domingo, 26 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22572: Notas de leitura (1384): "Tempo das coisas", tempo de viver, tempo de morrer... A pungente despedida de Renato Monteiro (1946-2021): 31 poemas escritos de rajada na noite de 3 para 4 de julho de 2021 (Luís Graça)

 

"Livro de quem adivinha o tempo das coisas e que quer deixar, ainda, aos amigos algumas palavras. Pediu-me para o editar. Com um clique encontram as palavras e sei que lhe ouvem também a voz." (Margarida Miranda Monteiro, in Página do Facebook de Renato Monteiro, 23 de julho de 2021)

 


Dedicado ao neto, de 15 anos, Carlos Monteiro, filho do Daniel Monteiro, que de vez em quando perguntava ao avô porque é que ele não escrevia... Escreveu 31 poemas, escassos dias  antes de morrer e pediu à sua mulher, Margarida (Guida, toda a vida) para mandar um exemplar a uma lista restrita de amigos...



Índice dos 31 poemas


"O comboio". o últmo poema (pág. 33): é mesmo um poema de despedida... sob a metáfora do comboio que chega e não chega, "muita terra, pouca ou nenhuma".


"Só", pág. 12. Sem nunca vir mencionada a palavra "morte", ao longo destes 31 poemas,
ela está todavia presente do princípio ao fim. É um homem, de um tremenda lucidez, que sabe vai morrer nos próximos dias, quando o coração parar de bater de vez... E sabe que o fim não tem retorno. E, pior que tudo, que é o ato mais solitário da vida.


"Veneno", pág. 4. O soro, o inútil soro, agora veneno, num corpo que não será múmia... Não há aqui autocomiseração, mas auto-ironia. Ácida.


"Sede", pág. 24.  A metáfora da água que já não dessedenta...


"Coração", pág. 18. O coração já exterior ao corpo, sal-ti-tan-do 
como um inútil boneco de corda.


"Bate bate bate", pág. 29...E que bate, já por nada nem ninguém.


"Arroz de cabidela", pág. 20. Uma metáfora cruel.


"Letras", pág. 23. A incomunicação total ou final. 


"Guida, pág- 14. O último poema de amor. Guida, sempre,  até sempre! Faz os tempos da guerra  que lhe mandava cartas de amor/humor com recortes de letras de jornal...



"Liberdade", pág. 17.  Ah! a liberdade de já não esperar coisa nenhuma!... A liberdade encerrada para balanço final, o do deve e haver da vida.


"Paragem", pág.  26.  O tempo em que tudo pára, mas a paixão da fotografia,
essa, fica expressa em muitos álbuns,  E a paixão da escrita, mesmo que não nos salve. Nada nos pode salvar quando chegarmos ao fim da picada.


"Tempo", pág. 3. O tempo sem mais tempo, o nada, 
um relógio sem ponteiros.



1. O Renato Monteiro (1946-2021) (*) será sempre,  para 0s nossos leitores, o misterioso "homem da piroga" cujo nome  eu procurei durante várias décadas (, desde que, em Contuboel, em 18 de julho de 1969, eu parti para Bambadinca com os meus camaradas da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12, e ele com os seus, os da CART 2479, futura CART 11,  com destino a Nova Lamego).

O Monteiro (,aliás Renato), aqui na foto, com o Henriques (, aliás, Luís Graça), no rio Geba, em Contuboel, em junho/julho 1969... Não sei quem era o terceiro elemento da "tripulação", talvez o Cândido Cunha. Éramos três "desalinhados " do sistema, despejados sem saber como no Centro de Instrução Militar de Contuboel, em pleno "chão fula"...

Ao fundo, a ponte de madeira onde o Monteiro poderia ter morrido, sem também ninguém saber como, numa tarde de julho de 1969. Deu um mergulho, temerário,  e ficou preso na represa, feita pela estacaria de madeira da ponte. Desensarilhou-se no último fôlego de vida. Uma  cena dramática que eu nunca mais esquecerei na vida. Nascido à beira beira-mar, eu não sabia nadar,  nem nunca mergulhei num rio ou braço de mar da Guiné (, por trauma da infância, provocada pela estúpida praxe do dia de São Bartolomeu, o 24 de agosto, em que os adultos batizavama os putos na água revolta e salgada do Atlântico).

 Perdi-lhe o rasto em 18  de julho de 1969,  mas não o rosto, durante 36 anos... Afinal,ele vivia a escassas centenas de metros da Escola Nacional de Saúde Pública, na Av Padre Cruz, onde eu tive um gabinete de trabalho desde 1985.

Reencontrámo-nos, uma ou outra vez, telefonávamos com alguma regularidade (três ou quatro vezes por ano...), trouxe-o para o blogue (não sem alguma resistência da sua parte...) mas perdi a oportunidade soberana de o levar à Lourinhã, para beber um copo, a ele e à sua Guida, com o Mar do Cerro à nossa frente. 

A doença (uma temível DPOC) e a morte, no "annus horribilis" de 2021, em 9 de julho, trocou-nos as voltas... Tendo-me recusado a dizer-lhe "adeus, descansa em paz" (a fórmula ritual do noticiário necrológico), disse-lhe apenas "Até um dia qualquer, meu bom amigo e camarada, num reencontro imediato do 3º grau, na nossa ou noutra galáxia"...

Foi homem e artista de múltiplos olhares e "fotografares" (, feliz títuo de um dos seus blogues): as gentes e as paisagens do Bairro da Graça (onde mora a minha netinha) ao Cabo Carvoeiro, da Trafaria a Cascais, da Quinta Grande a Vila Franca de Xira, do Algarve ao Alentejo, dos ciganos aos cabo-verdianos, dos pescadores do Tejo aos putos da rua, do pessoal das "barracas" aos operários da Lisnave, aos velhos, aos cidadãos anónimos, aos estrangeiros, afinal, "nós outros" (outro feliz título de outro dos teus blogues)...

Deu rosto a muita gente sem rosto, sem voz, sem história, e mais mundo haveria para fotografar se não fora tão curta e ingrata a vida, em plena pandemia... Chorei a sua perda e voltei a emocionar-me quando a Margarida Monteiro, a Guida, me telefonou a pedir a minha morada: o Renato deixou, por imprimir, uma espécie de testamemto poético, febrilmente escrito na noite de 3 para 4 de julho. (**)

Em 22 de agosto, escrevi à Guida por mensagem do telemóvel: 

"Querida amiga,  recebi o livrinho e já o li e reli. Pungente. Um grande documento humano e uma pequena grande obra-prima da poesia em português.Vou ver se consigo por estes dias publicar uma nota de leitura no blogue. Obrigado por tudo. Abraço para os teus homens. Chicoração para ti. Dorme bem. Luís."

E a 2 de setembro, mandei-lhe nova mensagem: 

(...) "Tenho pena de não ter convivido com o Renato e na prática não te ter conhecido na vida dele. Ainda me chegou a manifestar o seu desejo de eu lhe escrever um texto para um álbum fotográfico. A vida, afinal,  é tão curta para as nossas agendas e sonhos. Nunca fui a uma exposição dele!!!...  Ofereceu-me um dos seus álbuns. Manda o livro ao Valdemar Queiroz. "(...) 

Li e reli o livrinho, "O tempo das coisas". Em cada um dos poemas, fiz uma anotação a lápis, com a avalição numa escala de  um (*) a cinco (*****).   A seleção que fiz a acima é dos poemas de que mais gostei, numa primeira leitura. E inseri-os por uma ordem que é mais lógica do que que cronológica. (»»»)

(***) Último poste da série > 23 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22565: Notas de leitura (1383): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte I (Luís Graça)

11 comentários:

Valdemar Silva disse...

Também estava na lista para receber o livrito.
Este "Tempo das coisas", o último livro que o Monteiro escreveu.
Ler o "Comboio" é terrível, como é que ele conseguiu escrever que vai de viagem para desaparecer.
A mim telefonou a dizer quase a mesma coisa: Queiroz vou para o hospital e já não devo voltar.
Telefonou-me a dizer que ia morrer.

'Quando abrires o teu armário
das surpresas imprevistas
não desistas, não desistas'
Dizia o Monteiro em Contuboel.

Qualquer dia havemos de nos encontrar.
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Acabei ontem de ultimar este poste. Sob o silêncio dos sobreiros. Levou-me três dias. Que ironia, estou na Quinta da Saudade, albufeira de Montar Gil, Ponte de Sôr. Saudade, dor,revolta.

Anónimo disse...

Caros amigos,

O Renato Monteiro era um Homem enigmático que não compreendia o mundo e que o mundo, por sua vez, nunca compreendeu. Viveu uma vida fugaz, num mundo de contradições que procurava sempre fugir, escondido atrás de uma cämera e de palavras breves, como foram breves os seus últimos trechos, envoltos no tempo das coisas que sempre quis dizer sem encontrar as palavras certas para o descrever na sua verdadeira dimensão que só cabia no coração de homens bons e rectos como era o Renato Monteiro.

Em principios deste ano, que seria o da sua despedida, aceitou finalmente a minha solicitação de amizade no FB e assim, pude acompanhar e sentir toda a dor dos seus últimos sopros de vida em palavras breves que revelavam sentimentos profundos de alguém que queria dizer muita coisa, mas que tinha tão pouco tempo, o tal tempo das coisas com que nos despediu no seu derradeiro livros e suas últimas palavras.
Que a sua alma possa repousar na paz dos justos. Até breve amigo Renato e que possas reencontrar os teus soldados "fulas" dos tempos sem idade do Centro de Instrução Militar de Contuboel.

Do amigo e irmão Cherno Baldé.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Um homem sem ressentimentos. E no entanão foi doloroso para ele o castigo que apanhou bem Piche, o que o obrigou a deixar os seus "lacraus", indo desterrado para o Xime.

Abilio Duarte disse...

Ola Luís,

Gostei do comentário do Cherno.

De facto , o Renato era uma pessoa enigmática Eu que convivi com ele desde Penafiel, a Tancos para tirar , Minas e Armadilhas, e depois voltarmos, para formar a Companhia em Silvalde e irmos para a Guine.

Eu , sinceramente nunca o compreendi. Era uma pessoa que não tinha nada, mas nada a ver comigo, ou com a maioria dos outros Furriéis.

Por isso muitas vezes, era incompreendido.

Acho que não vivia, no mesmo ambiente que todos nos.

Por isso, ele se deu bem com o Candido Cunha, o Valdemar, e contigo, comigo ... eu não pertencia aquela praia.

Só a maneira, com que ele aparecia, com uma quantidade de livros, debaixo do braço !!!

Era de outra galáxia, em plena África. E eu , não tinha sido educado ou preparado para tanta cultura.

Mas a vida, é feita de todas essas diferenças, nao somo todos iguais.

E ainda hoje, quando se referem ao Renato Monteiro, eu para mim, sempre recordo, o que dizia naquelas alturas... mas de que arvore caiu este pássaro!!!

Foi bonito, apesar de tudo ter convivido com ele.

Que descanse em paz.

Abílio Duarte

Valdemar Silva disse...

É verdade, Duarte.
O Monteiro sempre foi "complicado" para todos nós, talvez o Cunha o compreendesse, eu só o "apanhava" nalgumas coisas. Sempre o vi como um poeta, com uma calma que inervava: andou com aquela do "O brinco da tua orelha/Sempre se vai meneando/Gostava de dar um beijo/Onde o teu brinco vai dando ....", várias semanas.
Mas não chateava e nem sequer comentava '..esta merda..', apenas deu para o torto o obrigarem os nossos soldados fulas do seu Pelotão a limpar valas em Piche, ao ponto de ser castigado com o 'isso eles não fazem' e ser transferido para outra Companhia, no Xime
Ficava entusiasmado com as meio parvas/surrealistas atitudes do Cunha "Lukas Titio" e do Almeida "Velho Lacrau" colar por várias árvores no mato 'Cabral estou de caras à tua espera'.
O Cherno Baldé é um djubi fula nascido na Guiné no tempo da guerra, estudou e ficou um homem do nosso tempo. Estamos sempre a aprender com ele.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz

p.s. parece que a sardinhada foi oceano abaixo.

alma disse...

Finalmente Poesia e da Boa! J.Cabral

Cherno Baldé disse...

Caros Abilio Duarte e Valdemar,

Foi a pensar no caso do Renato Monteiro, depois da leitura de alguns dos seus textos publicados no Blogue da TG que, em tempos, tomei a liberdade de escrever:

" Estranho o povo que faz de poetas soldados e de soldados poetas..."

Não sei se o Renato Monteiro alguma vez terá encontrado a resposta a sua pergunta filosófica de saber "... a que cheiramos nós ?...". Não deu para o informar que, saido das profundezas da floresta guineense, donde a guerra nos suroreendera, o cheiro que sentimos dos "Tugas" nossos amigos e aliados no longínquo ano de '64, era um cheiro desagradável, para o nosso olfacto ainda virgem da civilidade global, da mistura de um Cocktail de alhos, de cebolas e de vinhos vários que nos obrigava a fugir para bem longe.

Abraços.

Cherno Baldé


Hélder Valério disse...

Luís

Para mim o Renato Monteiro foi sempre conhecido como "o homem da canoa" e o que "sei" dele foi o que fui ledo por aqui, no Blogue.
Tomei conhecimento da sua morte, por aqui, no Blogue.
Tomei agora conhecimento dos poemas que escreveu, aqui, no Blogue.
Ele sabia que ia morrer, que estava a morrer, e então decidiu (se calhar já tinha isso congeminado há muito) deixar alguns pensamentos para os amigos e familiares.
E que pensamentos!

Li os que foram publicados e, sinceramente, não pude evitar, aqui e ali, um nó na garganta.
Há raiva, há desencanto, há ternura. Não me apercebi de ódio.

Era, seria, um "desalinhado"?
Mas não seremos todos um pouco, nem que seja só às vezes?

Que descanse em paz.

Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Releiam estes postes do Renato... Até cnas cartas que mandavam para a Guida, ele era desconcertante e original...

1 DE JUNHO DE 2015
Guiné 63/74 - P14686: Cartas de amor e guerra (Renato Monteiro, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970) (Parte I): Os nossos romances deviam ter um final feliz!...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2015/06/guie-6374-p14686-cartas-de-amor-e.html

2 DE JUNHO DE 2015
Guiné 63/74 - P14690: Cartas de amor e guerra (Renato Monteiro, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego e Piche, 1969/70; e CART 2520, Xime, 1970) (Parte II): anti-herói

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2015/06/guine-6374-p14690guine-6374-p14686.html

Como ele me explicou, são cartas destinadas à namorada [Margarida, a Guida, mais tarde esposa e mãe do Daniel e avó do Carlos], "pouco convencionais, a dispensarem o aparo da Pelikan, compostas na sua maior parte por colagens de palavras e frases curtas de jornais e revistas encontrados casualmente nos aquartelamentos de Contuboel (...) e de Pitche. (...) Mensagens que, recorrendo ao nonsense através de expressões fragmentadas e sentidos descontínuos, nem por isso deixavam de traduzir uma certa amargura, ironia, desespero; momentos de medo e de calados desejos; surdas revoltas causadas pela forçada expatriação que nos obrigara à separação do outro amado."

Valdemar Silva disse...

Duarte
Por causa destas palavras e frases que o Monteiro recortava de jornais e revistas, lembras-te de "voarem" umas gordas notas de Pesos e a aparecer uns pedidos de desculpa aos lesados, com frases escritas desta forma de recortes.
Vá que descobrimos faltar em revistas do espertalhão cleptómano, que já vinha viciado de Silvalde, e o Monteiro ficou ilibado.
O espertalhão cleptómano, por tal sinal um gajo porreiro, mestre em desenrascanço e outros teatros não operacionais, ainda levou com um nosso 'acaba lá com essa merda' sem se amedrontar, aguentando-se mais uns meses até ao "golpe" em Nova Lamego dar para o torto e ter de ir .... para outra freguesia.
Dos longos telefones que à noite tinha o Monteiro falávamos deste espertalhão, e das suas várias e interessantes peripécias, de atitudes de doenças teatrais para fugir a saídas em operações e uma grande capacidade para dar espectáculo.

Acabaram aqueles longos telefonemas que à noite tinha com o meu amigo Monteiro.

Abraço e saúde
Valdemar Queiroz