Queridos amigos,
Independentemente do que aqui se escreve a propósito de um encontro fortuito na Feira da Ladra e de uma dedicatória de James Pinto Bull ao seu prezado primo Jorge, quis o acaso que o tenha visto pela primeira e última vez em Julho de 1970, dois helicópteros trouxeram um conjunto de deputados a Bambadinca, foram até aos Nhabijões e conversaram com o comandante e o segundo comandante. E refrescaram-se na messe. Vindo dos Nhabijões, onde montáramos segurança aos ilustres visitantes, reencontrei José Pedro Pinto Leite e conversámos à parte. O deputado estava ciente que as coisas da Guiné caminhavam para o beco sem saída, disse-me que ia avisar Marcello Caetano. Não teve tempo, morreu dois dias depois no rio Mansoa, tal como James Pinto Bull.
Casos e acasos de que se fazem as nossas vidas.
Um Abraço do
Mário
Da circuncisão entre os Balantas, por James Pinto Bull
Beja Santos
Em 1951, James Pinto Bull, nascido em 1913 em Bolama, funcionário colonial, ao tempo administrador de circunscrição, e com carreira de deputado pela frente, três vezes eleito pelo círculo da Guiné para a Assembleia Nacional, escreve no Boletim Cultural da Guiné um artigo intitulado “Subsídios para o estudo da circuncisão entre os Balantas”. É uma escrita direta, de pendor marcadamente divulgativo, chama à atenção para o “fanado” e para o modo como os Balantas encaram esta cerimónia religiosa, começando logo por referir que os “grandes” das tabancas apresentam-se com o tradicional “lopé” e trazendo enrolado pelo corpo pedaços de corda, vão à autoridade local pedir autorização para “deitar o fanado”.
Segue-se uma descrição vivacíssima:
“Dada a autorização, rompe imediatamente o tamborilar de um pequeno tambor para levar a nova aos indígenas reunidos nas moranças e com danças alusivas à cerimónia que se vai iniciar, os velhos regressam à tabanca. Toda a noite se ouve o barulho do “ẽbõbor” (tambor grande, anunciando às tabancas distantes a realização do fanado, convidando os jovens a virem alegrar com a sua presença a grande festa. Rompe a aurora e principia a concentração da turba nas proximidades da tabanca onde se realiza o fanado. A falange engrossa rapidamente e os assistentes vão-se aquecendo, não só pela ação do calor que sufoca, mas também pela do álcool. O mestre-cerimónia dá o sinal para se fazer a concentração geral. Começa a marcha e centenas de indígenas lançam-se em correria desenfreada, parecendo à primeira vista que se trata de um ataque guerreiro, pois quase todos os do sexo masculino ostentam espadas e cacetes. O grupo dos futuros circuncisos esforça-se por abrir caminho a fim de se dirigir para o porto ou bolanha mais próximos, onde besuntam o corpo com lama. Em correria louca e entoando cânticos variados, os blufos regressam à tabanca, formando grupos separados, para que cada um possa mostrar o seu valor. Continua nos arredores da tabanca o barulho ensurdecedor dos tambores, misturado com milhares de vozes e com a gritaria infernal dos mais alcoolizados. O sol vai declinando e, enquanto os futuros circuncisos se reúnem na tabanca para tomarem a última refeição ainda como blufos e receberem as mezinhas para os proteger contra os feiticeiros durante a permanência na barraca, a multidão alegra-se cada vez mais, chegando a tomar o aspeto de verdadeira orgia. Todos estão em maior ou menor grau sobre a ação etilisante do álcool”.
Faz-se aqui uma pausa para recordar duas coisas. Primeiro, ao tempo do Governador Sarmento Rodrigues começou-se a solicitar aos quadros da administração colonial espalhados pela província que enviassem regularmente relatórios com pendor etnográfico, etnológico e antropológico, sugeria-se mesmo que elaborassem monografias e enviassem quer para o boletim cultural quer para o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa artigos ou dados relevantes que se prendiam com observação do funcionário. Segundo, este texto decorre dessa mesma observação, é feita sem comentários, sem interpretação, não há pretensões de qualquer leitura científica, o que aqui se escreve é o que James Pinto Bull viu e fotografou, e escreveu com gosto, vê-se que aprecia temperar os seus relatos. Continuando:
“As mulheres e as bajudas estão completamente excitadas sobre a dupla ação do álcool e algumas delas não resistem à tentação de se deixar agarrar pelo blufos que sabem tirar partido destas oportunidades. É que nesse dia tudo é permitido, desde o adultério, que para certos maridos até constitui honra, por verem que as suas mulheres foram muito apreciadas, até a própria violação das bajudas, facto que alguns pais perdoam, não exigindo a costumada reparação material”.
É então que o mestre-cerimónia, velhos e rapazes já circuncidados seguem para a bolanha para que se cumpra a operação. A festa acabou. Os futuros circuncisos já chegaram à bolanha e estão atolados pelo menos até aos joelhos. Vamos regressar ao relato:
“Começa então a operação feita pelo parente mais próximo, a qual consiste no corte do prepúcio, por um ou mais golpes ao contrário do que se sucede nas outras tribos em que o corte tem que ser rápido e com um único golpe. Acaba a operação, os pacientes recolhem-se a um local antecipadamente escolhido, em princípio numa mata próxima da tabanca, e onde é feita previamente uma clareira protegida por uma paliçada. A permanência varia de um a três meses, e enquanto os circuncidados ali permanecerem, as famílias são obrigadas a preparar-lhes as melhores comidas e a confecionar os tradicionais e caprichosos panos de fanado. Terminado o tempo julgado necessário, os circuncisos descem às povoações, formando um único grupo, envolto nos panos do fanado. Cumpridas estas regras, o irresponsável blufo que até vivia em comum com os seus camaradas, adquire todos os direitos e deveres de homem, podendo construir a sua palhota e arranjar mulher para constituir família”.
Pergunta o leitor a que propósito se descreve a circuncisão entre Balantas, assunto que praticamente ninguém desconhece. Esta separata de James Pinto Bull tem a sua história. Num vendedor da Feira da Ladra encontrei esta separata e francamente que não lhe teria dado qualquer atenção não contivesse a dedicatória do autor ao prezado primo Jorge. Acicatado pela dedicatória, comecei a vasculhar em toda a papelada à venda e lá encontrei fotografias e referências a Jorge Wahnon Pinto Costa. São momentos em que junto à excitação a repugnância pelas pessoas que se desfazem da intimidade daqueles que morreram e são assim postos a nu na praça pública, na rua do Século, em Lisboa existe um alfarrabista que tem a biblioteca e dossiês do professor Silva Cunha, que foi ministro do Ultramar. Interrogo-me como é que é possível desbaratar tal património que devia ser apreciado pelos competentes investigadores. Uma última nota, James Pinto Bull irá falecer num acidente de helicóptero, em Julho de 1970, faleceram entre outros, José Pedro Pinto Leite, considerado como uma das grandes promessas da Ala Liberal. As voltas que o mundo dá.
Dedicatória
____________Nota do editor
Último poste da série de 17 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16396: Notas de leitura (871): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VII: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (III): Na mata do Fiofioli, pensei que ia morrer, pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos
5 comentários:
Os portugueses ultramarinos a exemplo da família Pinto Bull, foram os principais responsáveis por 500 dos 800 anos da história de Portugal, até 1974.
O mesmo se pode dizer de outras familias como a de Luís e Amílcar Cabral ou a de Lúcio Lara ou dos irmãos Pinto de Andrade.
E eles todos, de um lado e do outro, perderam "o comboio".
Quem diria que o sonho africano desses portugueses para os seus países, se foi com os "ventos da história", e misteriosamente está surgindo calmamente na terra de Mandela e dos boeres.
Será que foi efeito de Mandela não se ter servido de ajudas impróprias e contraditórias, como fez Agostinho Neto, Cabral e Machel?
Sobraram as fronteiras e já não foi pouco!
Olá Camaradas
Não li, como é de calcular, o folheto do Pinto Bull, mas recordo que estes ritos iniciáticos bárbaros, mas velhos como tempo, trouxeram situações delicadíssimas com pedidos de evacuação Y para acorrer a meninas que se estavam a esvair em sangue.
Sei que esta prática, indigna dos povos civilizados, foi combatida no tempo do Gen. Spínola, com alguns resultados positivos.
Este hábito verdadeiramente imbecil que parece estar a voltar à Guiné actual, mas não parece ser praticado nas colónias de guineenses em Portugal, é uma reminiscência do modo como as populações reagiram à chegada dos colonizadores. A resistência manifestou-se em três áreas absolutamente cruciais: não aceitação da língua portuguesa em detrimento das suas línguas tradicionais, recusa na conversão à fé católica, com abandono das suas religiões tradicionais e manutenção dos seus usos e costumes, como é este o caso.
Como se vê, são três áreas fundamentais para um povo fraco e primitivo posto em contacto com um povo superior - tecnológica e ideologicamente - e que se arrogava o direito de ser detentor da única religião verdadeira, poder manter a respectiva identidade.
Um ab.
António J. P. Costa
blu·fo
(balanta blufo)
substantivo masculino
1. [Guiné-Bissau] Rapaz não circuncidado.
2. [Guiné-Bissau] Jovem inexperiente.
3. [Guiné-Bissau] Indivíduo considerado estúpido.
4. [Guiné-Bissau] Dança executada na cerimónia de circuncisão.
"blufo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/blufo [consultado em 19-08-2016].
Blufo eram também o órgão dos "pioneiros" do PAIGC, muito acarinhado pelo Amílcar Cabral.... Começou a publicar-se em 1966...Ver aqui a coleção, penso que completa, na Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum
http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_2684
Passei muitos anos, a combater a M.G.F.em Conferências, Seminários e Debates, em Portugal, mas também em Espanha.Basta ir ao google e procurar "mutilação genital feminina,Jorge Cabral. Abraço Jorge Cabral
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