Choro para uma morte anunciada!
por Luís Graça
Em memória
de todas as vítimas
da Op Abencerragem Candente,
Xime, 26/11/1970,
ontem, hoje, amanhã;
em memória do Cunha (1948-1970),
em memória do Amaro dos Santos (1944-2014),
em memória de todos nós, afinal...
Esquecer a Guiné, camarada!,
a salada de atum, cebola e tomate,
a salada de atum, cebola e tomate,
que vai ser a tua última ração de combate,
e o copo de vinho verde tinto
e o copo de vinho verde tinto
que tomas de um trago do teu cantil de fel
e o último cigarro
que partilhas connosco,
que partilhas connosco,
nharros de 1ª classe,
tu, camarada e amigo, ainda "pira",
que não sabes que vais morrer,
à hora marcada,
que não sabes que vais morrer,
à hora marcada,
às 8h50…
Um, dois, três, quatro, cinco, seis homens
vão morrer daqui a três ou quatro horas,
às 8h50,
às 8h50,
em vinte e seis de novembro
de mil novecentos e setenta,
de mil novecentos e setenta,
no cacimbo da madrugada,
na antiga picada do Xime-Ponta do Inglês.
Cinco brancos e um preto,
a lotaria da morte, em L,
numa emboscada que é cubana,
numa roleta que é russa,
com os RPG, amarelos, "made in China"...
O génio da morte que é, afinal,
universal!
universal!
Qualquer um de nós,
que está aqui à volta da mesa,
pode vir a morrer, camaradas,
na próxima hora!,
pode vir a morrer, camaradas,
na próxima hora!,
galhofas tu,
com um sorriso amarelo,
para exorcizar os teus medos,
os nossos medos coletivos...
Ou nem isso,
um gajo que se preza,
não fala da morte na guerra,
às 3 horas da madrugada,
no Xime de todas as batalhas,
a caminho do vespeiro da Ponta do Inglês,
indo exatamente pelo mesmo trilho da véspera,
porque não há outro,
e os olhos e os ouvidos e a boca dos irãs do Xime
não estão do teu lado,
pobre tuga,
que vais morrer a cinco mil quilómetros da tua terra,
lá no teu verde Minho,
tu que nunca mais irás de Barcelos a Viana,
em noite de romaria!
em noite de romaria!
Camaradas,
qualquer um de nós pode lerpar
na próxima saída para o mato,
ou até com os cornos enfiados no abrigo,
porque há sempre uma hora
para morrer.
De um tiro no coração,
de um roquetada,
porque há sempre uma hora
para morrer.
De um tiro no coração,
de um roquetada,
de uma canhoada,
de uma mina antipessoal,
de uma mina antipessoal,
do despiste de um Unimog,
de um ataque de abelhas assassinas,
da picadela mortal da cobra verde,
da explosão de uma granada de morteiro
ou até de paludismo cerebral
ou de simples morte súbita,
fulminado por um raio dos irãs irados,
debaixo do poilão onde dormes com a tua bajuda...
o teu jovem capitão de artilharia,
vinte e tal anos,
acabado de sair da Academia Militar,
que se recusa a sair com os seus homens
para a Ponta do Inglês…
E o safado do segundo comandante do batalhão
que lhe manda dizer, alto e som,
pelo altifalante da parada:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
nem que seja a reboque de uma GMC!"...
acabado de sair da Academia Militar,
que se recusa a sair com os seus homens
para a Ponta do Inglês…
E o safado do segundo comandante do batalhão
que lhe manda dizer, alto e som,
pelo altifalante da parada:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
nem que seja a reboque de uma GMC!"...
Esquecer a Guiné, camarada,
nem que seja por uma noite,
por esta noite
por esta noite
em que um de nós, quatro,
que estão aqui à volta desta mesa tosca,
que estão aqui à volta desta mesa tosca,
vai morrer!
O sabor a sangue e a merda
que a vida aqui tem,
aos vinte e poucos verdes anos,
a merda da Guiné,
a merda verde rubra do Xime,
a merda que te cobre o corpo e a alma,
é muito mais do que a merda toda,
das bolanhas, das lalas e do tarrafo
do Geba e do Corubal!
Podes lavar-te todos os dias,
O sabor a sangue e a merda
que a vida aqui tem,
aos vinte e poucos verdes anos,
a merda da Guiné,
a merda verde rubra do Xime,
a merda que te cobre o corpo e a alma,
é muito mais do que a merda toda,
das bolanhas, das lalas e do tarrafo
do Geba e do Corubal!
Podes lavar-te todos os dias,
mesmo que não morras amanhã,
à hora aprazada,
à hora aprazada,
às 8h50,
que essa merda nunca mais te sai,
que essa merda nunca mais te sai,
nunca mais te sairá,
nunca mais te sairá do corpo e da alma!
Podes até trocar de camuflado,
Podes até trocar de camuflado,
de bandeira,
arrancar a pele,
trocar a G3 pela Kalash,
venderes a alma ao diabo,
essa merda que te vai matar,
está te entranhada,
essa merda que te vai matar,
está te entranhada,
no corpo e na alma,
até ao tutano!
Quem disse que descansarás em paz, camarada,
e que a terra da tua pátria te será leve ?!
Meu pobre camarada,
Quem disse que descansarás em paz, camarada,
e que a terra da tua pátria te será leve ?!
Meu pobre camarada,
meus bravos camaradas,
meu Deus,
que pedaço de inferno foi este
que nos coube em vida,
nesta terra?!
que pedaço de inferno foi este
que nos coube em vida,
nesta terra?!
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Nota do editor:
Último poste da série > 14 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16717: Manuscrito(s) (Luís Graça) (101): Comer macacos... só os do nariz!... Ajudemos os guineenses a proteger o "sancu" (macaco) e o "dari" (chimpanzé)...Ficaremos todos mais pobres quando eles se extinguirem... e quando as areias do deserto do Sará chegarem às portas de Bissau!... Ficaremos todos mais pobres, os guineenses, os amigos da Guiné, todos nós, os últimos dos hominídeos..
3 comentários:
Como dizes camarada, a Guiné foi uma roleta russa que felizmente não disparou contra nós, no entanto fez tamanha mossa no nosso ser, que parece não nos querer abandonar, nem que vivamos 100 anos.
Um abraço
José Nascimento
O Joaquim de Araújo Cunha não de era de Viana do Castelo, mas de Barcelos... Nasceu em Outeiuro, antiga freguesia de Carreira, concelho de Barcelos. Está sepultado noi cemit+erio da freguesia natal... Hoje Carreira faz parte da União das Freguesias de Carreira e Fonte Coberta.
http://ultramar.terraweb.biz/03Mortos%20na%20Guerra%20do%20Ultramar/LetraB/MEC_042n.pdf
Em tempos apareceu aqui, a comentar uma sobreinhado Cunha, a Ana Silva... Não temos o seu contacto de email ou nº de telemóvel... Será que alguém a conhece ? Ou que ela nos volta a ler ?... LG
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2012/05/guine-6374-p9863-decaras-10-relembrando.html
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Sou Sobrinha do FUR Mil Joaquim de Araújo Cunha. Apesar da mágoa, a minha mãe gostou muito de ler estas palavras e perceber que era acarinhado pelos colegas. Temos, ainda, guardadas todas a fotografias pelo que teremos todo o gosto em as partilhar.
Obrigada. Cumprimentos para todos.
11 de março de 2015 às 22:14
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