Queridos amigos,
Penso que o essencial desta viagem aproveitei cabalmente os apontamentos do meu bloco de notas. Nunca procurei desvendar a razão de fundo do honroso convite feito pelo Embaixador da RDA. Registou o que eu gostaria de ver e fiquei feliz pelas visitas culturais que fiz. Impressionou-me a reconstrução de Berlim e de Dresden, comparando a RDA com o que já vira na República Checa e na Bulgária, o nível de vida era muito superior, poder-se-ia dizer que havia um gosto duvidoso na habitação mas não havia nada relacionado com bairros de lata, passeando pelos mercados era enorme a variedade de frutas e legumes, e do que comi tudo tinha gosto.
Sei que o anfitrião pretendeu que eu trouxesse uma mensagem positiva sobre as preocupações com a paz mundial e que pudesse dizer que a Alemanha de Leste era um estandarte de cultura. Agora que este meu bloco de notas vai para a reciclagem e que recordo aspetos completamente esquecidos da viagem de fevereiro de 1987, o que mais me impressiona é como em pouco mais de dois anos tudo se alterou no discurso e as expetativas dos alemães da RDA deram sinais bem distintos daqueles que o discurso oficial apregoava.
Um abraço do
Mário
Na RDA, em fevereiro de 1987 (6)
Mário Beja Santos
É o meu último dia útil em Berlim, amanhã, pela alvorada, serei recambiado para Lisboa, dou voltas à cabeça em que aeroporto fiz transbordo.
Um abraço do
Mário
Na RDA, em fevereiro de 1987 (6)
Mário Beja Santos
É o meu último dia útil em Berlim, amanhã, pela alvorada, serei recambiado para Lisboa, dou voltas à cabeça em que aeroporto fiz transbordo.
Tudo vai começar, como habitualmente, ao romper da alva, recebi indicações de que entraremos no Ministério dos Negócios Estrangeiros pelas oito da manhã, vou receber os derradeiros ensinamentos sobre a RDA da paz e da cooperação, não me passa pela mente de que andará tudo à volta do papel dos Sociais-Democratas e da Acta Final de Helsínquia.
Voltamos a uma década atrás, os meus oficiantes, são três, de fato assertoado, de gravatas de tons murchos, recebem-me numa sala bem iluminada, e o pontapé de saída passa pelas relações entre o Partido Socialista Unificado da Alemanha [PSUA] e o Partido Social-Democrata Alemão, da RFA. Fico a saber que o dito PSUA tinha, no início da década de 1970, boas relações com os finlandeses e os belgas.
Cala-se um dos oficiantes e outro, com cara de muito poucos amigos, fala-me na decisão da NATO, muitos anos depois da Acta Final de Helsínquia (1975) de instalar mísseis Pershing II a pedido do Governo alemão, social-democrata e liberal. Os protestos foram muitos e diversificados, os movimentos pela paz estiveram muito ativos. Nenhum dos meus oficiantes irá ter o desplante de explicar que toda esta embrulhada começou com a decisão soviética de instalar mísseis intercontinentais balísticos SS-20 sem dar cavaco a ninguém, estava-se mesmo a ver a escalada de tensão que iriam provocar. Na continuação do discurso, o orador considerou que os Sociais-Democratas da RFA davam uma no cravo e outra na ferradura.
O primeiro oficiante retoma a palavra, desta feita a melhoria de relações entre o PSUA e o SPD da RFA. Tudo terá começado no seminário internacional sobre Karl Marx, participaram dezoito partidos sociais-democratas, nenhum dos intervenientes pôs em causa a paz, houve aproximação de posições entre o Centro-Esquerda e a Esquerda. Em 1984, o nosso líder e o líder social-democrata Willy Brandt estiveram reunidos vários dias e assinaram um comunicado sobre a paz dizendo que nunca mais de terra alemã deveria partir qualquer guerra, tudo se devia fazer a favor da paz apesar das diferentes conceções do mundo.
As delegações dos dois partidos têm-se reunido amiudadas vezes, debatem as discrepâncias ideológicas, as leis do desenvolvimento social, uns e outros mantêm posições firmes, nós somos a favor do Socialismo avançado, os Sociais-Democratas preconizam uma sociedade de bem-estar. Têm assinado declarações conjuntas sobre armas químicas e nucleares. Procuramos sensibilizar os Sociais-Democratas para a política de paz dos países socialistas, explicamos de quem parte a guerra, procuramos cativar as forças indecisas.
É nesse momento que o terceiro oficiante sai do seu mutismo e me dá a saber, a mim, pobre mortal, que contam com a minha mensagem dada a importância de que gozo na opinião pública portuguesa, olho o dito senhor com a maior das estupefações, sim, o senhor tem acesso à rádio e televisão, é escritor e publicista, é uma personalidade pública, é a pessoa ideal para contar o que viu, o nosso desenvolvimento pacífico e desmonte as mentiras de que temos uma das mais tenebrosas polícias políticas do mundo, de que somos subservientes de Moscovo, atoardas miseráveis. Nós distinguimo-nos por nos preocuparmos com o objetivo final de um socialismo de justiça e equidade, estamos na dianteira a procurar resolver as questões do desarmamento, queremos postos de trabalho para todos, queremos manter as melhores relações com todos os partidos Sociais-Democratas, temos infelizmente grandes diferendos com os gregos, italianos, franceses e portugueses. Mas somos realistas, sem os Sociais-Democratas não haverá paz na Europa. Pode transmitir isso a quem de direito: temos de encontrar um entendimento muito grande, não podemos ignorar os vinte milhões de militantes de Sociais-Democratas em todo o mundo.
E depois remeteu-se ao silêncio. Quando eu já fechava o meu bloco de notas, o primeiro oficiante retomou a palavra, ia expressar o seu ponto de vista sobre a Internacional Socialista face à Guerra das Estrelas, os Sociais-Democratas não defendem este tenebroso projeto de Reagan, no Congresso de Albufeira condenaram os projetos da Guerra das Estrelas, mas aquelas decisões não são vinculativas. Bom seria que os Sociais-Democratas continuassem a manifestar o seu repúdio.
Caminha para o meio-dia, Petra Petersen olha para o relógio, terá sido o suficiente para que os três oficiantes entendessem que chegara o fim da missa.
Gerald já está ao volante, iremos almoçar a Potsdam, no regresso terei a liberdade de ter umas horas para comprar recordações e fico feliz quando Petra me informa de que esta noite vou a um concerto no Schauspielhaus, a sala de música mais requintada da Berlim Oriental, à cautela, antes de partirmos para Potsdam, vamos passar pela praça e ver as suas proporções harmónicas e dar uma vista de olhos à Igreja dos Huguenotes e à Igreja Francesa.
Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA, felizmente já demolido
Escadaria do Palácio de Sanssouci, Potsdam
Terei a felicidade de voltar mais duas vezes a este esplendor barroco, aqui Frederico II da Prússia, o Rei Soldado, que dizia que o alemão era a língua dos cavalos, palestrou com Voltaire, os cuidados com este monumento são inexcedíveis, a folha de ouro faisca por todos os lados, já vi muita escadaria graciosa, mas atenda-se ao lance desta, a sua perfeita integração num espaço cénico sem igual.
Verei belezas aparentadas em palácios dos czares, esta tentativa de associação entre o passeio com sombra refrescante e fontes consoladoras em dias de canícula. Por aqui passeei muito contente e depois partimos para Cecilienhof, a residência em que os três vencedores da II Guerra Mundial decidiram a partilha da Alemanha, quando já estava aberta a janela para a tormenta da Guerra Fria.
O interior guarda todas as memórias desse encontro e das decisões tomadas. Um daqueles dias em Berlim, em plena Alexanderplatz, vi chegar um contingente do Exército norte-americano e outro inglês, fiquei a saber que faz parte do protocolo de Potsdam haver visitas de contingentes soviéticos na Berlim Ocidental e de norte-americanos e ingleses na Berlim Oriental, não passava de uma ritualidade a que ninguém dava importância.
Cecilienhof, Potsdam
Os protagonistas da Conferência da Sanssouci: Churchill, Truman e Stalin
Schauspielhaus, Berlim
Voltamos a Berlim, está decidido que compras só no aeroporto, vou passarinhar pela cidade, ao meu ritmo, entrarei na Galeria Nacional, depois na Catedral de Santa Edwiges, tem um grupo coral de fama mundial, Herbert von Karajan gravou uma interpretação da 9.ª Sinfonia de Beethoven com este portentoso conjunto, vou cirandar pelas ruas laterais, o frio ainda aperta, em determinada altura avisto guardas numa baiuca, estamos perto do muro, e sigo para uma terra de ninguém,
Potsdamer Platz, quem te viu e quem te vê, neste exato momento não passas de um terreno espetral, tudo se alterará radicalmente com a Berlim capital da Alemanha reunificada, aqui se espalharão edifícios arrojados, o laboratório arquitetónico mais experimental de toda a Europa passará por aqui.
Regresso ao hotel, é hora da janta, imagine-se volto a comer aquela bela sopa russa que me alimentou em Königstein, devoro aquele pão preto fresco e apetitoso, com uma ligeira camada de manteiga, nada de trutas ou qualquer peixe insípido, toca de manducar um pedaço de joelho de porco, saborosíssimo, com batata cozida e couves, nada mais.
Faço os últimos arranjos, sigo para o concerto, se a memória não me atraiçoa tudo começou com o poema do Êxtase, de Scriabin, seguiu-se o duplo Concerto para Violino e Violoncelo de Brahms, e aqui vem uma branca para a segunda parte, era uma daquelas sinfonias majestosas e líquidas, a execução foi fulgurante mas não retive lembrança, o que significa que não me tocou.
Passeio à volta da praça, que grande beleza, vou despedir-me da Porta de Brandeburgo, é aquela sensação de atmosfera de mundo fendido, vejo ao fundo, no extenso Tiergarten, a Coluna da Vitória, esta fronteira é uma aberração, sempre se circulou por aqui em todas as direções. Encolho os ombros, só posso deplorar a situação. Ligo o televisor no quarto, Peter O’Toole discute com Richard Burton em alemão no filme Beckett, baseado na peça de Jean Anouilh e dirigido por Peter Glenville, filme de 1964, que monstruosidade, massacrar uma obra modificando-lhe a língua, e por isso fico contente que esta tropelia não aconteça em Portugal.
Para não variar, é manhã cedo e sou levado ao aeroporto pela guia e o fiel condutor. Agradeço-lhes todas as gentilezas de que fui alvo, ainda me passou pela cabeça entregar discretamente uns dólares a cada um, seria uma indignidade. E caminho para o retorno.
Resta comentar a última fotografia, é mistério que vou levar para a tumba, quando regressei ontem à noite do concerto tinha esta fotografia encostada à porta do quarto, ainda pensei em ir à receção, não sei se se tratava de uma mensagem ou de uma brincadeira. Veio comigo e aqui está o último mistério da minha viagem, não sei quem são estes militares e com toda a franqueza não sei o que hei-de fazer da fotografia. O mais importante é que eu estou pronto a refazer todo este passeio, a Alemanha para mim é um fascínio.
Gendarmenmarkt, onde a Igreja dos Huguenotes e a Igreja Francesa ombreiam o Schauspielhaus
Catedral de Santa Edwiges, Berlim
Uma das fotografias mais insólitas da minha vida
____________Notas do editor:
Poste anterior de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 3 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)
6 comentários:
A RDA, Alemanha comunista, com Mário Beja Santos, convidado a visitá-la, com tudo pago e mordomias permanentes durante a sua "cultural" estadia. A RDA, em 1987,uma ditadura feroz, com a STASSI, a polícia política, ao lado dos quais os nossos execráveis PIDES eram uns aprendizes, meninos de coro. A Stassi,os Honnecker esmagando todos os dias a dignidade do ser humano e os direitos humanos, que Mário Beja Santos considera, hoje, mas suas esclarecedoras memórias: "um país tão pacífico, tão cooperante, tão amigo da paz". Eu não consigo ser sabujo, nem lambe-botas, nem de vergar a cerviz diante de qualquer ex-República Democrática Alemã ou República Popular da China. Temos a nossa dignidade, o respeito por valores fundamentais, seres humanos, honestos, determinados e livres.
Faz-me espécie, neste blogue, ler comentários do Luís Graça, comentários inteligentes e certeiros, sobre o conteúdo da prosa do Mário Beja Santos, deste teor, no comentário ao post do MBS 21 499, a 31 de Outubro : "E do outro lado, do lado do PAIGC, que nos matava, havia a RDA, a República Democrática Alemão, que era, para mim, uma recauchutagem da Alemanha Nazi...
Por isso, quando falas no "Museu de Higiene" e na "Promoção da Saúde", à moda da RDA, eu sinto um calafrio pela espinha acima..."
"Calafrios pela espinha acima", e o Mário Beja Santos, há muitos anos, a tomar conta da inteligência deste blogue.
Abraço,
António Graça de Abreu
António Graça de Abreu
Uf! que medo.
Ainda bem que já fui vacinado contra a gripe, e quanto à vacina contra a tal que dizem veio da China espero aparece o mais rápido possível, não vá eu ficar apanhado da moleirinha por causa de ler estes postes do MBS sobre a ex-RDA comunista. E até parece que sou bruxo, o meu fornecedor de electricidade não é a tal dos acionistas comunistas chineses, pelo menos se um dia sem querer levar um choque não sou prejudicado no meu grau de inteligência.
E caríssimos bloguistas da Tabanca Grande cuidem-se e nada de compras nos chineses, ainda se apanha uma comunistite aguda e ficamos apalermados, nem a idade, experiência e lucidez nos safam.
Karamba!
Abracelos
Valdemar Queiroz
POR FAVOR....
M.B.Santos, que considero culto e inteligente, apesar de não o que conhecer pessoalmente, com estes textos francamente não sei o que pretende.. será que quer fazer de todos nós tontos ou atrasados mentais !!!!.
A antiga "RDA" não serve de exemplo para nada.
Quem hoje visite essa região da Alemanha ainda se vê a diferença abissal com a região ocidental, apesar dos esforços feitos pelo governo alemão para tentar iguala-las tanto social como patrimonialmente. É verdade que muita coisa foi reconstruída, como por exemplo a baixa de Dresden que é lindíssima mas o "selo soviético" continua lá ..
"Não abbbia nexxxeeessiiidaaaade" hhuuuummmm...
AB
C.Martins
No seu desempenho de activo mental do nosso blogue, o Mário é susceptível de crítica - um direito comum de cidadania, um defeito pessoal, quando exorbitante.
Mário: Meia dúzia de anos depois da vilegiatura que cronicaste, coube-me contratar em Berlim leste a jovem senhora Petra Peterson, casada com um engenheiro civil, como intérprete e para retroverter a papelada da nossa relação com as repartições estatais alemãs. Um dia, ela satisfez a minha curiosidade comparativa, entre RDA e RFA. "Na RDA fui feliz, na RFA encontrei um sistema político e um estilo de vida na RFA muito superiores...".
Seria a mesma?
Nunca encontrei mato e silvas na Alemanha, mas no palácio de Sanssouci encontrei sebes feitas com as "nossas" videiras americanas e com figueiras!
A reconstrução a sério de Berlim leste, Chemnitz, Dresden, nomeadamente da sua célebre catedral, etc. (andamos a reconstruir viadutos e pontes da auto-estrada para a Polónia, arruinados pelos bombardeamentos dos Aliados), só aconteceu com a reunificação, financiada com o imposto complementar de 7%, a que os alemães ocidentais correspondiam com a lamentação: "O muro era fraco; caiu muito rápido!"
Salvo erro ou melhor opinião, o nível de vida da RDA antes da Reunificação era inferior ao de Portugal, no entanto superior na Educação e na Saúde.
Quanto aos seus "esforços" pela Paz, o Mário disse muito e eu confirmo: as caves de todos os prédios em construção na RFA incluíam tinham caves-bunkers, calculadas para resistir a bombardeamentos vindos da...RDA e as suas pontes e viadutos tinham sinais de trânsito para os tanques!
Abr.
Manuel Luís Lomba
Digeri muito bem esta crónica sobre Berlim Oriental, na RDA de 1987, assim como as anteriores, de Mário Beja Santos, a quem louvo e agradeço por tantas e tão ricas partilhas. Nestas, dá-nos uma visão, a oficial, do lado de lá do muro, que 2 anos depois se desmoronou.
Só não compreendo a razão do azedume e da crítica mordaz do António Graça Abreu. Porquê?
Quem tiver telhas de vidro não deve atirar pedras ao ar. E recordo os movimentos Maoistas do pós 25 de Abril de 74 e a grande e "democrática" China, sempre presente, de então aos nossos dias.
E mais não digo.
Votos de Paz e boa saúde para todos, para vivermos o Natal com alegria.
Abraços.
Joaquim Luís Fernandes
A Editora Guerra e Paz editou, em 2013 e 2014, os dois volumes do meus "Toda a China". São no total 643 páginas de textos alinhados ao longo de 37 anos de viagens e contacto intenso com todo o território chinês e com o seu povo, e o seu regime político,desde 1977. Entrar por dentro de um país, de coração de ouro ou a sangrar, por todas as 23 províncias, cinco regiões autónomas, quatro municípios centrais, mais Macau, Hong Kong e Taiwan, a China, 9,6 milhões de quilómetros quadrados, todos visitados. E está lá tudo! Imaginem se eu começasse agora a publicá-lo neste blogue da Guiné. No que escrevo jamais sou lambe-botas, dobro a cerviz, sou sabujo, nenhum anti-comunismo primário, nem secundário. Trata-se de tentar entender os homens e o mundo.Com respeito pela dignidade humana, com respeito por nós próprios.
Há quem não entenda.
Abraço,
António Graça de Abreu
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