terça-feira, 14 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21169: 16 anos a blogar (14): Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Brunhoso - Horta de Lamas


1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", com data de 12 Julho de 2020:


VIAGEM


A música parece vir do Além. 
Seria esta música que eu gostaria de ouvir se estivesse vivo depois de morrer. 

Neste tempo de pandemia, entre confinado e desconfiado, é ela que me me leva a conviver, a recordar com saudade e melancolia, a comunidade das mulheres e dos homens que amei e já partiram. A música derrama-se com suavidade sobre o silêncio que me cerca e traz consigo um tempo que foi morrendo. Vem-me à memória uma caminhada que fiz há dias na aldeia

Passei pelo sítio dos Olmos, tão verdes , tão frondosos, morreram há muitos anos, agora há lá freixos e choupos, passei pelo largo da Lameira, cruzamento de caminhos e sigo em direcção a Lamas por um caminho sombreado de sobreiros, carrasqueiras e carvalheiras. Em Lamas avisto uma horta bem plantada e bem cuidada, como esta somente irei encontrar mais duas. As outras hortas estão cheias de fenanco, silvas e, arbustos, entre elas está a horta que foi duns avós, depois dos meus pais, onde cavei, lavrei, reguei, apanhei batatas, muitos vegetais, comi melões e nabos, ginjas, amoras de silva.
Toquei a burra , nas voltas da nora, ainda antes de ir à escola, por vezes parava já cansado de tantas voltas, a burra parava também, e de longe, na parte de baixo da horta, ouvia o meu avô chamar-me malvado, porque a água se acabava na "augueira".

A água das poças e charcos de Lamas e Vale-do-Meio que regava "por pé" cerca de trinta hortas destes dois sítios corre agora com abundância pelo caminho que de Vale-de-Meio desce para Lamas que encharca o caminho de Vale-do Meio e prossegue entre as hortas de Lamas. Aprendi a viver com tudo e a viver em todos os ambientes, gostaria de ter a experiência de vida de viver algum tempo no deserto mas o tempo de vida e as comodidades de 50 anos de cidade já me condicionam. Tornei-me um pequeno-burguês, com carro, com sofá, com horários, hábitos e outras comodidades. Sou um cidadão bem comportado, vigiado pelos meus iguais e outros, ainda antes do Covid 19.

Lameiro de Vale-de-Cabo

Os habitantes da aldeia agora reduzidos a um quinto de tempos passados, cultivam alguns quintais e pequenas hortas à volta do povo. Cultivar para vender deixou de ser rentável há muitos anos. Continuo, passo pelos lameiros (prados) de Vale-de Cabo, são dois, um deles era dos meus pais, é de sobrinhos meus, gostava de ir para lá com as vacas, tinha luz, visibilidade, avistava-se a aldeia, ficava no planalto, ao lado era o Urzal, com terras de cereal a perder de vista, com algumas vinhas na Tapada perto, dos meus tios, onde roubei algumas uvas. Já não há vinhas, nem searas douradas ao vento, no seu lugar alguns donos das terras plantaram oliveiras e amendoeiras.

 Sobreiros das Rodelas

Subo um pouco mais o planalto, chego às Rodelas e avisto a paisagem típica transmontana, para lá do Sabor, escondido no vale e algumas franjas de Castro Vicente, atrás do cabeço de Santo Cristo. O caminho entre as Rodelas e as Avessadas é frondoso, com sobreiros com muita rama, grandes e fortes, de ambos os lados. Sinto um grande prazer em caminhar à sombra destas árvores gigantes, que ganharam direito de cidadania , pela riqueza que têm dado à terra..Viro para casa por um caminho paralelo e em parte igual, com muitas terras de "adil" e bastante oliveiras também. Nas Avessadas havia algumas vinhas, entre elas a dos meus avós maternos, onde fui ainda à vindima, quando era garoto da escola. Só já resta uma vinha mais nova, cereais também não há, há oliveiras e amendoeiras, a cobrir parte da área Desço os Lameirôes, volto aos Olmos e entro na aldeia com a igreja à vista, a grande casa, a Casa de Deus, agora mais deserta, como as casas e os terrenos e eu que gostos de cânticos, sem saber cantar, recordo o canto compassado, arrastado por vozes pesadas, gastas, graves, dos homens grandes (mais velhos) da aldeia, num latim antigo, em tempo de Quaresma, fechados na Igreja, perto do portão grande. por onde saiam as procissões. ainda saem. Há muitos anos que não se ouve esse cântico, os que o cantavam já morreram todos, com as suas mortes a terra foi definhando e morrendo, para mim essa música parecia vir do Além.

Texto, fotos e legendas: © Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20988: 16 anos a blogar (13): Excursão à revolta do 25 de Abril: cosmopolita e elitista, em Lisboa; de oficiais e cavalheiros, no Porto; e a do dia 26, em Bissau, ou a pressa do MFA em se libertar da Guiné - Parte II (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

17 comentários:

Anónimo disse...

Caro Francisco, há o velho ditado que diz, que gostos não se discutem e eu concordo, mas, no meu modo de ver as coisas, quando gostamos temos não só o direito mas também o dever de dizer que gostamos. Por isso eu te digo que gostei muito deste teu poste.

Recebe um ABRAÇO.

António Eduardo Ferreira

JB disse...

“Se estivesse vivo depois de morrer”.......gostaria de voltar a ler os teus textos.

Um abraço amigo do J.Belo

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Regionalismos", vocábulos próprios de Trás-os-Montes, que o "citadino" nunca ouviu falar, e que enriquecem a nossa belíssima língua portuguesa... "Adil", pro exemplo...

adil | s. m.

a·dil
nome masculino
[Portugal: Trás-os-Montes] Terra de pousio; alqueive.

Plural: adis.

"adil", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/adil [consultado em 14-07-2020].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Fenanço" é outra palavra, que nenm sequer encontro do Dicionário Priberam da Lingua Portuguesa que tem 133 mil entradas... Nem no Grande Dicionário Houaiss, brasileiro... Nem no Ciberdúvidas...

"Fenanço" deve vir de "feno", palha, erva seca, raquítica, rasteira, que cresce também nas paredes...

Escreve o nosso Baptista que, apesar de mais século de "desterro" citadino, nºao renega as suas rpfofundas raízes telúricas:

(...) "Wm Lamas avisto uma horta bem plantada e bem cuidada, como esta somente irei encontrar mais duas. As outras hortas estão cheias de fenanco, silvas e, arbustos" (...)

Que bom, Francisco, poder ainda ler prosa desta...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tens razão para isso, tens, apanhado por esta pandemia, meio confinado, meio desconfi(n)ado... Não podemos baixar a guarda... Nas pandemias (como na Espanhola ou Pneumónica, de 1918/19, há sempre duas ou até três vagas...).

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Admiro esse saber, que vem da infância, não dos livros, o de poder nomear as espécies da fauna e da flora,os bichos e as árvores, saber distinguir os olmos,os sobreiros, as carrasqueiras, as carvalheiras, as oliveiras, as amendoeiras, etc.

São experiências da tua infãncia que nos emocionam e deliciam, como "tocar a burra nas voltas da nora"... Quem sabe o que isso é ? Ou "ouvir o meu avô chamar-me malvado, porque a água se acabava na a 'augueira' " (...). Ou "regar por pé"...

Alguns deste léxico castiço do Norte também o vou apanhando, do linguajar dos vizinhos da nossa Quinta de Candoz ou dos mais velhos da família... Aqui cultivava-se sobretudo o milho, ainda quando comecei a cá vir, em 1973... E o vinha nas bordaduras... Agora até temos culturas "exóticas", por estas bandas, como os quivis, os mirtílos, os maracujás...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Esse "canto compassado, arrastado por vozes pesadas, gastas, graves, dos homens grandes (mais velhos) da aldeia, num latim antigo, em tempo de Quaresma, fechados na Igreja, perto do portão grande. por onde saiam as procissões" (...) só podia ser o "canto-chão"... Certo ?

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Aliás, "cantochão", uma palavra só...

cantochão | s. m.


can·to·chão
(canto + chão)
nome masculino
[Música] Canto litúrgico tradicional da Igreja católica, sem grandes variações. = CANTO GREGORIANO


"canto-chão", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/canto-ch%C3%A3o [consultado em 14-07-2020].

Tabanca Grande Luís Graça disse...

augueiro | s. m.

au·guei·ro |güei|
(auga, alteração de água + -eiro)
nome masculino
[Popular] Vala por onde corre a água de rega. = AGUEIRO


"augueiro", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/augueiro [consultado em 14-07-2020].

Camplodesousa disse...

Muitos parabéns Francisco pelo Amor, pelo respeito e pela saudade que continuas a ter da terra que te viu nascer ! Infelizmente há muito pouca gente com esses sentimentos.


Anónimo disse...

Como sempre gosto do que escreves sobre o teu mundo rural, mundo esse que está em vias de extinção.

AB

JPicado

Manuel Resende disse...

Amigo Francisco Baptista, escreves muito bem e continua. Gosto muito de ler os teus textos. Amigo lá para o dia 19 falamos. Grande abraço e não te esqueças que também és Magnífico.

Manuel Carvalho disse...

Conheci o Francisco há poucos anos quando ele entrou para o nosso Blogue no entanto há cerca de 50 anos que vou para uma aldeia ao lado da dele porque a minha mulher é de lá, aliás um dos seus avós era da terra da minha sogra.Era muito interessante há uns anos assistir aquelas conversas longas á lareira daquelas pessoas mais velhas.Uma coisa curiosa a minha mulher por aqui muito raramente usa termos de lá a falar no entanto quando iniciava-mos a viagem e ás vezes logo ao meter as coisas ao carro ela começava a usar termos de lá.Muitas vezes comentamos isto e curiosamente era só na ida, na vinda não.A propósito destas cantilenas da quaresma tenho ideia disto ficava um grupo dentro da igreja e outro saia e dava a volta á igreja entretanto a porta era fechada e havia ali uns canticos dum lado e do outro até que a porta se abria e entrava tudo,nesta fase a miudagem achava piada e havia risota e julgo que o meu irmão ainda levou umas chapadas em casa ele e mais alguns.Um dia ainda vou cantar isto com o Francisco, mas não vai ser fácil porque ele diz que não sabe cantar nem fazer discursos.
Um abraço

Manuel Carvalho

Tabanca Grande Luís Graça disse...

FRancisco, e eu ainda nao li o teu livro, em "papel"!... Diz-me onde ou como posso comprá-lo. UM alfabravo. Luís

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Muitos portugueses da nossa geração, a da "malta da guerra colonial" (labéu que nos colocaram na testa, mas historicamente não o podemos recusar...), viraram costas à terra que os viu nascer: depois das matas e bolanhas da Guné, das florestas do Norte de Angola ou das chanas do Leste, ou do planalto dos macondes, em Moçambique, "viraram costas" à sua aldeia ou vilória...
Ou à sua ilha (Madeira, Açores, Cabo Verde...). O mesmo aconteceu com os nossos camaradas guineenses... que foram para Bissau.

Zé Manel Cancela disse...

Mais uma vez,parabens Baptista por esta linda
visita a Brunhoso....Pela maneira que descreves
a tua terra,parece que fui contigo...

Um grande abraço,e até um dia destes....

Anónimo disse...


Muito obrigado a todos:
- Ao António Eduardo Ferreira, um camarada amigo, sincero, franco.
- Ao José Belo que me emocionou , com um jogo de palavras em que ele é mestre
- Ao Luís Graça que escarabulhou bem o texto para ficar mais compreensível. Ao falar da minha aldeia, vêem-me à memória termos e palavras antigas que traduzem melhor as vivências desse tempo e desse lugar. Lembro-me mais deles nessas ocasiões ou quando falo com os meus irmãos ou com outros conterrâneos. Tu que além de sociólogo também estudaste etnografia, antropologia e outras disciplinas , saberás o que os lavradores diziam, ainda há quem o diga: a terra está com sessão, é natural que saibas, tu sabes muita coisa. Eu sobre o assunto tenho um saber empírico, se tu souberes mais , explica à tua maneira.
O canto dos homens, fechados na igreja, também tenho pensado que seria o cantochão.
O meu livro é edição de autor, por favor manda-me a tua morada que eu envio-to. É oferecido, seria ridículo cobrar-te dinheiro quando tu também trabalhaste para ele. Ao Calos Vinhal já o ofereci ao Cherno Baldé também pela amizade que tem para com todos nós, sendo guineense e oferecerei igualmente ao José Belo e ao José Câmara , que estão na diáspora, se me mandarem as moradas.
- Ao Campelo de Sousa pela simpatia e pela lembrança.
- Ao meu capitão Jorge Picado. na Guiné nunca o chegou a ser, já somente o conheci cá mas sempre lhe dei esse posto e outros postos superiores.
- Manuel Resende, és um bom amigo, quando tudo estiver mais calmo hei-de ir almoçar contigo e com todos os Magníficos
- Zé Manuel Cancela, tu estás sempre presente. És um bom camarada.
- Manuel Carvalho, em Brunhoso só havia um grupo de cantores que ficavam fechados dentro da igreja, se em Soutelo saía outro para a rua, a tradição era outra. Tu sabes que mesmo em terras pegadas muitas vezes havia diferenças nos costumes e tradições. Não penses mais, nessa proposta louca de irmos os dois fazer esse cântico na igreja, pois com a nossa barulheira desafinada, os santos desceriam dos altares, armados com velas, castiçais e vasos das flores, para nos expulsar.
Francisco Baptista