segunda-feira, 22 de maio de 2017

Guiné 61/74 - P17387: Notas de leitura (960): “Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2017:

Queridos amigos,
Sim, é verdade, os teatros de guerra distinguem-se à légua, quando se fala de manchambas, mainatos, embondeiros ou pacaças, sabemos que esta linguagem não é aplicável ao território guineense, onde não há montanhas, nem abismos, nem se fazem viagens de centenas de quilómetros.
A guerra de Daniel Gouveia passou-se em Angola, mas o escritor teve a varinha mágica de versar as coisas num contexto tal que ninguém fica de fora, somos empurrados em todas estas viagens, peripécias, bizarrias e acontecimentos épicos, como será a última história de uma parturiente que tinha o seu bebé atravessado, lá foi de jipe até ao hospital, as esperanças eram poucas, o jipe deu uma sacudidela mais violenta, a criança empinou-se para a frente, houve um final feliz.
É um livro testemunho de alguém que deve ter uma visão positiva da vida, que não conhece rancores e tem as melhores memórias de se ter feito homem no meio daqueles arcanjos e bons demónios.

Um abraço do
Mário


Arcanjos e bons demónios: histórias de cuidado, de fraternidade e horror (1)

Beja Santos

“Arcanjos e Bons Demónios, Crónicas da Guerra de África 1961-75”, por Daniel Gouveia, 4.ª edição, DG Edições, 2011, é um livro notável, seja qual for o prisma com que encararmos estas crónicas em que um alferes descobre um continente, novas dimensões da solicitude, impensáveis usos e costumes, mas também o medo, a camaradagem e o amor ao próximo. Digamos que são memórias a partir da senectude de alguém que se temperou em múltiplos ofícios, desde velejador oceânico, passando por gestor comercial, à tradução edição de livros. Percebe-se que houve uma laboriosa congeminação para ter chegado a este documento ímpar. É timbre da melhor literatura de guerra pôr o homem perante os seus desafios, por caminhos em que se vê que ele está a crescer e que pela vida fora nada superará o que ali aconteceu, de armas na mão ou a ajudar os outros. Daniel Gouveia concebe as suas crónicas naquele saboroso estilo da narrativa das mil e uma noites, do tipo na sequência do capítulo anterior até chegarmos a um derradeiro episódio que nos deixa com vontade de saber mais.

Crónicas montadas numa grande capacidade de observação e de confessado deslumbramento. Logo a descrever uma queimada:
“A queimada era a grande convulsão da planície. A hecatombe dos pequenos e lentos: caracóis, formigas, pássaros ainda no ninho, cágados surpreendidos longe do seu pântano. A muralha de fogo avançava, crepitante, atirando ao ar palhas a arder, folhas, cinzas, em turbilhões desencontrados, com um ruído de trovão contínuo, pontuado por estoiros de troncos a rachar. Uma dança de vermelhos e amarelos, golfando fumo que coava o sol numa luz acastanhada e sombria. E castanho era o cheiro que inundava o ar e alarmava os bichos. A frente de chamas agitava-se, qual pano de fundo no drama dos que não tinha uma toca suficientemente funda. Por cima revoluteavam as águias, sacudidas pela turbulência, antes de picarem sobre alguma cobra ou rato em fuga louca, desvairados pelo ardor nos olhos”.

Dotado de uma grande capacidade de olhar e exprimir sentimentos, é fluente e impressivo a contar-nos as dores da morte, o rescaldo na desgraça, os imprevistos de uma agonia, a tentativa de fotografar uma onça na armadilha. Em vagas sucessivas, o leitor é introduzido na fauna e na flora, acompanha quase por dentro os estrépitos do confronto entre o homem e o bicho. O pelotão em patrulha dera com o rasto de pacaças e o guia pontificou, tinham passado havia pouco minutos, seriam uns vinte animais, com crias, estavam a cinquenta metros dali. Não se pode perder o episódio.
“- Como é que sabes isso tudo? 
- Meu alferes, o excremento ainda fumega. O trilho largo assim… São umas vinte, mais ou menos. Vê estas bostas mais pequeninas? São das crias. 
- E como é que sabes que estão a cinquenta metros? 
- O meu alferes não ouve? 
- Ouço o quê? 
- Este barulho, de vez em quando, de paus a partir… São elas a andar, devagarinho. Enquanto pastam, pisam ramos secos, partem paus. Olhe! Ouviu agora?”.

Toda a boa literatura é uma história bem contada, é o que encontramos aqui, já não se pode lagar o texto, o guia explica o que vai fazer, a tropa dispõe-se na defensiva, o guia deita-se a bater com as mãos e os pés no chão e a imitar o grito da cria de pacaça quando é atacada. O que se segue atabafa os sentidos:
“Passaram uns segundos, durante os quais nada se ouviu senão a restolhada e guinchadeira do guia, no que mais parecia um ataque epiléptico. Os primeiros risos dos soldados foram, porém, apagados por um ruído surdo, levantando-se progressivamente do interior da mata. Primeiro era um trovão longínquo, em crescendo contínuo. Depois o chão começou a tremer e o trovão a aproximar-se, acompanhado do estralejar de ramos partidos e vergastadas de arbustos. O que se ouvia contrastava com a quietude absoluta do que a vista registava, num ambiente irreal de tensão avolumada a cada instante. A seguir, as folhas das vergônteas mais finas entraram em vibração. Por fim, o barulho atroador e o tremer do solo assemelhavam-se ao metropolitano a entrar na estação. De repente, a ramaria baixa que limitava a clareira abriu-se num rompante e dela saiu um turbilhão de patas e chifres com 400 quilos de carne lançada a toda a força. Vinha num trote rapidíssimo, com o focinho rente ao chão, narinas e olhos dilatados, resfolegando. Ouviu-se um tiro e aquela visão aterradora desmoronou-se, percorrendo os últimos metros já desarticulada e rojando os flancos, em espasmos de agonia. Os animais que vinham atrás eram muito menos corpulentos e, tal como o guia previa, mal chegavam à clareira, guinavam, em fuga precipitada, para a esquerda e para a direita, deitando um último olhar apavorado ao chefe morto”.

Não se trata das descrições de uma guerra com um recurso ao teatral, à bazófia, ao caricatural ou chocarreiro. O que se escreve vem da inspiração de olhar seres humanos, brancos ou negros, na sua inteireza, procurar entender as normas culturais do residente ou do militar que ali aterrou, vem da predisposição de estar aberto à sabedoria dos outros, daí as peças saborosas da conversa do alferes com aquele guia que sabe quando passou o javali, que estudou as folhas, e que por ali passou uma cabra-do-mato perseguida por uma onça. O alferes recebe uma soberana, a rainha D. Isabel, dos Marimbas, com poder de vida ou de morte sobre os súbitos, entrou no quartel a dançar, acompanhada pelo seu séquito. “Com uma desenvoltura de negar os seus 80 e tal anos, comandou uma rodopiante coreografia de requebros de anca e revoluteios de braço, com a qual o grupo franqueou a distância entre a porta de armas e o centro da parada, no meio de nuvens de pó levantadas pelos pés descalços”. Alguém advertiu ao alferes que devia mandar vir duas cervejas para a rainha. Conversaram, o alferes entendeu a parte diplomática: mandasse o alferes nos portugueses e a deixasse a ela mandar nos pretos, que se haviam de entender muito bem, pois isso de perder poder não agrada a ninguém e era melhor ajudarem-se nesse particular. A conversa terá corrido bem, despediram-se com a garantia mútua de paz e concórdia, e o cantineiro lá explicou ao alferes porquê mandar servir duas cervejas bem frescas à rainha:
“Saiba que para esta gente é má educação oferecer apenas uma unidade seja do que for. Porque isso é oferecer o mínimo. Se queremos mostrar verdadeiro gosto em presentear, tem de ser, pelo menos, duas unidades. De outra maneira estamos a insultar a pessoa”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17383: Notas de leitura (959): Prefácio de António Graça Abreu, ao livro "Guiné: um rio de memórias", de Luís Branquinho Crespo, lançado em Leiria no passado dia 6 com a presena do presidente da Câmara Municipal local, Raul Castro, também ele ex-combatente

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Aquilo era uma maravilha, um espectáculo...eu e este alferes dizemos e repetimos, mas pouca gente acredita.

Principalmente quem passou por Buruntuma ou Pirada ou Madina do Boé, é dificil acreditar no que este alferes relata.

Respeitemos quem lá morreu, brancos ou pretos, mas a culpa da guerra em Angola não era, nem é, das pacaças, elefantes, cabras de leque, sobas ou colonos...que já pouco disto existe.

E era tão bom!