artur Agostinho e tinha por título quem sabe sabe.
Adorei ler estas histórias de falta de memória, mas com uma memória de elefante para fazer o relato das histórias por si vividas.
Um Ab Colaço.
Gostei, gostei muito de ler o teu texto, Francisco.
Abraço do V Briote
Caro amigo F. Baptista,
Nada mais verdadeiro e sintomatico do que esta tua frase: "Viemos com o cérebro esturricado e zonzo pelo sol ardente dos trópicos, pelo calor do álcool que o adormecia, pelo estrondo (... ).
Confesso que, de todos os amigos que reencontrei, nenhum ou quase nenhum correspondeu a minha expectativa sobre os dois 'longos' anos passados em conjunto durante a tropa. Ha poucos meses acabei por reencontrar aquele que eu considerava o meu melhor amigo, um Lisboeta, que me tratava bem, comprava brinquedos e roupas quando fazia a coluna de reabastecimento a Bafata, tirava fotos, mas que, apos o regresso, simplesmente, perdeu a memoria daqueles tempos. Como devem calcular, fiquei muito decepcionado. A sua desculpa foi que tinha levado uma vida muito atribulada, mas comparada com a minha (a nossa na Guine-Bissau) ele nem sequer sabe
o que eh uma vida atribulada ou se calhar posso estar enganado.
Com um abraco amigo,
Cherno AB
Creio que a memória dos Guineenses desses tempos da Guerra, bate a dos Portugueses. Da última vez que estive em Bissau,um Homem, que me disse ser filho de um Milícia de Finete, não só me reconheceu, como me contou, que quando lá passei oito dias, foi a Mãe, que me alimentou,com ovos cozidos..Abraço J.Cabral
Muito obrigado a todos pelos comentários simpáticos. Peço licença para dirigir mais algumas palavras ao amigo Cherno Balde pelas mágoas e desilusões que lhe despertei ao falar sobretudo naquela criança que encontrei já avô na minha caminhada e que esperava um abraço do amigo adolescente que lhe foi negado. Dalgum conhecimento actual que vou tendo de ti , pelo convívio do blogue, calculo que tu serias entre os tropas um puto alegre, simpático e inteligente, facilmente estimado por todos eles. Confiaste que essas amizades iria perdurar pela vida fora e tiveste a amarga desilusão de que falaste. Sei como é mau ser abandonado pelos amigos quando somos adultos mas bem pior é quando os adultos se esquecem da amizade que por palavras e actos alimentaram nas almas puras das crianças.
Senti-me muito mal quando me dei conta da importância que eu tive para aquele menino que cresceu e se fez homem a confiar numa grande amizade que eu terei esquecido cedo.
Meu amigo Cherno se isso te pode aliviar um pouco os teus males envio-te um grande abraço, talvez também me ajude a aliviar os meus remorsos.
Um abraço a todos. Francisco Baptista
Francisco, todos temos deceções dessas, que podem ser dolorosas; em contrapartida, também há agradáveis, talvez por que inesperadas, surpresas... A vida é feita de encontros e reencontros. Há alguns dos nossos amigos de infância e adolescência, homens e mulheres, tornaram-se arrogantes, egocêntricos, filhos da mãe, mudaram 360 graus em muitos casos... A imagem do passado já não corresponde em nada com o "retrato" de hoje... O que há a fazer ? Como diria o Camilo, até Deus, que faz milagres, não pode recuperar a virgindade perdida das donzelas e dos moços...
Em contrapartida, o tempo reserva-nos também agradáveis surpresas de condiscípulos, amigos e vizinhos de quem perdemos o rasto...
As Pessoas não mudam! Os maus,os arrogantes, os egocêntricos, já assim eram...Nós é que andávamos distraídos....Abraço J.Cabral
Caro FRancisco Baptista,
...no fim da leitura daquilo que escreves sinto que fico mais rico. Por favor continua.
Abraço transatlântico.
José Câmara
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