sábado, 17 de fevereiro de 2018

Guiné 61/74 - P18327: Os nossos seres, saberes e lazeres (253): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 28 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Era uma viagem de lembranças, um retorno com a distância de 40 anos, o objetivo primordial era abraçar amizades inquebrantáveis, rever os locais conhecidos em 1977, alargando a peregrinação a todos os espaços posteriormente conhecidos. Será o caso de Namur, como adiante se contará.
Hoje, o viandante anda de saco ajoujado com as compras feitas na Feira da Ladra, local mítico, sempre que alguém lhe entra em casa ele vai apresentando aguarelas, desenhos, estatuetas, esculturas, porcelanas e nunca se esquece de dizer: "Vieram da Place do Jeu de Balle". Há ali mesmo, no vestíbulo, um quadro imenso com uma esplêndida moldura de madeira entalhada que entrou num avião da TAP e terá seguramente deixado as piores recordações a uma hospedeira.
É muito bom ter Bruxelas em casa, naquele álbum fotográfico exótico de alguém que começou em Vilar Formoso, esteve em Fátima e em Lisboa, fotografou tudo, algures nos inícios da década de 1950, e há música mesmo, como a integral das sonatas para violino e piano de Beethoven por dois intérpretes lendários.
Afinal, também somos uma composição de lugares.

Um abraço do
Mário


Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (3)

Beja Santos

A tendência natural para melhor tirar partido da viagem é ler um bom roteiro, conversar previamente com os autóctones, ver o traçado das artérias do local visado. Quase todos nós somos atraídos pelos bairros antigos. Quem vem a Lisboa procura Alfama, Madragoa ou Mouraria. No caso de Bruxelas é o bairro de Marolles, está bem perto do Palácio da Justiça, o primeiro itinerário que o viandante já badalou. Marolles é constituído por ruelas e ruas que estão cada vez mais sujeitas ao fenómeno da gentrificação, passou a ser chique renovar prédios e viver num ambiente interclassista. Marolles está pejado de comércio, avulta o das antiguidades e o bricabraque está na Praça do Jeu de Balle. Não se deve ir ao sábado ou ao domingo à Feira da Ladra, os preços duplicam. Aqui encontra-se tudo o que saiu dos sótãos e que resiste à insensibilidade dos herdeiros, que vendem a pataco os objetos mais íntimos dos seus ancestrais.


Do livro que o viandante sobraça diz-se acerca de Marolles: Coração da agitação proletária até ao início do século XX, depois dos desempregados, quando as fábricas abandonaram o território, tornou-se num lugar de passeio domingueiro, espaço cobiçado de renovação. Marolles viveu ao ritmo da miscigenação e das trocas. Os imigrantes (judeus da Europa de Leste, primeiro; em seguida, espanhóis, depois marroquinos) deram origem a fluxo de gente que seria enquadrada por instituições sociais e a uma vida associativa rica e densa. A Feira da Ladra é essencialmente hoje um local de comércio marroquino.





Era uma manhã de céu limpo, os feirantes munem-se de toldos, as bátegas da chuva às vezes contrariam as previsões meteorológicas. Para o viandante foi um dia de festa: uma edição luxuosa dos poemas de amor de Paul Éluard, poemas fac-similados, com desenhos de Picasso e Chagall, duas obras preciosas com iluminuras da Biblioteca Nacional de Paris e de livros persas, lenços, artefactos religiosos, loiça Wedgwood, e algo mais, a preços imbatíveis. Mas o viandante tem problema que vem ali para encantar os olhos. Há, contudo, aquele espetáculo de sofrimento dos álbuns de família, das caixas de costura, das bibliotecas que tinham uma orientação temática, os cd’s meticulosamente classificados, é um pouco como estar a mexer na vida íntima de cada um. É toda a azáfama da Praça do Jeu de Balle que fascina o viandante. Foi sempre assim e espera-se que seja sempre assim, até à última viagem.




Depois de se locupletar com uma adubada waterzooi, um género de sopa cremosa com nacos de galinha, viandante e companha avançam para Saint-Gilles, atravessam a Porta de Hal, o objetivo é o Museu Horta, um dos mais internacionais museus de Bruxelas, pois gente de todo o mundo vem aqui em peregrinação adorar a arquitetura Arte Nova de um dos seus mais consumados génios. Saint-Gilles e Ixelles possuem residência de sonho, mas são multiétnicos. Escreve-se na obra que acompanha o viandante: Com a imigração portuguesa, espanhola, grega, marroquina e africana, a população densificou-se e, na sua esteira, o número de lojas e cafés aumentou. Nestas comunas, dotadas de múltiplos bairros heterogéneos variando de uma rua para outra, formando micro-aldeias, estabeleceram-se desde o início artistas e intelectuais, a que se vieram juntar depois os eurocratas.



Escreve-se no roteiro do viandante: Erguidas entre 1898 e 1901, casa e ateliê respeitam o traçado do bairro e inscrevem-se no tecido urbano, reservando, nas traseiras, um ilhéu de jardins. Volumes, decoração e mobiliário compõem um mundo harmonioso no qual proporções, cores e aberturas das divisões banhadas de luz se integram perfeitamente, num jogo delicado e audacioso de materiais industriais (ferro e cerâmicas) e luxuosos (madeiras preciosas). O guia do museu apresenta-nos a relação dos trabalhos de horta na cidade, caso do Palácio das Belas Artes e da Maison du Peuple, esta destruída. São interiores primorosos, o viandante perde-se a ver puxadores, corrimãos, portas com vitrais, escadarias, tem a garganta seca com tanto esplendor de arte nova, sobe aos diferentes andares, está tudo irrepreensivelmente zelado. E sai dali em estado de consolo, nada de mais aprazível do que ver um espaço desta categoria irrepreensivelmente mantido.


Como é que é possível resistir à magnificência e ousadia desta porta Arte Nova? Entretanto anoitece, viandante e companha descansam os pés e deitam contas à vida: já se cirandou à volta do Palácio de Justiça, percorreu Marolles, Saint-Gilles e Ixelles, quer-se voltar a Marolles, passear no Sablon e Mont des Arts, conhecer as novidades nos bairros Léopold e Europeu, aquela zona da cidade em convulsão com a expansão das instituições europeias. Decide-se que a manhã seguinte é um salto até à natureza. Afinal de contas, a Bruxelas mais desconhecida dos viandantes fugazes é a dos parques. Vamos visitá-los, no esplendor do Outono.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18306: Os nossos seres, saberes e lazeres (252): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (2) (Mário Beja Santos)

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