quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22566: Os nossos regressos (39): Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 22 de Setembro de 2021, falando-nos do seu regresso da Guiné:


O REGRESSO (1)

Regressei em 1972 da guerra Guiné mais queimado por dentro do que por fora já que quando passados dois meses tentei estudar para fazer o exame de aptidão à Universidade, me pareceu que não conseguia fixar as matérias em estudo.

Desiludido com a minha perda de capacidades e consciente de que, tendo saído da tropa, não poderia continuar a deixar arrastar os dias ao sabor das quatro estações depois de viver em África sob as estações secas e das chuvas e na sucessão dos dias calmos, intercalados por alguns dias agitados, com tiros, com granadas, com bombas, que me despertavam desse torpor da melhor ou da pior maneira. Sim porque muitos de nós gostávamos da guerra sem mortos nem feridos para quebrar a monotonia em que vivíamos.

Como oficial miliciano tinha um vencimento com que nunca tinha sonhado e porque somente podia enviar dois terços para a Metrópole sobrava-me muito dinheiro para alimentar diversões e vícios que criei para entreter os dias. Tinha parado no tempo e porque não morri na guerra, como outros que tiveram esse infeliz destino, dei-me conta que ainda poderia ter um longo futuro para gerir à minha frente. Teria que arranjar trabalho. Por percalços relacionados com a minha independência e rebeldia falhei a minha entrada em dois bancos que o meu pai, um negociante honesto com boas relações com bancos e com um industrial de cortiça de Lourosa, me garantiam, sendo um a Caixa Geral de Depósitos que nesse tempo até pagava bem.

Para não me tornar num indigente a viver às sopas dos meus pais, em fins de 1972, decidi concorrer à Caixa de Previdência e dos Serviços Médico Sociais do Porto que tinha aberto um concurso de entradas, com formação e provas e dava prioridade a ex-combatentes do ultramar. Éramos quatro ex-militares e duas jovens que tinham acabado de tirar um curso superior. Fizemos boas provas de ingresso e todos fomos admitidos. Dentre esses camaradas criei uma relação mais próxima com o Barcelos Monteiro por afinidades várias, éramos ambos transmontanos, com formação liceal na área de letras, tínhamos alguma curiosidade política e literária, ele bastante extrovertido, eu um pouco introvertido.

No ano de 1973 houve mais uma farsa de eleições para a Assembleia Nacional, a que a Oposição concorreu muito limitada na campanha eleitoral sem poder falar da censura da pide, dos presos políticos,   da guerra colonial, de outros assuntos que eram tabu para o regime.

Com pouca formação política e sem estarmos inscritos em qualquer partido, mas porque sentíamos o ambiente político opressivo em que se vivia, participamos em algumas manifestações e comícios da oposição, como apoiantes, e por vezes tivemos que fugir à polícia como os outros.

O ano foi passando, entre calmo e agitado, alegando, com razão, falta de liberdade para fazer campanha, a Oposição Democrática desistiu das eleições, como no geral acontecia e a União Nacional ocupou todos os lugares da Assembleia da República, com a benção da Igreja e de Salazar, esse santo hipócrita, que já estava no céu dos pardais.

Ganhava-se pouco, o trabalho, com tarefas repartidas, tipo trabalho à peça, era pouco interessante. Na secção para onde entrei, com cerca de 30 pessoas a maior parte mulheres, era chefiada por um homem, inteligente, competente, mal alinhado com o regime, por vezes bem humorado mas com uma pancada própria que o levavam a ter atitudes pouco racionais. Tinha um adjunto com quem não se entendia bem e para o castigar, tinha-lhe distribuído um trabalho, que consistia em carimbar documentos todos os dias, à Mariana que trabalhava junto dele a dactilografar-lhe os ofícios e a fazer outros trabalhos, raro era o dia em que não a fazia chorar a recriminá-la com ou sem razões. Em toda a instituição trabalhavam sobretudo mulheres sendo porém os chefes praticamente todos homens.

As mulheres casadas algumas eram pequenas burguesas quando os maridos tinham rendimentos bastante superiores aos delas, outras equilibravam os vencimentos com o dos maridos para pagarem as prestações da casa, do carro e para alimentarem a família. As raparigas solteiras suspiravam, algumas bem alto, pelos namorados que estavam no ultramar a lutar pela Pátria uns e outros pela vida. Havia a Rosa, era casada e tinha duas filhas, a mulher mais generosa e solidária que já conheci, frequentemente a ser chamada ao guichet para tratar de assuntos de muitos amigos e amigas, pobres ou ricos que tinha por toda a cidade e arredores. Ajudava igualmente os colegas em tudo o que podia e no trabalho sempre activa e faladora, distribuia boa disposição por todos. Pouco convencional era capaz de se sentar nas minhas pernas ou de outro colega, para escândalo de algumas mais conservadoras, outras vezes fazia-lhes perguntas que as embaraçava, do género nunca fizeste amor dentro do carro e terminava dizendo que era muito bom. Um dia já depois de almoço acercou-se de nós, a Amélia, uma colega da minha idade, casada, com um filho, vinha nervosa e disse-nos com tristeza, pedindo segredo, que de manhã tinha ido fazer um aborto. Dramas que aconteciam nesse tempo, ainda hoje talvez com mulheres de todas as classes e condições sociais.

No final desse ano as senhoras organizaram uma festa de Natal numa pequena sala contígua à secção, com enfeites, com música, boa comida e alguma bebida, memorável.

Em Abril de 1974 dá-se a Revolução dos Cravos, com que eu tanto tinha sonhado que já não me parecia que fosse possível. Há todo um povo que adere se levanta, e procura os novos caminhos e o sabor da liberdade que desconhece.

A propaganda politica surge por toda a parte, nas praças, nas avenidas, nos locais de trabalho, nas cidades nas aldeias, com slogans da Revolução Francesa, das revoluções comunistas, Russa e Chinesa, é sobretudo a esquerda que no antigo regime estava amordaçada que agora fala e grita bem alto.

As chefias dos serviços públicos, que eram afectas ao regime caído, por convicção, por obrigação ou necessidade, ficaram apáticas e temerosas. Nem todas, pois um conhecido Chefe de Serviços da Instituição, que segundo testemunhas de crédito, recebia pides regularmente no seu gabinete, filiou-se num partido de esquerda e em Julho, soube depois, pois eu estava de férias, encabeçou uma manifestação em direcção ao Quartel-General do Porto, para exigir o saneamento dos fascistas.

O meu amigo Barcelos Monteiro adere logo, de alma e coração, a um partido vermelho e não se cansa de procurar convencer os outros das verdades em que acredita. Está sempre presente em comícios e manifestações, onde procura conquistar também o coração e o calor de algumas camaradas, a revolução sexual, de vento em popa nos outros países da Europa, estava-se a expandir finalmente em Portugal.
Vende o jornal do partido à porta do trabalho e nas ruas e praça mais próxima.

Durante muito tempo insiste comigo para o acompanhar, eu vou resistindo, os anos de tropa e de Guiné tinham esmorecido o meu fervor revolucionário, estava diferente, mais maduro e tinha reflectido muito sobre acontecimentos mundiais que desvirtuavam os amanhãs que cantam. No entanto pela insistência dele ou por curiosidade acabo para aderir. Nunca me senti bem dentro desse partido pois cedo me apercebi que as ideias e opiniões dos militantes de base não eram escutadas. A direcção partidária pensava por todos, os outros não tinham esse direito. Nós simplesmente tínhamos que obedecer às ordens emanadas superiormente, encher os comícios, bater palmas a tudo o que os dirigentes dissessem e fizer todo o trabalho físico que nos fosse determinado. Saí pelo meu pé, um ano depois, entregando uma carta de demissão que nunca teve resposta.

Com o passar dos anos, pela comunicação social e por conversas com militantes doutros partidos. apercebi-me que em relação à democracia interna, todos eles duma forma mais ligeira ou acentuada, eram semelhantes.
No antigo regime ouvíamos falar da democracia, o melhor dos regimes políticos, como uma miragem.

A democracia criada em Atenas dava direitos iguais a todos os cidadãos mas atente-se que, os metecos (estrangeiros) e os escravos, em número muito superior aos cidadãos livre , não tinham quaisquer direitos.

A nossa democracia, nascida com a Revolução dos Cravos, dá voz aos partidos que interpretam a seu bel-prazer a vontade dos seu seguidores, por isso ela definha, vejam-se as votações.
Contudo eu prefiro a democracia a qualquer outro regim , devia ser mais participada pelos cidadãos e respeitada pelos políticos.

Este texto já vai longo, longo demais, para quem o quiser ler. Terá continuação se se achar que poderá interessar a alguém.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE JULHO DE 2020 > Guiné 61/74 - P21213: Os nossos regressos (38): Comando e CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70): uma longa viagem de nove dias, no velhinho T/T Carvalho Araújo, de 16 a 26 de junho de 1970, com um dia no Funchal (Fotos: Otacílio Luz Henriques)

15 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco, achei muito interessante e sobretudo sincero o teu depoimento sobre o regresso da Guiné e a tua tentativa de (re)adaptação â "vida normal", o primeiro emprego, o 25 de Abril, os vira-casacos, a difícil aprendizagem da democracia... Muitos de nós pssámos por isso, ninguém estava preparado para viver em liberdade... Mas concordo contigo: prefiro viver na piro democracia do que na melhor ditadura... Um alfabravo, Luís.

Anónimo disse...

Como sempre Francisco, gostei de mais esta tua inspiração, dos teus "diabos" que tiveste de superar, como de certeza aconteceu com todos nós, cada um de forma diferente, naturalmente. Também o pós-25 de Abril veio apanhar-nos de "supetão", para uma realidade de que estávamos bem distantes. Foi preciso aprender e, aqueles que tinham dado "o fora", é que souberam aproveitar...
Claro que eu tinha a minha profissão, para onde voltei depois das férias a que tinha direito, mas foi um recomeço difícil e não mais fui o mesmo como pessoa.
Muitos anos depois, já com vários anos de aposentadoria, num almoço de "reformados", finalmente, uma funcionária dos escalões mais baixos que me conhecia desde o princípio, nos velhos Serviços Agrícolas de Aveiro, me confessou, que quando voltei em 1972, estava completamente diferente do passado.
Pois, e a família nunca ouviu uma palavra daquele período, até ao falecimento da minha mulher. Só depois de 2008, comecei a "descomprimir".

Abraços
JPicado

José Botelho Colaço disse...

Amigo F. Bapista a democracia com os seus prós e contras, mas para os viras casacas, oportunistas parece-me ser é um el-dourado tanto podem estar bem com Deus como com o Diabo. Mas que se pode fazer: O oportunismo é infelismente dos espertos e não dos inteligentes. Abraço.

Hélder Valério disse...

Caro Francisco

Continuas com esse jeito bom de ir discorrendo ao correr da pena.
E é bom que o faças, pois assim cada um pode-se (quem quiser e souber) rever, na totalidade ou em parte, no que descreves.
Nos sentimentos, nas posturas, nas dúvidas, nas "certezas", no empenho e/ou na indiferença.
Os tempos não vão bons, assim me parece. Sinto algum retrocesso civilizacional mas acho que se trata de um "processo natural" com os fluxos e refluxos que as dinâmicas sociais vão criando.
Abraço
Hélder Sousa

JB disse...

É sempre com interesse (e expectativa!) que se lêem os textos do Amigo e Camarada Francisco Baptista,independentemente do local geográfico da leitura dos mesmos.

Um abraço do J.Belo

Valdemar Silva disse...

Muita rapaziada regressava da tropa e tinha de arranjar trabalho.
Mas a grande maioria já trabalhava, nem que fosse na lavoura familiar, quando ingressou no serviço militar. Nas cidades eram notórios os paquetes, aprendizes e praticantes.
Foi o meu caso, comecei a trabalhar com 12 anos, feitos dois dias antes da minha inscrição na Caixa de Previdência: fiz 12 anos a 30 de Março e a 01 de Abril de 1957 entrei pra Caixa.
Em tempos consultei o ranking dos mais jovens a descontar pra Caixa e eu lá estava, mas havia uns tantos de 11 anos.
Na empresa onde trabalhava, não me recordo se era de Lei, havia o Quadro do Pessoal no Serviço Militar, que tinha as anotações das promoções obrigatórias e os aumentos de vencimento que se verificavam, que era aplicado no momento da apresentação do regresso do serviço militar.
Quanto ao continuar a estudar e seguir, não tive muita vontade de voltar a estudar à noite como tinha acontecido, mas principalmente por já ser "empregado de carteira" e a evolução profissional estar garantida.
Quanto ao resto, é uma delicia ler os textos do Francisco Baptista, apenas faltou o pormenor de nas secretárias abertas ocupadas pelas senhoras haver uma cartolina à frente a tapar as pernas. É caso para dizer como aquela cesteira da RTP1 'no meu tempo as mulheres não usavam calças, não usavam pronto'.
(...e a M. Conceição tinha cá umas......)

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

Fernando Gouveia disse...

Francisco, como sempre te digo, mais uma vez gostei muito deste teu novo texto e do assunto que versa. No entanto quero dizer uma coisa, que acho importante e que não deixa de ser sintomática: O teu texto logo a ser publicado já mereceu uma data de comentários, enquanto outros não têm nenhum ou um só. Continua a escrever dessa maneira, que és sempre bem escutado.
Um grande abraço.
Fernando Gouveia

Anónimo disse...

Francisco, revejo-me em tudo o que escreves sobre o nosso regresso.
Fui retirado da minha zona de conforto, no terceiro ano do curso de Eletrotecnia e Máquinas do Instituto Superior de Engenharia (na altura Instituto Industrial do Porto), ficando por fazer parte do terceiro e todo o quarto ano. Duas disciplinas para trás, por demasiado bilhar, cinema e tal… indeferiram (interferiram) (n)um novo pedido de adiamento da chamada para a tropa.
No regresso foi muito difícil retomar o caminho a partir do local onde fiquei,
Só à terceira tentativa consegui com a ajuda de outros companheiros na mesma situação (ou seja ajudávamo-nos uns aos outros). Sempre que um tinha uma recaída era levado aos “ombros” pelos restantes (tal como na Guiné ninguém ficava para trás).
Acabei por me habituar, ao ponto de me viciar no estudo, continuando mesmo depois do meu primeiro emprego como professor.
Um abraço
Joaquim Costa

Anónimo disse...

Francisco, Tudo isto para te dizer que gosto do que escreves e da maneira como escreves. Creio que ninguém deixa de ler os teus textos com prazer até ao fim.
Mais um abraço
Joaquim Costa

Anónimo disse...

Um texto de uma grande sinceridade e fidelidade à verdade, como te é costume. Eu e muitos outros subscreveriam uma grande parte do que disseste. A dificuldade na readaptação a uma paisagem laboral que haveria de ser sobressaltada pelo 25 de Abril e por alguns salta-pocinhas oportunistas. Eu fui admitido no mundo laboral, precisamente na fogueira do "verão quente", quando um colega (também ex-combatente da Guiné) entrava com o Comércio do Porto debaixo do braço, desafiando o pessoal UDP que vociferava sem que ele mostrasse a mais ténue perturbação. É que só se podia ler , então, o Jornal de Notícias, porque o outro era dos reaccionários.

Um abraço , amigo e camarada Francisco.

Anónimo disse...

Esqueci-me de assinar o meu comentário.

Aqui vai : Carvalho de Mampatá

ildeberto medeiros disse...

Este texto desde amigo que andou por Manssaba Guine e do meio tempo nao tenho ideia de o conhecer no sei texto que escreve pura verdade passou-se comigo e com muitos de nos regresamos mas com muita diferenca do que eramos antes de irmos para a africa Um forte abraco para todos que andamos por esta Guine Ideberto Medeiros

Carlos Vinhal disse...

O regresso à vida civil era muito complicado. A família tinha visto sair uma pessoa e via entrar outra muito diferente para pior. O mutismo e a necessidade de isolamento eram incomprendidos.
Nos empregos, quem os tinha, éramos vistos com estranheza e sujeitos a perguntas sem nexo, tirando as dos mais novos que se queriam inteirar do que os esperava mas acho que poucos de nós tínhamos respostas coerentes.
Tinha-se deixado tudo para trás, era preciso reorganizar a vida, acabar estudos, procurar emprego e constituir família.
Infelizmente nem todos conseguiram o equilíbrio psicológico necessário para refazer a vida. Conheci um caso dramático de um colega de trabalho que culminou com o suicídio.

Parabéns Francisco pelo teu "retrato".

Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

ana oliveira disse...



Muito obrigado a todos os que leram e comentaram o meu texto. Um agradecimento especial ao Carlos Vinhal, meu camarada de Mansabá, porque apesar das seu trabalho constante, como editor do Blogue teve a amabilidade de fazer um comentário simpático. Devias escrever mais, as tuas memórias também. Ao António Carvalho quero dizer que estou a gostar muito de ler o teu livro, já li as páginas referentes à vida agrícola e gostei tanto que irei relê-las.
Um grande abraço a todos,

Francisco Baptista

Juvenal Amado disse...

Francisco a velocidade com que blogue avança deixa muitas preciosidades por ler e comentar. Mas embora com atraso acabei de ler o teu regresso. Como atrás escrevi os teus textos são um sempre um momento de inteiro prazer. Um Abraço e manda mais