Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > Gã Garnes [ou Ponta do Inglês] > Novembro de 2010 > Viagem de Mário Beja Santos (Op Tangomau). Foto retirada do blogue.do poste P13898, do camarada Beja Santos, com a devida vénia, onde se lê: “a vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros”.
Foto: © Beja Santos (2011). Todos os direitos reservados [Edição:Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Sétima parte, enviada em 15 do corrente, das "notas de leitura" coligidas pelo nosso camarada e grã-tabanqueiro, Jorge Alves Araújo. Trata-se de um extenso documento, que está a ser publicado em diversas partes (*), tendo em conta o formato, a especificidade e as limitações do blogue.
1. INTRODUÇÃO
Caros tertulianos; agradeço os vossos comentários aos textos anteriores. De seguida, apresento-vos a sétima parte deste meu projecto relacionado com a divulgação de algumas das memórias transmitidas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em missão de “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, nos anos de 1966 a 1969, mantendo o mesmo propósito de que vos dei conta no poste P16224: o primeiro fragmento, publicado em 22 de junho último (*).
Recordo que esta espontânea iniciativa surge na sequência de ter tido acesso ao livro escrito em castelhano pelo jornalista e investigador Hedelberto López Blanch [, foto atual à esquerda], uma coletânea de memórias e experiências divulgadas pelos seus diferentes entrevistados, a que deu o título de «Histórias Secretas de Médicos Cubanos» [La Habana: Centro Cultural Pablo de la Torriente Brau, 2005, 248 pp.] ou “on line” em formato pdf, em versão de pré-publicação. disponível em http://www.centropablo.cult.cu/libros_descargar/historiamedicos_cubanos.pdf
Neste livro, para além dos depoimentos desses três clínicos que estiveram na Guiné-Bissau (Domingo Diaz Delgado, Amado Alfonso Delgado e Virgílio Camacho Duverger), podemos ainda conferir e/ou comparar outros relatos sobre experiências vividas na primeira pessoa por outros médicos cubanos presentes em diversas missões africanas como foram os casos da Argélia, do Congo Leopoldville, do Congo Brazzaville ou de Angola.
Recordo, igualmente, que por estar perante uma tradução e adaptação do castelhano, onde procurei respeitar as ideias expressas nas respostas dadas a cada questão, entendi não fazer juízos de valor sobre o seu conteúdo, colocando entre parênteses rectos, quando possível, algumas notas avulsas de reforço sócio-histórico ao que foi transmitido, com recurso a imagens desse contexto retiradas da Net e dos arquivos do nosso blogue, na justa medida em que cada facto relatado ocorreu num tempo e num espaço (que não é o meu!), logo único, vivido por cada um dos sujeitos.
Contudo, esta minha decisão não significa que não se possa realizar, em cada situação concreta, o competente contraditório (ou acrescentar algo mais), uma vez que neste conflito bélico existiram dois lados, daí o título com que baptizei este trabalho: “d(o) outro lado do combate - memórias de médicos cubanos”.
Cada um julgará o que é credível ou é ficção…
2. O CASO DO MÉDICO AMADO ALFONSO DELGADO [III]
Esta sétima parte corresponde, com efeito, ao terceiro de quatro fragmentos em que foi dividida a entrevista ao dr. Amado Alfonso Delgado, médico de clínica-geral, com experiência em cirurgia, natural de Santa Clara, capital da província de Villa Clara, a cidade mais central de Cuba.
No que concerne aos dois postes anteriores [P16357 e P16380] (*) neles se dão conta dos antecedentes que influenciaram a sua decisão de cumprir uma "missão internacionalista", tendo por cenário desejado o Vietname, o que não se concretizou, acabando por surgir outro destino alternativo, neste caso a Guiné Portuguesa (hoje Guiné-Bissau).
A sua missão africana inicia-se na véspera de Natal de 1967, tinha então vinte e sete anos de idade, na companhia de outro médico, voando de Havana até Conacri, com escala em Gander [Canadá], Praga, Paris e Senegal.
Os primeiros três meses passou-os na Guiné-Conacri, prestando serviço médico no Hospital de Boké na companhia de mais quatro clínicos cubanos: o cirurgião militar Almenares, um ortopedista, um analista de laboratório e um técnico de raio X.
A integração na guerrilha ocorre, somente, em abril de 1968, quando segue para a frente Leste para substituir o seu companheiro Daniel Salgado, médico-cirurgião militar que entretanto adoecera com paludismo.
Vai entrar em território da Guiné-Bissau, pela fronteira sul, corredor de Guileje, vindo de Boké e Kandiafara: nesta base, encontravam-se na altura vinte combatentes cubanos. Seguiram-se outras etapas ao longo de oito dias, com caminhadas cada vez mais duras, pois não estava preparado para esse desempenho. Nesse período de tempo passou por diversas aldeias onde se alimentava com farinha e carne que lhe ofereciam, afirmando ter passado fome, habituando-se, desde então, a comer pouco.
Ao quarto dia disseram-lhe que tinha chegado à Mata do Unal, na região do Cumbijã, um local onde “o tiro era abundante”. Continua a sua “viagem” a pé, chegando à foz do Rio Corubal / Rio Geba onde lhe foi transmitido que naquele lugar havia um problema mais perigoso que a tropa portuguesa, chamado “macaréu”. Quando chegou à outra margem [?], encontrou um homem branco em calções, com gorro na cabeça e uma camisa. “Olhou-me com alguma indiferença perguntando-me: tu pensas aguentar esta ratoeira? “Esquece, pois não duras nem três meses”. Perguntei-lhe porquê? Ao que me respondeu: “tu verás como isto é”.
Entre maio de 1968 e setembro de 1969 [dezassete meses], movimentou-se nas matas do Unal e do Fiofioli [Sector L1 - Bambadinca], com destaque para esta última frente, aonde esteve os primeiros nove meses de 1969, que foram os últimos da sua missão, durante os quais viveu muitos sobressaltos, com muitas corridas em ziguezague, rastejanços e dores de barriga, que implicaram sucessivas trocas de acampamento, incluindo a destruição das suas enfermarias, por quatro vezes.
Devido a todas estas ocorrências, por efeito da intervenção dos militares portugueses em diferentes acções naquela região, e das tensões a elas associadas, pensou não ser possível sobreviver. Mas, conseguiu concluir a sua missão, regressando a Cuba em outubro desse ano.
Eis a continuação de outros relatos revelados pelo médico Amado Alfonso Delgado tendo por base o guião da sua entrevista que tem com 25 questões. Hoje apresentamos a resposta (em itálico) às questões de 12 a 15 com a devida vénia ao autor, o conhecido jornalista cubano Hedelberto López Blanch (n. 1947).
Entrevista com 25 questões [Parte III, da 12.ª à 15.ª]
“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” (Cap XI, pp. 136 e ss)
Durante o segundo ano que ali estive [, em 1969, no triângulo Bambadinca- Xime - Xitole, corresponte ao nosso Sector L1 - Bambadinca] realizam-se muitos desembarques de tropas portuguesas helitransportadas, por exemplo, o hospitalito [enfermaria de colmo] da Mata de Fiofioli o/a queimaram em quatro ocasiões. Cada vez que uma avioneta [DO-27] nos sobrevoava duas vezes, logo nos atacavam. Primeiro realizavam um bombardeamento, para depois desceram os militares.
Os últimos seis ou sete meses que ali estive [com início em janeiro de 1969] [os portugueses] efectuaram uma operação muito grande e demorada.
“Cirurgias com a ténue luz de fachos de palha ardendo” (Cap XI, pp. 136 e ss)
(xii) Viveu muitas tensões nesses ataques?
Durante o segundo ano que ali estive [, em 1969, no triângulo Bambadinca- Xime - Xitole, corresponte ao nosso Sector L1 - Bambadinca] realizam-se muitos desembarques de tropas portuguesas helitransportadas, por exemplo, o hospitalito [enfermaria de colmo] da Mata de Fiofioli o/a queimaram em quatro ocasiões. Cada vez que uma avioneta [DO-27] nos sobrevoava duas vezes, logo nos atacavam. Primeiro realizavam um bombardeamento, para depois desceram os militares.
Os últimos seis ou sete meses que ali estive [com início em janeiro de 1969] [os portugueses] efectuaram uma operação muito grande e demorada.
[O entrevistado faz referência à “Op Lança Afiada”, realizada pelas NT no setor L1, entre 8 e 19 de março de 1969, uma das maiores operações levadas a cabo no CTIG, movimentando cerca de 1300 efectivos, dos quais 36 eram oficiais, 71 sargentos, 699 praças, 106 milícias e 379 carregadores civis. Nesta operação, comandada pelo então coronel Hélio Esteves Felgas (1920-2008), participaram as seguintes onze Unidades Orgânicas: CART: 1743, 1746, 2338, 2339 e 2413; CCAÇ: 1791, 2403, 2405 e 2406; Pel Mil da CCAÇ 2314 e Pel Caç Nat 53 (vd. poste P11575)].
[Quinze dias após esta operação, mais duas foram realizadas no mesmo sector com o objectivo de “se completarem as destruições dos meios de vida naquela região”, cada uma delas com a duração de dois dias. A primeira, “Op Baioneta Dourada”, decorreu em 2 e 3 de abril de 1969, envolvendo a CART 1746 e as CCAÇ 2314 e 2405, num total de sete Gr Comb; a segunda, em 4 e 5 de abril de 1969, na “Op Espada Grande”, estiveram envolvidas as CART 2339 e 2413 e a CCAÇ 2406, com nove Gr Comb: as bases do PAIGC percorridas foram as situadas na zona de Satecuta, Galo Corubal e Poindom (P9095) )***)].
[Três anos depois, também de dois dias, em 26 e 27 de fevereiro de 1972, foi realizada a “Op Trampolim Mágico” (infogravura abaixo), envolvendo o meu BART 3873, com as CART 3492, 3493 e a minha 3494, o BCAÇ 3872, com as CCAÇ 3489, 3490 e 3491, a CCAÇ 12, dois GEMIL, 309 e 310, e a Companhia de Caçadores Paraquedistas, CCP 123 / BCP 12, num total de vinte e oito Gr Comb, equivalente a um efectivo de cerca de setecentos elementos, missão que contou com a presença no terreno do Comandante-chefe general António de Spínola (1910-1996).]
[Esta operação contou, ainda, com o apoio da FAP, com uma parelha de Fiat G91, uma parelha de T-6, dois Hélis e um Heli-canhão, e da Marinha, através do desembarque anfíbio na margem direita do Rio Corubal, da CART 3492 (Xitole; 4GC), CART 3493 (Mansambo; 4GC), CCAÇ 3489 (Cancolim; 1GC), CCAÇ 3490 (Saltinho; 1GC) e CCAÇ 3491 (Dulombi; 2GC), respectivamente na Ponta Luís Dias e em Tabacuta, tendo estas forças realizado acções de ataque a aldeias controladas pelo PAIGC atravessando as matas do Fiofioli até Mansambo (vd. poste P13359) (***)].
Guiné > Setor L1 > Mapa do Fiofioli > 1972 > Zona de mato denso onde estavam diversas palhotas que serviam de refúgio a elementos do PAIGC e população que os apoiava e que foram destruídas pela nossa passagem. (Foto de Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi, 1971/74,vd. poste P13359)
Foto (e legenda): © Luís Dias (2014). Todos os direitos reservados.
A intensa actividade operacional registada no início de 1969 ocorre pelo facto de se ter verificado uma mudança de governador em maio de 1968, com a chegada do general António de Spínola, o qual disse que ia acabar com os revoltosos.
Por esse motivo passei um período de vários meses que não tive contacto com o comando, nem com o mundo, porque nos tinham cercado. Todos os dias éramos atingidos pela artilharia, pelo fogo de armas ligeiras e pelas bombas dos aviões, sobretudo de manhã quando cozinhávamos, devido ao fumo que saía e se via de muito longe. Havia que fazer a fogueira ao ar livre para dispersar o fumo e que não nos denunciasse.
Aquilo esteve muito tenso, porque durante algum tempo eles andaram atrás de nós até que nos cercaram. Pensámos que iam acabar connosco, pois estávamos entre dois rios, com aviões e barcos à volta, destruindo quase todas as canoas em que podíamos fugir.
Na última semana deste cerco, os bombardeamentos eram constantes na mata e tínhamos de sair e pormo-nos mais perto de onde nos estavam a atacar com a artilharia para poder esquivar do ataque. Tínhamos vários feridos e não havia alternativa senão dar-lhes as armas, e escondermo-nos em abrigos com árvores e folhas e tentar romper com o cerco. Éramos cerca de quarenta elementos [bigrupo].
Na última noite, quando aguardávamos o dia seguinte ao ataque final, fomos para a mata muito devagar, tomando todas as precauções. Vimos um grupo que vinha na direcção contrária e acreditámos que iriam abrir fogo sobre nós, mas o que aconteceu é que era um grupo de guerrilheiros de outra zona que surgiram em nossa protecção. No princípio fez-me confusão porque não sabia que eram nossos e, embora não tivessem feito disparos, durante o corre-corre chocamos com uma enorme colmeia, tendo sido picado por cerca de trezentas abelhas e estive mais de três dias a tirar os seus ferrões.
A experiência de médico ensinou-me de que, se isso acontecesse hoje eu teria morrido, uma vez que uma dezena de picadas são perigosas, podendo provocar um choque na pessoa, mas quando se está perante uma tensão tão grande, produzem-se esteroides que é precisamente o tratamento que usamos contra a alergia. Nenhuma me infectou, o mesmo aconteceu com os outros seis que tiveram igual sorte.
Nesse dia, depois de termos escapado ao primeiro cerco, voltaram a cercar-nos e o comandante da guerrilha informou-me que iam levar-me. Disse-lhe que queria ficar por ali com os feridos, ao que me respondeu que depois de mim logo seguiriam os feridos. Assim sendo, numa pequena embarcação, levaram-nos, a mim e a outro cubano que andava comigo, que era sargento e que me dava apoio, através de um rio mais pequeno que o Corubal. Levava já mais de uma semana em constante tensão, e depois de sair do cerco, empapado, cheguei de noite a um acampamento na outra margem [?]. Pendurei a maca numa árvore, despi toda a roupa e fiquei nu. Pelas cinco da manhã, quando me estava a vestir, senti um som por cima de mim; era uma explosão. Aviões estavam-nos a atacar com napalm. Se não corro desenfreadamente tinham-me atingido, pois as bombas estavam a cair muito perto.
[Os resultados obtidos pelas NT nesta operação, Op Lança Afiada, foram os seguintes: 5 mortos confirmados; capturados 17 nativos na sua maioria mulheres; 1 carabina “Mosin Nagant”, 7,62, modelo de 1944; 1 espingarda “Mauser”, 7,92, modelo K98K; 1 espingarda “Mauser”, 7,9, modelo 904; 1 espingarda semiautomática “Simonov”, 7,62; 2 metralhadoras pesadas “Goryonov”, 7,62; 2 pistolas-metralhadoras “Shpagin”, 7,62; 1 granada para LG P-27 “Pancerovka”; 12 granadas para LG, RPG-7; 85 granadas para LG, RPG-2; 1 granada de morteiro 60; 19 granadas de morteiro 82; 1 mina A/P de salto e fragmentação (bailarina); 1 mina A/P de fragmentação PPMI; 1 mina TMB; 2 petardos de trotil de 1,2 kg.; 24 cargas suplementares para morteiro (caixas); 42 espoletas de granada de morteiro 82; 3 bolsas para carregadores PPZSH; 1 bolsa para carregadores “degtyarev” e cerca de 10 mil cartuchos 7,62 e 7,9 (60% dos quais impróprios). Vd. poste P11740.
Estranha-se a não referência, neste inventário, a material de enfermagem e a medicamentos, na justa medida em que a enfermaria (o tal "hospitalito" do dr. Delgado) foi destruída por quatro vezes, segundo o insuspeito testemunmho do médico cubano.]
(xiii) Andava sempre com apoio?
Durante esse período tive três ajudantes cubanos, o primeiro era técnico de raios X, adoeceu e foi transferido, o segundo trabalhava como técnico de gastroenterologia do Hospital Naval em Havana e que substituíram por este companheiro que era um sargento, de sobrenome Arrebato, e que falava muito pouco.
(xiv) Teve algum problema com ele,
o srgt Arrebato?
o srgt Arrebato?
Com este sargento passei todo o tempo do cerco fugindo. Parece que tinha uma personalidade alterada e isso acabou por o descompensar.
Depois do bombardeamento com napalm, apareceu o chefe da zona, que era um comandante guineense, jovem, forte e muito bem-disposto. Como estavam a cair bombas por todo o lado, chamou um guerrilheiro a quem faltava um braço e pediu-lhe para nos levar dali, a mim e ao sargento através da margem do rio, que era uma zona lodosa [tarrafo] cheia de raízes aéreas.
Para chegar ao rio era preciso passar por zonas de terreno abertas, sem vegetação, e no meio existiam três palmeiras. Chegados às palmeiras parámos para descansar. nesse momento ouvimos o barulho dos hélis e ficámos parados. De imediato, começaram a baixar quinze [?] hélis donde saíram militares portugueses com armas modernas e de impecáveis uniformes, que passaram a poucos metros das palmeiras onde estávamos.
Apercebi-me que um dos hélis estava a cerca de quinze metros e sinceramente pensei que ali mesmo iria morrer.
(xv) O que aconteceu depois?
Não nos detectaram. Passaram muito perto de nós mais de sessenta militares. Estávamos vestidos de verde e encostados em redor das três palmeiras.
Nesse momento pensei nos meus filhos, que iriam ficar sem pai… coitados, tão pequenos. Mas, não. Alguns ramos das palmeiras caíram-nos em cima, por efeito dos hélis estarem a participar no ataque, e os militares portugueses passavam por outro lado em direcção ao local onde haviam caído as napalm. Depois os hélis começaram a retirar.
Entre o ruído dos aparelhos e das bombas, fiquei com muita vontade de urinar, para não dizer outra coisa. Os três nos levantámos, vimos que continuávamos vivos e corremos até à margem do rio. Creio que nos viram quando chegámos ao rio, pelo que nos procuraram atingir com os morteiros. Mas quanto mais granadas nos atiravam mais nós corríamos por cima do lodo.
O sargento Arrebato, porque corria muito rápido, ia à frente. De imediato acabaram-se as raízes aéreas mas a vinte metros existiam outras. Arrebato continuou a correr e quando passava entre as duas caiu a um pântano e começou a afundar-se. Com o impulso que levava foi parar tão longe que nem com a arma o podíamos alcançar. Os troncos das matas eram muito pequenos e, entretanto, uma avioneta sobrevoava-nos. Pensámos que ele iria morrer diante de nós, pois já estava muito enterrado e gritava «tirem-me daqui». O guineense, que tinha um só braço e que estava connosco, não podia fazer uma corrente. Entretanto chegam dois guerrilheiros, embora as morteiradas continuassem a cair perto. Estes elementos foram buscar vários troncos e os atiraram para ele caminhar por cima do lodo, até que finalmente ficou a salvo.
Quando o ataque começou eram sete da manhã e estivemos correndo até às cinco da tarde. Eu não podia nem respirar da secura da garganta, pois não tínhamos água. Chegámos a uma aldeia desolada e no centro havia uma espécie de nascente com lodo e muitos bichos, e assim mesmo a bebemos. Eu levava uma lata de leite condensado, e essa foi a comida: água com lodo e leite condensado para poder seguir.
Cerca de vinte guerrilheiros juntaram-se, depois, a nós e disseram que já podíamos regressar, uma vez que já não se ouviam os rebentamentos. Quando chegámos a um arrozal larguíssimo, a que chamavam lala, sentimos o ruído dos hélis. Tiraram-nos o sono, e os aparelhos passaram-nos por cima. Não sei como não nos viram, pois o terreno era verde e a fila de homens, deitados por terra, usavam uniformes amarelos que receberam de oferta.
Esta foi outra das coisas inconcebíveis que me sucederam. Os hélis recolheram os militares portugueses e retiraram-se. (**)
Continua…
_______________
Notas do editor:
(*) Vd. postes anteriores destas "notas de leitura":
11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...
3 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16357: Notas de leitura (864): (D)o outrolado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte V: o caso doclínico geral Amado Alfonso Delgado (I): queria ir para o Vietname foi parar ao Fiofioli...
(*) Vd. postes anteriores destas "notas de leitura":
11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16380: Notas de leitura (868): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte VI: o caso do clínico geral Amado Alfonso Delgado (II): Na margem direita do rio Corubal, na mata do Fiofioli: «¿Tú piensas aguantar la mecha esta?, olvídate, que no duras ni tres meses" / "Tu pensas aguentar esta ratoeira? Esquece, pois não duras nem três meses”...
3 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16357: Notas de leitura (864): (D)o outrolado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte V: o caso doclínico geral Amado Alfonso Delgado (I): queria ir para o Vietname foi parar ao Fiofioli...
24 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16234: Notas de leitura (851): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte II: a vida dura nas base de Sara, na região do Oio (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)
22 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16224: Notas de leitura (850): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos: o caso do cirurgião Domingo Diaz Delgado, 1966-68, segundo o livro de H. L. Blanch (2005) - Parte I: a partida de La Habana e os primeiros contactos com o PAIGC (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/1974)
(**) Último poste da série > 15 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16390: Notas de leitura (870): A Guiné-Bissau pelo fotógrafo Michel Renaudeau (Mário Beja Santos)
12 comentários:
Como é que os Guineenses e outros como congoleses, angolanos, etíopes e vietnamitas vão um dia retribuir tanto sacrifício a tantos cubanos?
É que era um sonho maravilhoso que foi ao ar...estava escrito que aquele esforço levaria o mundo ao socialismo, até ao ano 2000.
Raios partam os ventos da história!
Os cubanos eram/são como os outros seres humanos... E o depoimento deste homem (e médico) é profundamente humano: não se arma em "revolucionário de pacotilha", teve medo, imenso medo de morrer, como tódos nós tivemos (e temos)...
Já o uso (sistemático) do napalm pela nossa FAP é um caso para se ver, discutir, debater... No meu tempo (1969/71) não tenho quaisquer indícios de uso de napalm, podíamos ter dizimado a população (5/6 mil balantas e beafadas) sob controlo do PAIGC ao longo da margem direita do Rio Corubal, podíamos ter destruído as bolanhas de arroz (em especial a do Poindom), mas não me parece que isso tenha acontecido (e autorizado), com o gen Spínola...
Já na Op Lança Afiada destruirarm-se muitas toneladas de arroz e morto muitas vacas e porcos, à mingua de guerrilheiros mortos e aprisionados...
O Fiofioli era um mito, um "santuário", mas afinal muito pouco seguro, segundo o honesto testemuno deste médico cubano...
Muito poucos dos nossos médicos terão passado por circunstãncias de guerra tão dramáticas como estas que aqui nos são telatadas...
Obrigado, Jorge. Tu e eu e poucos mais sabem dar valor a testemunhos como estes, de homens, de carne e osso, que fizeram a guerra como nós, se bem que do outro lado, sob outra bandeira... A guerra da Guiné nunca poderia ser bem contada sem a sua narrativa, o seu testemunho... Ab. Luis
Mais um dossiê (polémico, mal documentado...), o Napalm na guerra colonial, e aqui referido, superficialmente, pelo cubano Amado Alfonso Delgado. Os efeitos do napalm não são referidos nem descritos detalhamente pelo médico... Admito que se tenha usado napalm na matas do Xime e do Xitole, que eram de densa floresta-galeria... Mas não de maneira sistemática...
Sobre a existência (e uso) de bombas de Napalm nos 3 teatros de operações da "guerra do ulgtranar", vd artigo de António de Araújo (e António Duarte Silva
António de Araújo e António Duarte Silva - O uso de NAPALM na Guerra Colonial - quatro documentos. "Relações Internacionais", Lisboa, nº 22, jun 2009
http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-91992009000200009
Caro Rosinha,
Tamanho sacrificio nao se paga, entrega-se ao todo poderoso. He Deus quem compensa tudo aquilo que ultrapassa a capacidade dos homens.
Nos anos 70/80, o meu desejo intimo de crianca politizada era poder retribuir o sacrificio consentido pelos Cubanos pela causa Guineense, tb com uma accao voluntaria em Cuba, caso fosse atacada pelos Americanos, oportunidade essa que, felizmente, nunca se concretizou.
Hoje, consola-nos o facto de saber que tudo foi feito de forma voluntaria e que com isso (eles) se sentiram humanamente realizados, como homens de paz e como revolucionarios que lutaram por uma causa justa e nobre.
De notar que, com os Cubanos, fortemente engajados e concentrados nos seus objectivos, nunca houve escandalos de desvios de comportamentos, e se os houve, pelo menos, nao sao conhecidos.
O nosso respeito e admiracao pelos Cubanos aumenta ainda mais quando sabemos o grande respeito que a tropa metropolitana sentia pelos mesmos nas conversas do dia dia nos quarteis (quadriculas) do interior da Guine.
Impressionado pelas conversas que ouvia no meio da tropa, sinceramente, durante muito tempo, eu nao sabia se os Cubanos eram gente ou Diabos com asas. Eram impressoes de uma crianca no meio de uma Guerra que nao entendia. Detestavamos os "terroristas" mas simpatizavamos com os "valorosos" Cubanos sem os conhecermos. Se calhar a culpa era da tropa que exagerava nos pormenores dos actos reais ou imaginarios.
Com um abraco amigo,
Cherno Balde
"Concordamos que o heli é uma arma cara (15 contos por hora). Mas é indispensável neste tipo de guerra"...
É uma das conclusões do relatório da Op Lança Afiada, da autoria do cor inf Hélio Felgas...
Julgo que nessa altura deveria haver, no máximo, duas dezenas de helis, operacionais, na BA 12, em Bissalanca...
Quinze contos por hora eram, na época, a valores equivalentes de hoje, 4.459,40 €... Ver conmversor escudos/euro da Pordata:
http://www.pordata.pt/Portugal
Hoje os Kamov, de fabrico russo [utlizados na luta (?) contra os incêndios florestais...] parece que custam aos desgraçados dos portugueses 35... mil euros por hora de voo... Uma pequena fortuna, mais do que ganham por ano, em média, a grande maioria dos trabalhadores portugueses...
http://expresso.sapo.pt/sociedade/2016-04-06-Cada-hora-de-voo-de-um-Kamov-custou-35-mil-euros
Amigo Cherno, para mim não é o Cubano, médico, que está em causa.
É o cubano, ideologista, castrista, guevarista, internacionalista, que (a maioria, ingenuamente) colaborou num malogro africano.
E no caso GUINÉ/PORTUGAL, nós, eu e tu Cherno, não passamos de um passatempo para a dupla Fidel/Kennedy.
Os Cubanos iam para a Guiné para atingirem mais rapidamente Angola e África do Sul em disputa com os americanos.
Olha Cherno, na guerra de 27 anos em Angola, talvez o MPLA lhe deva muitos agradecimentos, os guineenses não devem favores a ninguém, a não ser que o PAIGC se sinta nalguma obrigação.
Que foi uma guerra internacional, isso foi, mas que a fossem fazer para os quintos do inferno que os velhos régulos angolanos, congoleses, guineenses não os chamaram lá.
Vi o início e vi o fim e não me quero enganar.
Cumprimentos
O 7º já está . Abraço Jorge Araújo.
Há, entre nós, aqui no Blogue, camaradas que viveram, e de que maneira, o agora relatado.
Só umas leves notas:
- O material IN capturado, na "Lança Afiada" ,se bem me lembro, era mais do que este.Muito foi apanhado por indicação do Comandante Braimadico do Paigc. Era um "armazém ou paiol",com grande parte submersa.
- O "Hospital" com muito material foi destruido. Tinha "enfermarias" de Homens e Mulheres.
As matas do Fiofioli eram tremendas e importantes para a guerrilha. Percorremos 15 %,não sei. Desde o inicio da guerra nunca tinhamos ido lá.Disseram-nos. Aguela zona do L1 era tábu...
- Na Guiné haviam 15! Helis??? Tantos??? Não sei.
- Fomos brandos com o IN por indicação superior. Lastimo.
O Soldado português sofreu bastante com a imprópria alimentação, calor, etc mas aguentou firme.Nunca o meu GC teve tantas baixas numa emboscada. Estive fora dois dias (evacuado).
Sobre o napalm nada digo.
Ab,T.
Estas leituras de Jorge Alves Araújo são mais um complemento importantíssimo para um dia se compreender em toda a extensão a guerra internacional que nós e milhões de angolanos, moçambicanos e guineenses suportámos.
O PAIGC ensina ou insinua, aos jovens guineenses, (JAC), que os guerrilheiros do PAIGC eram mais valentes, lutadores, que os guerrilheiros do MPLA e da FRELIMO, até mesmo Amílcar Cabral escreve algo sobre o sucesso do PAIGC e o insucesso dos outros congéneres de Angola e Moçambique.
O PAIGC (pelo menos o PAIGC de tempo dos burmedjos)até assumem que são os verdadeiros responsáveis pela independência de Angola e Moçambique, e até o 25 de Abril tuga, devia ser em honra do PAIGC, e é uma sem-vergonhice não se mencionar esse facto no aniversário da festa dos cravos e atribuir os louros aos capitães de Abril.
Na realidade Amílcar sabia, tal como todos os governantes caboverdeanos hoje também sabem, usar os parcos meios que lhe ponham à sua disposição, para sobreviver e se orientarem.
Ora se este médico cubano encontrou no corredor (1000 metros) de Guilege, apenas 20 combatentes cubanos, se fosse nos imensos "corredores" de Angola, seriam preciso alguns milhares.
E o efeito final seria o mesmo "a vitória final".
Só que na Guiné, meia dúzia de cubanos e alguns canhões atingiam Angola e África do Sul e ficavam mais baratos que milhares em Angola.
(As afirmações que faço sobre o que ouvi a jovens da JAC, Juventude Amílcar Cabral, em Bissau, não as tenho em gravador, e quem quiser duvidar que duvide mas cada um deve contar o que viu e ouviu enquanto tenha memória, e sem complexos nem preconceitos)
Cumprimentos
Este documentos, insupeitos, são exemplares da verdade histórica, da mais que autêntica situação, do real no dia a dia da nossa guerra.Chamo a atenção para a enorme disparidade de meios e de poder militar existente entre os guerrilheiros do PAICG e as Forças Armadas portuguesas.Neste blogue tenho lutado pela verdade histórica, para que se faça justiça às tropas portuguesas, que tanto sofreram, e também que, para além das utopias revolucionárias cujos resultados conhecemos, se dê valor aos combatentes do PAIGC e agora a estes heróicos médicos cubanos.
Abraço,
António Graça de Abreu
Jorge, eu queria dizer "NÃO usámos napalm de maneira sistemática"...
Este dossiê não está fechado...Os camradas da TAP têm uma palavra (decisiva) a dizer sobre esta questão tabu... O Napalm contra civis, emn contexto de guerra, só foi proibido pelas Nações Unidas em 1980...
Relativamente às tias notas de leitira, pelos comentários, mesmo no "nosso querido mês de agosto", a malta está a "render.-se" ao teu trabalho, minucioso, rigoroso, generoso, ... Ab grande. LG
Jorge Araújo:
Camarada Luís,
Bom dia!
Já regressei de Albufeira depois de duas semanas a banhos. Agora em Almada, a agenda diz-me que tenho uma semana de "bricòláge" (bricolagem) do que não foi possível realizar anteriormente. Seguem-se mais quatro ou cinco dias em Sesimbra, no apartamento da sogra, até ao final do mês.
Vou tentar concluir a 8.ª parte das memórias dos médicos cubanos.
Quanto ao tema "napalm", só os camaradas da FAP nos poderiam esclarecer neste assunto.
Sobre o valor dos comentários, eles demonstram um elevado grau de bom-senso, sendo da mais elementar justiça sublinhar os expressos no último poste. Destaco, em síntese, aquela que é da tua autoria: "A guerra da Guiné nunca poderia ser bem contada sem a sua narrativa [do outro lado... isentos, como têm sido até agora, os testemunhos transmitidos, não tendo eu nenhum problema em aceitá-los como tal, tirando um ou outro pequeno detalhe de menor importância. Será que cada um deles tinha a preocupação de fazer o seu diário? Tinham papel e caneta? Não creio! São algumas das principais memórias que guardaram dessa experiência, exactamente como aconteceu com a maioria de nós.
Até breve. Boa semana.
Um abração. Jorge Araújo.
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