sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18324: Notas de leitura (1041): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (22) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,
O gerente Virgolino Teixeira merece as honras de ver a sua exposição classificada como "Absolutamente Confidencial" e dirigida ao presidente do conselho administrativo, em Lisboa com todo o destaque, com o máximo de pormenor. Doravante, nenhum estudioso deste período da história da Guiné pode passar à margem do que ele aqui escreve: denuncia a corrupção e imoralidade do governador e do seu círculo; denuncia a infamante exploração dos Balantas, que ele classifica como os indígenas mais laboriosos, denuncia os serviços públicos, num estado de bandalheira, classifica de completo embuste o que se diz sobre a pacificação dos Bijagós. E ainda temos mais pela frente, a denúncia é extensa, nenhum setor de atividade lhe escapa.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (22)

Beja Santos

Continua-se a dar espaço ao documento intitulado “Absolutamente Confidencial” que o gerente do BNU em Bissau enviou em 10 de Outubro de 1938 para o Presidente do Conselho Administrativo, em Lisboa. Nada, absolutamente nada, de toda a documentação consultada no Arquivo Histórico do BNU tem carga tão explosiva como este documento, não sei se existe um libelo acusatório tão devastador sobre a governação de Carvalho Viegas como este. O gerente não podia mentir nem manifestar ressentimentos seria o seu funeral profissional. E da leitura do vasto documento também se pode inferir que ele sabia da poda, dos nomes implicados, políticas, organização de serviços, como se vai ver adiante.

“Bissau progride. O senhor governador Viegas faz tudo o que pode, à socapa, para demorar a capital em Bolama visto Bissau ter altivez para não lhe prestar vassalagem às suas indignidades e porque a amante – telegrafista do Estado – quer estar em Bolama. Para despistar, mandam-se algumas repartições de Bolama para Bissau, mas sem se curar de haver ou não haver alojamento para o pessoal. Há chefes de serviços que vivem casas-pocilgas. O senhor governador vai a Lisboa, e manda que a amante o aguarde ao serviço em Bissau. Gastam-se seis contos numa moradia dentro da própria repartição dos correios e lá se instala a ‘dama’ que entra a impor a sua qualidade de ‘governadora’.
Bissau tem altivez e não aceita tais afrontas. A dama sente-se mal só com a subordinação total dos funcionários pequenos e de um ou dois chefes de serviço. Quer a subordinação geral. Não a tem e o senhor governador Viegas manda que seja transferida de novo para Bolama. Mas manda em cartas para diversos íntimos, pois o Encarregado de Governo é tão alta pessoa moral que ele nem se atreve a tocar-lhe em tal miséria. Manda então a amante pedir-me que seja eu porta-voz dos seus desejos junto do Encarregado de Governo. Finjo que não ouvi nada. Tudo é público, tudo é vergonhoso. Sob o aspeto moral, haveria mais. Nunca se acabaria. Mas o que está escrito chega”.

Segue-se um conjunto de observações sobre a economia guineense. É extremamente útil ouvi-lo.

“A riqueza da colónia provém da sua agricultura. Esta, por falta de braços, por negação do indígena e por falta de educação deste para efeitos de trabalho, não pode ser feita por particulares, sós ou constituídos em empresas. Como indústria ligada à agricultura, há apenas a de fabrico de aguardente de cana. Mas não é de cana, é de caju, é de açúcar importado, é de farelo de arroz, e de tudo o que fermente e destile, mesmo que os tubos de destilação matem o indígena. É pois a agricultura da colónia unicamente feita pelo indígena, a seu bel-prazer. E no capítulo do trabalho está na primeira linha o Balanta que é, na verdade, trabalhador incansável.
A economia da colónia depende em grande parte do labor do Balanta. Consequentemente, devia ser esta a raça mais acarinhada, mas ensinado não só nas lavouras atuais como na introdução de lavouras novas e processos mais racionais. Mas não. O Balanta apenas merece um carinho especial o de se lhe tirar, a bem ou a mal, todo o produto ou todo o dinheiro que tenha. O imposto de palhota é X. Mas o Balanta não paga por palhota. Paga por quantas divisões a palhota tiver. Alguns arroladores até querem considerar ‘quarto taxado’ o curral onde o porco dorme ou o quadrado do quintal onde semeia a mandioca. As autoridades venais têm no Balanta a sua fonte de receita… privada. Roubam-nos de todo o modo. Chega a parecer mentira como o Balanta, em certas zonas, ainda trabalha e ainda não fugiu! A região de Tombali era coisa sem valia ainda há anos. Chegou lá o Balanta que afastou mais o Nalu para o Norte. Das bolanhas tirou arroz por milhares de contos. As autoridades viram mina e os Balantas pagaram muito imposto. E veio a rede dos concessionários de terras. E algumas autoridades ligaram-se a eles, intimamente, secretamente. E tudo junto tem espoliado, tem roubado, a bem ou a mal, o pobre Balanta. Como lenitivo, mandam-lhe, o mais caro possível, a aguardente de tudo e até com cores, mesmo da destilada por tubos de chumbo. Sabe lá alguém, naquelas regiões, porque morreram os Balantas…! Que vale a vida dos Balantas nesta terra onde nada vale desde que tenha valor? É assim mesmo que se trata o maior valor económico da colónia, o pobre Balanta”.

E depois desta catilinária, chama à atenção para o setor exportador descurado:
“A colónia podia exportar contos e contos de cera e mel, riqueza permanente de laboração quase gratuita pois se limitaria à aquisição de colmeias racionais que acabariam por ser feitas na colónia, copiadas dos melhores modelos. Absolutamente nada se faz neste capítulo. A cera que se exporta, porque mel se não exporta, é colhido das colmeias naturais que as abelhas fazem nos buracos das árvores, mas na colheita ou se destrói o enxame ou o enxame e árvore, conjuntamente, porque o indígena, para mais comodidade, larga fogo à árvore para afugentar o enxame e para que a árvore caia ao chão, evitando-lhe portanto os perigos e massadas de ter que trepar”.


Inevitavelmente, o tema dos transportes vem à baila:

“O volume enorme dos transportes, na Guiné, é feito pelos rios e canais que a retalham. No entanto, o tráfego pelas estradas é importantíssimo, do interior para o porto de Bissau, a cidade mais comercial e, na verdade, a verdadeira capital da colónia. Centenas de automóveis e camiões afluem à passagem forçada, por ser a única, no canal do Impernal, que liga o continente à ilha de Bissau. Para tal passagem à apenas uma pré-histórica jangada que em dias de festa pode transportar dois automóveis – não sem perigo – ou uma camioneta pouco carregada.
Centenas de metros abaixo desta passagem há um princípio de construção de uma ponte metálica onde se gastaram milhares de contos que hoje estão perdidos por se ter abandonado a obra.
Mais centenas de metros acima, há um estreitamento de um canal cuja margem do lado de Bissau forma um banco de lodo com sete ou oito metros de fundo e cuja margem do lado do continente tem pouca lama e terra firme. Já está autorizada a verba para a construção da ponte, utilíssima para a vida económica da colónia. Somente as obras públicas da colónia são absolutamente incompetentes para fazer a ponte. E o tempo passa, as formalidades legais farão sumir a verba e a ponte ficará para as calendas gregas. E a economia da colónia continuará sofrendo.

Como despesa inútil que afoga, sem recuperação, umas centenas de contos, as célebres oficinas navais de Bolama ferem duramente a moralidade económica da colónia. Não fazem quase nada de bom. Estragam materiais em reparações que nada duram, se é que não destroem mais o que é reparado. É exemplo frisante o vergonhosos estado em que se encontram os vaporinhos do governo que já levam seis e sete horas a ir de Bolama a Bissau com perigo iminente para a vida de quem neles anda. E tudo isto porquê, porque o senhor governador Viegas se serve das oficinas navais para fazer guerra à indústria particular da Sociedade Industrial Ultramarina, sem se importar com honestidade na governação nem na economia da colónia.

E os observatórios oceanográficos e meteorológicos? Onde estão? O que fazem? Nada, mesmo nada. Apenas se sabe que há observadores a ganhar e despesas a correr. Mas se dos elementos desses serviços se quer saber a que horas é a maré alta ou baixa ou de que banda está o vento tem que se perguntar a um Manjaco o que há de marés e tem que se deitar um papel ao ar, para ver que rumo leva. E sobre o rebocador novo, que custou uns milhares de contos? Ainda está a fazer. Quando cá chegar, pouco ou nada se fará com ele mas há anos e anos que da economia da colónia saem contos para pagar ao seu comandante que leva os dias e os anos encostado às janelas da capitania, sem ter nada, mesmo nada, que fazer.
E uma oficina dos serviços de transportes terrestres que custa à economia da colónia 292 contos? O que ali se estafa em material! Carro que lá entra, ou fica pior ou morre de vez. Existem também para servirem de arma, na mão do senhor governador Viegas, contra a indústria particular. Mas, mais alto, bem mais alto do que tudo isto, estão as “granjas do Estado”.
Somam-se por milhares e milhares os contos que nelas se têm enterrado sem nenhuns, absolutamente nenhuns, resultados práticos. Dessa formidável sucção na economia da colónia não resulta a venda de um cento de laranjas. E como ensinamento aos indígenas, não me parece que possa sair mais que alguma data de pancada em algum que se atreva a ir lá ver como estão as couves… do pessoal das granjas. Se isto é mesmo assim, porque não se há de dizer tal qual como é.

Nas obras públicas então vai um pavor. O engenheiro chefe Afonso de Castilho faz medo, de tão incompetente inútil que é. Nas obras em curso, rouba-se a torto e a direito. Nos fornecimentos de material há ligações desonestíssimas, como a casa Ed. Guedes Lda.
Os empreiteiros roubam descaradamente. As obras cujo custo anda por uns 100 contos pagam-se por 400 ou 500. Um verdadeiro horror.
Da capitania dos portos, mais desperdícios de dinheiro. Os barcos das carreiras andam sujam em demasia. Pudera, contos e contos de tintas vão para a casa particular do capitão do porto a cujo serviço particular estão os remadores todos, que custam caro. É por isso que para um indígena ser admitido como remador precisa de saber cozinhar, saber engraxar, saber lavar roupa, saber encerar. Enfim, tem que saber alguma coisa desde que não seja remar…"


(Continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 9 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18304: Notas de leitura (1039): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (21) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18311: Notas de leitura (1040): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (4) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Não há direito, o gerente bancário falar tão mal de toda a função pública.

Para ele eram todos gatunos, corruptos, incompetentes, até os granjeiros do Estado nem deixavam outros comer-lhe as couves.

Até eu mesmo me sinto atingido, que também fui funcionário ultramarino...e suei tanto, ainda não havia ar condicionado.

Ainda hoje ninguém reconhece o suor dos servidores do Estado, como este gerente, para ele os privados, é que seriam bons.

Então os das finanças eram os mais mal vistos,iam apanhar o IMI até à pocilga do porco dos Balantas, cá agora na metrópole aumentam o IMI se a casa estiver virada ao SOL.

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Por mim, acho que os comentários a este tipo de posts estão feitos e não são surpreendentes.
Seria bom que fizéssemos investigações pormenorizadas e fôssemos confirmando, ou não o que, na realidade se passava e passou, antes da nossa chegada.
Não há-de andar muito longe do que os "relatores" denunciam.

"Aquilo" estava mesmo entregue aos bichos. Nalguns casos seria um pouco melhor, mas noutros deveria ser bastante pior. A resultante...
Reparem que estes documentos não estão na posse do governo, o que quer dizer que a conivência marchava de cima para baixo. No fundo havia uma "entourage" que sabia que aquilo estava a saque, mas não podia(?) ou não queria "partir a loiça" porque não queria ter problemas e assim podia ser que recebesse também uma aparazitas...

Um Ab.
António J. P. Costa