quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22769: Historiografia da presença portuguesa em África (292): "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas; Círculo de Leitores, 2005 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
O Centro Nacional de Cultura organizou em 2004 uma digressão pela Rota dos Escravos, tudo se iniciou em São Tomé e trepou até Santiago. Faz-se uma incursão pela História e de um modo geral o escritor Miguel Real, encarregado do relato da viagem, incumbiu-se bem, leu, documentou-se e dá o seu testemunho e agenda. Adriana Molder publicou ilustrações e Noé Sendas fotografou (infelizmente em tamanho reduzido). Sente-se que as roças estão gradualmente a ser recuperadas, aquele paraíso vegetal mantém o seu fascínio e estamos neste momento no forte recuperado pela Gulbenkian em 1990 de S. João Baptista de Ajudá, uma das placas giratórias do mercado de escravos do Golfo da Guiné. Já se falou de João Oliveira, grande contratador de escravos para o Brasil, teremos a seguir outra figura que entrou na lenda, Francisco Félix de Sousa, que tinha o título de "Chachá", terá sido o último grande negreiro português.

Um abraço do
Mário



A rota dos escravos, da Senegâmbia ao Golfo da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Em setembro de 2004, no âmbito de um ciclo organizado pelo Centro Nacional de Cultura, um grupo partiu para o Atlântico e Costa de África em busca de vestígios da presença portuguesa, o tal ciclo denomina-se “Os Portugueses ao Encontro da Sua História”. Visitaram São Tomé, seguiu-se o Gabão, São João Baptista de Ajudá, o Senegal e depois Cabo Verde. Não se dá explicação por não ter feito parte desta rota a fortaleza de Cacheu, teve um papel primordial na transferência de escravos sobretudo para a ilha de Santiago, de onde depois partiam para vários pontos do continente americano e até Portugal. Pode-se especular não ter havido condições, a Guiné-Bissau vivia um período de turbulência, recorde-se o golpe de Estado que apeou Kumba Ialá, seguiu-se uma Junta Militar. O resultado dessa viagem é o livro "Atlântico, a viagem dos escravos", texto de Miguel Real, ilustrações de Adriana Molder, fotografia de Noé Sendas, Círculo de Leitores, 2005.

O escritor tece considerações sobre o fenómeno da escravatura, descreve o seu histórico e como todo este fenómeno entrou na nossa civilização e na nossa cultura. Os portugueses, como outros povos europeus, investiram a fundo na industrialização e internacionalização deste tráfico que era permutado com mercadorias europeias e brasileiras (têxteis, álcool, armas de fogo, cavalos, pólvora, aguardente, tabaco da Baía de terceira qualidade, entre outras). Os escravos africanos destinavam-se a mão de obra nas plantações de algodão, açúcar e café na América. “Ao longo de cerca de 400 anos, entre a segunda metade do século XV e a primeira metade do século XIX, teriam sido comprados em África entre 10 a 15 milhões de escravos, a maioria destinada ao continente americano, do Brasil e Perú até aos atuais Estados Unidos da América”. Está comprovada a presença de escravos africanos em Portugal já em meados do século XVI, exerciam trabalhos servis como o das calhandreiras (recolha matinal dos dejetos da noite em calhandras de barro malcozido). Miguel Real tece a seguinte consideração: “A cultura portuguesa não é uma cultura escravocrata, a civilização e o tempo histórico europeu em que nos integrámos, sim: a passagem em tempo longo da ruralidade medieval para o mercantilismo mundial forçou os europeus a procurarem mão-de-obra intensiva para a produção, vendo no negro a tábua de salvação económica”.

A viagem começa no Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no antigo forte português de São Sebastião. Os visitantes são confrontados com as estátuas de Pêro Escovar, João de Santarém e António da Nóvoa e o escudo de Portugal derribado e quebrado em três partes. Visitaram numa das salas principais as barbaridades do massacre de Batapá, em 1953, cometidas contra a população negra revoltada pelos abusos do poder colonial português. “A ferida civilizacional abriu-se e cada um de nós, percorrendo o museu, sentiu-se confrontado com os atuais fantasmas malignos da História de Portugal – a escravatura, a exploração económica, o esmagamento da cultura negra. Pena foi que quando a Europa se pacificou e descolonizou, não a tivéssemos acompanhado, assumindo a nossa condição de verdadeiros colonialistas logo a seguir à II Guerra Mundial”. E tece considerações mais alongadas sobre a Rota dos Escravos e a respetiva economia, enfatiza a importância do açúcar para a transferência compulsiva de milhões de africanos transferidos para o continente americano, mas não esquece que tudo começou na Madeira (onde não houve escravos na plantação) e depois São Tomé, mais tarde as plantações brasileiras. Estimam-se em cerca de 13 milhões os africanos da sua terra natal e forçados a colonizar a América ao longo de cerca de 400 anos. A compra de escravos tornou-se um investimento vultuoso. No final dos tempos de escravatura, o tráfico negreiro transportava sobretudo crianças e adolescentes, tentando prolongar-lhes a vida ao máximo e reproduzindo-os em uniões forçadas (os criatórios). “Com a plantação do açúcar no Brasil e nas colónias espanholas da América Central, nasce uma nova economia de âmbito internacional, preparando a futura globalização do mundo: mão-de-obra africana, vastas terras americanas e organização e capitais europeus. Nesta fase, Madeira, Cabo Verde e São Tomé tinham abandonado a sua antiga importância colonial, as duas últimas limitavam-se a ser entrepostos de escravos”.

E o grupo prossegue viagem, visitará roças, algumas delas em completa ruína. O autor vai fazendo citações sobre a importância das carreiras de escravos, como São Tomé, São Jorge da Mina, as feitorias da Guiné e adianta uma referência: “Colónia açucareira e plataforma giratória da frota negreira, São Tomé reexporta para a América Portuguesa indivíduos mais resistentes às doenças europeias ou oriundas do litoral africano, falando a ‘língua de São Tomé’. Para o colonato são-tomense, traficar negros torna-se mais interessante do que plantar cana. No início do século XVI a ilha contava com 2 mil escravos fixos e de 5 a 6 mil itinerantes à espera de embarque para outros mercados. Nos anos seguintes, os são-tomenses passam a fazer o trato entre Benim e a Mina ao mesmo tempo que puxam os mercados do Congo para o sistema atlântico”. São elementos retirados de um historiador brasileiro, Luís Felipe de Alencastro.

E o autor volta a fazer uma citação, desta vez retira-a do livro A Manilha e o Limbambo, A África e a escravidão de 1500 a 1700, do embaixador Alberto da Costa e Silva, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2002: “São Tomé mostrou um rápido progresso. Era todo um êxito como centro experimental do que viria a ser a colonização e a exploração europeia nos trópicos húmidos. Ali faziam-se ensaios com gente, plantas, animais, formas de trabalho e fontes de lucros. Ali testavam-se novas maneiras de tratar a terra, de adaptar os vegetais importados, de organizar a mão-de-obra servil e dela retirar o maior proveito possível, de unir numa só classe proprietários da terra e comerciantes, de fazer dos mestiços intermediários entre senhores e escravos”. Visitam as roças, ficam assombrados com o folclore, e era inevitável assistir à peça Tchiloli representada pelo grupo de teatro Formiguinhas da Boa Morte, o grupo representou o seu espetáculo maior, a Tragédia do Imperador de Mântua e do Imperador Carlos Magno, inspirado no auto do século XVI do dramaturgo cego madeirense Baltasar Dias, da Escola Vicentina. Para além desta tragédia do Marquês de Mântua, o grupo tem em cartaz a Tragédia do Capitão Congo e o Auto da Floripes, peças provindas dos séculos XVI e XVII. A descrição das roças é de grande beleza.

E partem para o Museu das Artes e Tradições do Gabão, Miguel Real aproveita para comentar a similitude de instrumentos musicais africanos e brasileiros, a miscigenação do animismo africano com a doutrina cristã e lança-se depois numa narrativa sobre a chamada Passagem do Meio (travessia do Atlântico), o escravo depois de capturado era acartado num batel para o navio veleiro e daqui transportado para a América. Chegado a uma outra realidade, o escravo conhecia os rudimentos da religião cristã, aprendia uma nova língua, era enquadrado numa atividade laboral intensa, adaptava-se a um novo regime alimentar. De novo o autor destaca a mortalidade no decurso destas viagens, a seleção feita nas feitorias por mestres negreiros, embarcado cada um para o seu lugar de trabalho, o pai podia ir para o Recife, a mãe para Hispaniola, o filho para a Jamaica e a filha para a Virgínia, nunca mais saberiam uns dos outros. Visitam Cotonou, uma das mais importantes cidades do Benim, embrenham-se nos cheiros africanos, na cor dos mercados, dá-se uma pitada de História. “Diferentemente de S. Tomé, o Benim possuía já uma História milenar antes dos portugueses aportarem ao Golfo da Guiné na segunda metade do século XV. Presume-se ter sido João de Santarém e Pêro Escobar que, ao serviço do mercador Fernão Gomes, teriam pela primeira vez navegado pelo litoral do atual Benim, embora Rui de Pina afirme ter sido João Afonso de Aveiro, em 1484. As primeiras amostras de malagueta africana terão vindo do Benim para Lisboa, que as reenviaria para a feitoria da Flandres, iniciando assim um comércio intenso que conduzirá à designação inicial da Costa do Benim como Costa da Malagueta, posteriormente substituída por Costa dos Escravos”.

E fala-se do vodu, admite-se que mais de metade da população dos países do Golfo da Guiné e quase 80% das comunidades rurais da região o praticam, independentemente das regiões monoteístas que aqui se implantaram, a população continua a adorar os seus deuses primitivos. A palavra vodu significa potência invisível ou em português espírito. Os vodus são os espíritos que tomam conta das forças naturais. Retomando a história, Portugal foi dos poucos países europeus com fortes contactos com o reino do Daomé, hoje incluído no Benim. Desde o século XV, traficando malagueta, marfim, algum escasso ouro, depois escravos, em troca de ferro, tabaco de baixa qualidade, vidro, sedas e cetins, armas, pólvora e muita quinquilharia. “Até ao século XVII, a forte procura dos escravos situa-se na zona Norte do Golfo da Guiné, entre os atuais Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau e Guiné Conacri, e na vasta região entre o Congo e Angola com o transporte dos escravos feito por S. Tomé e Cabo Verde. É a partir de inícios do século XVIII que a Costa da Malagueta é amplamente buscada por europeus, pela compra e venda de escravos, instalando-se então no litoral do Daomé feitorias (sem a imponência do Forte de São Jorge da Mina) por Portugueses, Franceses, Ingleses e Dinamarqueses que passaram a abastecer de negros os mercados de escravos de toda a América".

E o autor, em 9 de setembro de 2004, por aquelas terras de Benim, passa à reflexão:
“Aqueles de entre nós que conhecem o Brasil sabem que a terra que hoje pisam constitui o berço cultural e social de mais de metade do povo brasileiro e que os veios nervosos de grande parte da atual cultura brasileira radicam-se nos costumes religiosos, gastronómicos e antropológicos desta vasta região, da Nigéria ao Togo e à Senegâmbia, tendo como centro ativo os diversos cais de embarque da costa do Benim, mormente de Ajudá, Onim e Porto Novo. Da religião das etnias do Benim nasceu o vodu jamaicano, antilhano e haitiano, e o candomblé brasileiro, da sua alimentação nasceu a moqueca e o acarajé brasileiros, das festas religiosas e dos instrumentos musicais de iniciação vodúnica das etnias fon e ioruba nasceram o agôgô, os atabaques, o berimbau, e do panteão dos seus deuses nasceu o panteão dos orixás”.

O passo seguinte é a visita a S. João Baptista de Ajudá, que foi recuperado pela Fundação Calouste Gulbenkian na década de 1990. Com o país independente, em 1960 dirigiu-se ao regime de Salazar o abandono do forte, o ditador mandou incendiá-lo. E vem a descrição: “O forte, de um quilómetro quadrado de área, construção de 1721, foi transformado em museu histórico de Ajudá em 1967. Dependente do governador de São Tomé e Príncipe, depois integrado no vice-reinado do Brasil e, ainda, durante o tempo do consulado do Marquês de Pombal dependente da Companhia Geral de Cabo Verde e Rios de Cacheu, o forte atravessou um conjunto de vicissitudes, ao longo dos séculos XVIII e XIX, que espelham bem a política colonial portuguesa para África, apenas interessada, até ao Ultimatum inglês de 1890 na exploração das riquezas costeiras, sobretudo escravos, ao mais baixo custo possível, totalmente divorciada de uma política de povoamento (…) O forte, ainda que formalmente português, viveu sempre em profunda dependência dos caprichos dos reis do Daomé, tendo sido inúmeras vezes assaltado e os seus diretores presos e expulsos de Ajudá consoante os interesses dos régulos e a quantidade de prendas que os portugueses lhes ofereciam em armas de fogo e pólvora, rolos de panos de seda e cetim e barricas de aguardente”.

Importa dizer que o grande tráfico de escravos sob a bandeira portuguesa iniciou-se ainda na primeira metade do século XVIII e centrou-se nos embarcadouros de Ajudá, de Porto Novo, Jaquim e Onim, todos perto do primeiro. É altura de falar de um escravocrata lendário, Francisco Félix de Sousa, que fora antecedido pelo negro João de Oliveira como atravessador de escravos entre África e o Brasil, este João Oliveira notabilizou-se como exportador para Pernambuco, Baía e Rio de Janeiro, é do seu tempo a introdução do negócio das folhas de tabaco como material de permuta por escravos. Falemos então de Francisco Félix de Sousa.

(continua)


São Tomé e Príncipe, estátua dos descobridores
Fortaleza de S. João Baptista de Ajudá, Benim
Entrada da Casa dos Escravos, Ilha da Goreia, Senegal
____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22746: Historiografia da presença portuguesa em África (291): O estudo "Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o Comércio Negreiro Espanhol, 1640-1650", por Maria Luísa Esteves; Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1988 (Mário Beja Santos)

3 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Éramos terríveis, os portugueses, a escória da humanidade, esclavagistas do pior. Mas depois tudo se explica: "O forte, ainda que formalmente português, viveu sempre em profunda dependência dos caprichos dos reis do Daomé, tendo sido inúmeras vezes assaltado e os seus diretores presos e expulsos de Ajudá consoante os interesses dos régulos e a quantidade de prendas que os portugueses lhes ofereciam em armas de fogo e pólvora, rolos de panos de seda e cetim e barricas de aguardente”.
A facilidade com que Miguel Real e Mário Beja Santos desentendem o mundo.É este o blogue que temos.
Abraço,

António Graça de Abreu

antonio graça de abreu disse...

Éramos terríveis, os portugueses, a escória da humanidade, esclavagistas do pior. Mas depois tudo se explica: "O forte, ainda que formalmente português, viveu sempre em profunda dependência dos caprichos dos reis do Daomé, tendo sido inúmeras vezes assaltado e os seus diretores presos e expulsos de Ajudá consoante os interesses dos régulos e a quantidade de prendas que os portugueses lhes ofereciam em armas de fogo e pólvora, rolos de panos de seda e cetim e barricas de aguardente”.
A facilidade com que Miguel Real e Mário Beja Santos desentendem o mundo.É este o blogue que temos.
Abraço,

António Graça de Abreu

Valdemar Silva disse...

O vento é analfabeto e arranca as rosas dum jardim, não sabe ler 'É proibido colher flores'.

Valdemar Queiroz