Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.
25 DE ABRIL, O GRANDE VENCEDOR
ADÃO CRUZ
O 25 de Abril foi o mais importante fenómeno político-social da nossa história moderna. O mais fascinante fenómeno político-social da vida de todos aqueles que tinham dentro de si a terra preparada para nascerem cravos.
Foi uma rajada de vento estilhaçando as janelas do tempo e deixando entrar o futuro e os sonhos pela mão dos pequenos gestos de cada um de nós. Uma generosa pincelada de cor e de vida nas paredes gastas da existência, nas palavras desencantadas e nos rostos mortos da esperança. O abrir da madrugada que há tanto tempo se recusava a ser dia.
Sensação única e irrepetível. A praça do entusiasmo era demasiado grande e a alegria brotava em cada esquina, entoando canções que ardiam no ventre da arte e da poesia. Eram muitas as certezas, ainda mais as incertezas e uma cândida ingenuidade brilhava em todos os olhos. Acreditava-se que neste pérfido mundo ainda havia almas grandes, as únicas capazes de ultrapassar a fronteira para além da qual o homem adquire a dimensão da cidadania, da honra e da dignidade.
Ao calor do 25 de Abril se deve o germinar da revolucionária ideia de que é na relação com os outros que nós percebemos quem somos e que o sentido da nossa existência é o sentido da nossa coexistência. A maior conquista do 25 de Abril foi, de facto, o nascimento de uma necessidade crescente de sentir a beleza, o autêntico, a verdade, o gosto da vida para cada um e para todos, a solidariedade, a sede de saber e a consciência da soberania da liberdade e da justiça.
Comemoramos hoje os quarenta anos do nascimento de uma vida por que tanto lutámos. Mas é com tristeza que penduramos o cravo na lapela e uma lágrima nos olhos. Hoje já não sabemos se é dor ou alegria o que sonhamos quando abrimos ao sol as portas de Abril. Não sabemos se é dor, tristeza oualegria, aquilo que sentimos quando a revolução faz tantos anos de saudade e nostalgia.
O 25 de Abril sempre teve e tem alma de esquerda. Nunca poderia ser o gene da nova ditadura que aí está desde há muito, cada dia mais tecnologicamente evoluída e sofisticada. Não demorou muito depois de Abril a incubação do ovo da serpente. Como fazem os micróbios quando aprendem a utilizar o antibiótico como alimento, os saudosos do antigo regime apoderaram-se da palavra democracia, usando-a como rótulo do veneno que lentamente foram injectandonas consciências e nas inconsciências do nosso povo.
O seu caldo de cultura é não só o domínio da comunicação, onde ferreamente institucionalizou a desinformação e a mentira com máscaras de informação, mas também a eterna manutenção da ignorância, da estupidificação, da pobreza e do obscurantismo. Tudo em nome da competitividade e da convergência, da globalização, da modernidade, da religiosidade, da flexibilização, da privatização, palavras inquestionáveis das estratégias de dominação por parte daqueles que sabem quem tudo ganha à custa de quem tudo perde.
São estes responsáveis pelo abrir de portas e pelo estender de tapetes às chancelarias do crime que provocaram ou facilitaram esta barbárie dos tempos modernos, a corrupção, os roubos ao país, os cortes de salários e o esbulho das pensões, a degradação social, a fome ao lado da loucura do consumismo, o monetarismo e o ultraliberalismo cujo útero reside nos tecnocratas da rapina e na cabeça do patrão planetário que os condecora por cavarem cada vez mais fundo o fosso entre ricos e pobres.
De cravo ao peito ou sem ele, comemoram com toda a desfaçatez a honrosa revolução que sempre odiaram, numa tentativa de a desnaturar e de neutralizar o genuíno espírito de Abril. O que se passa na Assembleia da República é paradigmático. A hipocrisia é maior do que o monte de cravos ali aprisionados nesse dia. Dia que muitos suportarão com dificuldade, conhecidos que são osseus claros sinais de alergia.
Nos dias que correm, a luta tem de ser redobrada dentro de cada um de nós. Não é o grau de facilidade ou dificuldade ou a carga pragmática ou utópica que ditam o que deve ser feito ou obstam àquilo que deve ser feito, mas é, sobretudo, a resistência e a força da verdade da nossa consciência perante a submissão.
A identificação com os autênticos valores de liberdade em todo um processo de valorização pessoal e colectiva, exprime uma inquestionável adesão ao Bem e à Justiça, uma interioridade e uma nobreza de carácter só reconhecidas às almas grandes. É por tudo isto que ABRIL é e será sempre o GRANDE VENCEDOR.
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Nota do editor
Último poste da série de 4 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22068: Blogues da nossa blogosfera (157): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (66): Palavras e poesia
6 comentários:
Muito interessante texto por profundamente abrangedor.
O Abril em que os sonhos ainda se tocavam com a ponta dos dedos e o Abril de tal modo “diluído” que os próprios cravos na Assembleia da República deveriam ser brancos.
Mas, quanto às “portas que Abril abriu”.... há que não deixá-las cerrar!
Um abraço
J.Belo
POIS, NINGUÉM FALA DAS ATROCIDADES PRATICADAS DURANTE O PREC... DAÍ ME TER LEMBRADO DA SEXTILHA QUE O MEU AMIGO CORONEL JOSÉ CANINÉ FEZ NO SEU 2.º LIVRO EM 2005:
De boca cheia de Abril
Andam sempre os mesmos mil
Erguendo alto a sua voz;
Mas aos mais jovens eu lembro,
Que se não fosse o Novembro,
Ai do Abril... e ai de nós!
ATROCIDADES?
ATROCIDADE: crueldade, barbaridade, tortura
Em que circunstâncias e quais as atrocidades foram praticadas e dos processos judiciais que penas foram aplicadas aos autores de tais crueldades, barbaridades e torturas?
Valdemar Queiroz
Gostei muito, mas mesmo muito, deste texto.
Pode-se dizer que nele está contido tudo (ou quase tudo) que explica a urgência de o 25 de Abril de 1974 ter acontecido, das derivas que dele foram paulatinamente surgindo, dos perigos que hoje estão aí à espreita, das ações que se vão desenvolvendo.
Mas também nos diz que a manutenção dos valores que o iniciaram, a necessidade de aprofundar a defesa desses valores, é tarefa constante de todos nós. Todos nós, claro, os que se identificam com esses valores, pois quanto aos outros, os "órfãos", a prática é outra, é a de todos os dias tentarem contribuir para o retrocesso e nos últimos tempos têm vindo a considerar que o tempo vai "maduro" para isso.
Há quem pense, e diga, que a História se move em círculos, que se repete.
Não, não é verdade. Isso só acontece na aparência pois há um "ganho" temporal.
É como o passo da rosca, se olharmos de cima parece que cada filete repete o outro mas se olharmos de perfil vê-se que a cada filete corresponde outro mas um pouco mais acima, correspondente então à passagem do tempo e às características próprias dele.
Normalmente também se diz que quando há repetição (aparente) a primeira apresenta-se como tragédia e a segunda como farsa.
É por isso, por agora os aparentemente identificados com os "outros valores" se apresentarem como vamos vendo por aí, e usarem (eficazmente, diria) as facilidades da democracia, que não se afastarão dessa qualidade de "farsantes", embora perigosos, muito perigosos.
Hélder Sousa
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