1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Janeiro de 2020:
Queridos amigos,
Alfredo Loureiro da Fonseca era tudo menos um arrivista, conhecia a poda, fez frequentes estadias na Guiné. Desde que me embrenhei na leitura dos artigos sobre a Guiné nos primeiros anos da vida do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (já cheguei a 1915) ganhei convicção de que são documentos obrigatórios para qualquer investigador. O entusiasmo dos autores é genuíno, não há para ali patranhas, ajustes de contas, prosápia de quem chegou, deu uma vista de olhos e agora fala de alto. O que Loureiro da Fonseca diz, em meados de 1905, é tremendo: andava-se a fingir que se intimavam populações revoltadas, gastavam-se rios de dinheiro para nada; na Guiné, com fronteiras definidas em 1886, apenas se exercia soberania efetiva em metade da colónia, sabe Deus com que organização administrativa; o comércio estava nas mãos dos estrangeiros e não havia uma política de incentivo para os pequenos proprietários.
Tem que se juntar esta peça ao vastíssimo puzzle que se inicia no século XIX com a abolição da escravatura, com as compras de territórios a régulos, até chegar à desafetação da Guiné de Cabo Verde; temos, felizmente, bastante documentação dos primeiros governadores, deplorando o abandono que lhes dá o Governo Central, sempre elogiando as possibilidades de desenvolvimento económico que a Guiné oferece. Mensagens que caiam em saco roto. Como terá caído em saco roto o diagnóstico feito por Alfredo Loureiro da Fonseca em plena Sociedade de Geografia de Lisboa, estávamos em 1905.
Um abraço do
Mário
Um olhar sobre a Guiné, estávamos em 1905
Mário Beja Santos
Alfredo Loureiro da Fonseca, Oficial da Fazenda da Armada Real, teve várias passagens pela Guiné. No Boletim da Sociedade de Geografia, com data de 1905, este sócio ordinário da Sociedade faz uma comunicação com a data de 5 de junho, reproduzida no Boletim. Vamos reproduzir alguns parágrafos que nos parecem eloquentes, não esquecer que o seu autor tem experiência da colónia:
“Pode afoitamente dizer-se que apenas exercemos soberania efectiva em cerca de metade da Guiné, achando-se ainda por completo insubmissas algumas das mais ricas regiões da Província, tais como o Oio, Bassarel, Costa de Baixo, Bijagós e Balantas.
Quase todos estes povos têm sido por vezes batidos pelas nossas forças, mas como às vitórias obtidas nunca se seguiu uma ocupação efectiva, o estado de rebeldia continua sempre a manter-se, sucedendo por vezes o mesmo, como ultimamente no Oio, que a guerra não serve senão para agravar o mal que já existia. Esta ocupação efectiva será, porém, sempre impossível enquanto a Guiné só dispensar de um soldado em média por cerca de duzentos quilómetros quadrados de superfície.
O gentio está longe de ignorar esta nossa miséria e compreende bem a impossibilidade em que o governo da Província se encontra de tirar o mais insignificante proveito de qualquer vitória; foi assim que as operações de Bissau em 1873-1894, as de Canhambaque, Jufunco e Oio, em 1901-1902 e a do Churo em 1903, apesar de largamente dispendiosas, foram em absoluto improdutivas.
Em 1903, o comércio estrangeiro representava acima de 83%. A Guiné é portanto mais uma colónia estrangeira que portuguesa, e isso é a triste consequência do retraimento habitual dos nossos capitais para tudo quanto se assemelhe a empresas no Ultramar, ao passo que os franceses e alemães não hesitam em arriscar algumas centenas de mil francos em operações de comércio sempre que nelas vêem uma possibilidade de lucro, é sabida a possibilidade de entre nós se encontrar uma meia dúzia de contos, quando desde o primeiro ano de uma operação se não possa logo garantir um juro remunerador”.
Mais adiante, provando que é profundo conhecedor das realidades económicas, dá-nos um quadro sobre o estado de desenvolvimento das suas riquezas, recorde-se que ele um pouco atrás já falou no poderio do comércio estrangeiro na Guiné:
“Concorre bastante para a desnacionalização do comércio da Guiné o mau serviço da ‘Empresa Nacional’ que só de quarenta em quarenta dias ali faz tocar os seus paquetes e, mesmo assim, nem sempre com regularidade, tendo já sucedido por mais de uma vez, nos dois últimos anos, passarem-se mais de dois meses sem comunicações com a metrópole.
Exceptuando as casas das firmas Silva Gouveia, Monteiro de Macedo e Cabral Avelino, os outros negociantes portugueses ocupam-se quase exclusivamente do pequeno comércio de mercearia e não praticam a permuta de produções indígenas, podendo-se dizer que todo o comércio do interior se acha nas mãos das casas Rudolf Titzek & C.ta, Bernardo Soller, sucessores, Louis Rolff & C.ª, Otto Shachtt, Fleckenstein & Moulin, alemãs; Compagnie Française de l’Afrique Ocidentale, Compagnie Coloniale d’Exportation, Compagnie Française du Commerce Africain, francesas; e de numerosos pequenos comerciantes italianos. As duas empresas belgas que depois de 1889 se propuseram iniciar explorações agrícolas e comerciais na Guiné, não viram os seus esforços coroados de êxito, tendo uma delas, a Société Générale d’Échanges, liquidado ultimamente, e achando-se a Compagnie de la Guinée Portugaise talvez em vésperas de liquidação, apesar de ter sido, de todas as empresas comerciais que têm tido por objecto a Guiné, aquela que dispunha de melhores elementos materiais e de um capital mais do que suficiente. Sucessivos erros de administração a levaram em poucos anos ao estado em que actualmente se encontra, sem outro resultado senão o de vir lançar mais uma injustiça desconfiança sobre o emprego de capitais na Guiné.
Diz-se que um sindicato inglês está em ajustes com a Compagnie de la Guinée Portugaise, para adquirir os terrenos que esta ainda possui, destinando-os à cultura regular do algodão em larga escala; pena é que sejam ainda capitais estrangeiros os que compreendem o proveito que há a tirar dos recursos de uma colónia que é nossa.
É triste que assim seja, principalmente quando há quem, sendo português, conseguiu, em pouco mais de vinte anos, conquistar na Guiné a opulência.
Ninguém ignora o malogro de todas as tentativas feitas até hoje, no país, para se conseguir a organização de qualquer grande companhia para a exploração da Guiné e disso é ainda exemplo frisante a última grande concessão de terrenos feitas em 1903 nas ilhas Bijagós e que, até à data, ainda não começou sequer a ser aproveitada.
Só a quase absoluta ignorância que no país se professa pelo que diz respeito às colónias em geral pode talvez justificar, em parte, esse retraimento de capitais. Torna-se, portanto, indispensável uma propaganda activa e contínua que torne conhecidas as riquezas naturais do nosso Ultramar.
Na Guiné, é indispensável facilitar-se quanto possível a aquisição de terrenos quer para a exploração agrícola propriamente dita, quer para o estabelecimento de pequenas feitorias comerciais, vedetas da ocupação pacífica, que vão no interior da Província trocar os artigos da indústria europeia pelos produtos indígenas. É, principalmente, para as pequenas concessões que deve, em especial, voltar-se a atenção do legislador, porque essas não exigem grandes capitais de exploração e portanto mais facilmente encontrarão quem as aproveite. São os pequenos agricultores que mais merecem a protecção do Estado e, até hoje, os únicos que na Guiné têm feito alguma coisa em favor do desenvolvimento agrícola da Província. É obra patriótica ajudá-los a vencerem as múltiplas dificuldades com que lutam; e a completa falta de incentivos oficiais sugeriu-me a ideia de os reunir, fazendo-os constituir o primeiro sindicato agrícola das colónias. Lancei os lineamentos gerais desse projecto e a minha ideia foi na generalidade bem aceite por todos aqueles a que me dirigi. No meu próximo regresso à Guiné, tenciono prosseguir no meu intento, e se nada conseguir, o que não espero, terei ao menos a consolação de alguma coisa de útil ter tentado em favor do progresso da Província”.
Edifício das Finanças em construção, década de 1930, Bissau, Avenida da República
A Bolama da era colonial, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
O que resta do cinema de Bolama, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra Bijagós, Património Arquitetónico, Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor
Último poste da série de 25 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21580: Historiografia da presença portuguesa em África (240): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)
2 comentários:
Na Guiné eram os estrangeiros a estabelecerem-se e os portugueses a retrairem-se.
Cá hoje continua na mesma como na Guiné daquele tempo, tirando os "merceeiros", o que é bom está já nas mãos de estrangeiros.
Até os terrenos regadios do Alqueva estão grandemente a ser adquiridos para olivais e outra, principalmente por nuestros hermanos.
Mas escândalo maior é as barragens para a electricidade serem exploradas pelos chineses.
Não temos mais nenhuma empreiteira grande que não esteja dominada por espanhois, italianos,brasileiros etc.
Até recentemente quando anunciado que se ia ampliar o Metropolitano em Lisboa, imediatamente nas vésperas a Mota-Engil foi uma percentagem grande adquirida por chineses, e ficaram em primeiro no concurso provisório para essa obra.
Isto pouco tem a ver com a Guiné e a nossa guerra.
Como ainda andei em obras públicas nos últimos anos cá na "metrópole" é que falo de empreiteiros.
Mas também fiquei com a ideia, que entre este olhar que Beja Santos nos traz sobre o aproveitamento estrangeiro nas riquesas da Guiné antiga, que seria mal crónico em todas as colónias, e o aproveitamento que vemos hoje, das riquesas da "metrópole" moderna, terá havido um pequeno parêntesis, de 40 aninhos, em que embora parados algures no tempo, havia no entanto um pouco mais de moral e vergonha na cara.
Por cá, nos 40 aninhos, os grandes capitalistas só se aventuravam no "favas contadas", e mesmo assim com a garantia de não poder haver concorrência.
Excetuando o caso do Hotel Ritz, os capitalistas portugueses nunca se atiravam para grandes despesas de capitais próprios, ou dos seus bancos, e mesmo no caso do Hotel teve de haver uma ajuda do estado, como que 'quem quer ter luxos paga-os'.
E tem sido sempre a mesma coisa.
Como curiosidade, com conhecimento de causa, os nossos empresários de comes e bebes, ainda há bem pouco tempo, faziam as contas na toalha de papel que estava na mesa do cliente.
Talvez por causa do D. João V ter esturrado tanta massa, o poupadinho parece que entrou no nosso ADN.
Valdemar Queiroz
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