segunda-feira, 23 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23285: Notas de leitura (1448): “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, trabalho dos alunos do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Não sei como hei de exprimir a minha perplexidade diante de documentos como este que encontrei entre as centenas de obras que a Biblioteca Nacional alberga sobre aquela nossa guerra. Jovens de um externato da região de Braga meteram-se ao caminho para apresentar um trabalho sobre memórias da guerra colonial, uma exposição que ocorreu na Fundação Calouste Gulbenkian em 1995: leram depoimentos numa companhia de caçadores, sobre orientação de um professor conversaram com antigos combatentes, esse mesmo professor falou com quem esteve no anexo do Hospital Militar Principal. Quantos trabalhos como este existirão, totalmente ignorados da opinião pública e dos investigadores? Como se podem recuperar estas pesquisas que podiam ser úteis à nossa juventude? Não tenho resposta, acho que o assunto merecia ser ventilado aqui na nossa sala de conversa.

Um abraço do
Mário



Os dias da guerra da Guiné dos nossos avós

Beja Santos

Não é a primeira vez que vemos o nome do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) ligado a pesquisas sobre guerra colonial, o blogue já acolheu referência deste estabelecimento de ensino. Encontrei na Biblioteca Nacional este documento, trabalho dos alunos apresentado na exposição “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, que se realizou na Fundação Gulbenkian por ocasião do I Encontro Nacional sobre Stress Traumático, outubro de 1995. Fala-se na documentação da CCAÇ 2465, que desenvolveu a sua ação na Guiné entre fevereiro de 1969 e dezembro de 1970. Sob o título “Retalhos de uma guerra”, diversos elementos desta unidade militar, em novembro de 1970, registaram as suas vivências, os seus sentimentos, os momentos de cooperação com as populações locais. A CCAÇ 2465 construiu 180 casas novas para guineenses, uma escola, um posto sanitário, dez poços com bomba manual, abriu seis arruamentos e edificou trincheiras para defesa da população. Os alunos do Externato Infante D. Henrique extraíram desse documento alguns textos e tiveram acesso a correspondência estabelecida entre os militares e as famílias ou as namoradas, o seu trabalho de pesquisa culmina com um texto sobre o anexo militar de Lisboa. Estiveram em Bissum, participaram em muitas operações e patrulhamentos. Aqui se retém o que se escreveu sobre a Operação Bastilha:
“Cerca das nove e trinta da noite, deu-se a partida. A noite estava terrível, escuríssima, e não se conseguia ver nada à nossa frente, o terreno era escorregadio. Mas com todas estas dificuldades, lá fomos andando. Alto do Chopundo, palmeiral do Tebedé, Pojute, Lulu, Insumeté e estrada de Binar. Aí redobrámos todas as precauções, pois que, segundo as previsões, o acampamento inimigo estava perto. Cerca de dois quilómetros percorridos, o guia recusou-se a dizer onde era o acampamento, que não sabia onde era, dizia ele. À força de ameaças, lá continuou e meteu-nos por um trilho pelo lado direito da estrada. A progressão fazia lentamente e com a mão agarrada ao cinturão do companheiro da frente. Houve uma paragem e quando os olhos se habituaram à escuridão, vimos que estávamos mesmo no meio do acampamento inimigo. Eram cerca das quatro horas da manhã. O nosso capitão mandou recuar, pois o pessoal vinha desorganizado por causa da escuridão. Acenderam-se as pilhas e, então, vimos que o acampamento estava abandonado. Inspecionámos as tabancas, tirou-se o que era útil, deitámos fogo e saímos dali o mais depressa possível”.

Alguém escreve uma tocante homenagem ao enfermeiro:
“Enfermeiro que estás vigilante, o teu coração vive numa ânsia desesperada, pois aguardas a todo o momento a súplica de alguém que padeça. Tu que passas noites e noites em claro, que sabes guardar no teu coração todos os queixumes, os prantos e súplicas, olha para o mundo e diz-lhe quanto vales, quanto sofres para o ganho de todos. Já te vi muitas vezes cansado mas nunca adormecido. És um homem louvado e querido, ostentas orgulhosamente uma bata branca e tens um nome de enfermeiro”.


O que se escreve sobre o anexo militar, sito na Rua Artilharia 1, que a minha irmã frequentou todos os sábados a partir dos finais de 1968 até eu regressar a Lisboa, em agosto de 1970, continua discretamente silenciado. Alguém depõe para os jovens do Externato Infante D. Henrique o que se passou em 17 de janeiro de 1973, no aquartelamento de Encheia. Tentara-se um golpe de mão e quem conta a sua história, o furriel Maia, recebeu um tiro que o atingira com muita gravidade no cérebro. “Inicialmente era um caso perdido, a perfuração de sete centímetros de uma bala no cérebro provocou perda de massa encefálica. Permaneci dois dias estendido numa pedra da morgue de Bissau entre caixões com mortos e com uma placa de identificação em madeira atada a um dos tornozelos. Como decidiram enviar-me para a metrópole e descobriram a hipótese de sobreviver, desconheço. Sei que viajei no porão de um avião civil até ao Hospital da Estrela. Acordei no quarto n.º 14 em neurocirurgia. Este hospital tinha algumas caraterísticas diferentes das outras unidades de saúde civis: os seus utentes eram exclusivamente combatentes. Fui sujeito a várias intervenções muito delicadas e foi-me traçado o seguinte quadro clínico: hemiplegia que me afetou todo o lado esquerdo. Começou/continuou o meu sofrimento através do segundo e terrível local de saúde militar de Lisboa, o famoso anexo conhecido em linguagem popular pelo Texas.

O edifício era murado, havia vários pavilhões (alguns eram pré-fabricados). Nestes pavilhões de sofrimento humano, esta juventude continuava a guerra contra a má sorte, os traumas da guerra, vendo-se amputados dos membros superiores e inferiores, cegos, doentes com distúrbios mentais, paraplégicos, tetraplégicos, queimados, múltiplas amputações, doentes pulmonares… Quem podia, dava uma volta pelos arredores mas sempre à civil. Passava-se o tempo no bar a jogar às cartas, a ver televisão ou a ler. Toda a limpeza deste enorme complexo era feita por civis. A infiltração de prostitutas no Texas era frequente”
.

O organizador deste texto sobre anexo é José Manuel Lages, nome que é referido no nosso blogue, foi elaborado com base em depoimentos recolhidos junto de militares anónimos que por força da guerra foram cair no anexo militar. É um rol de tragicomédia, de cenas acabrunhantes, brincadeiras macabras: cegos a tirarem o olho de vidro e porem em cima da mesa do refeitório, os profissionais especializados em produzir ou arranjar autorizações de saída a troca de alguns cobres, as brincadeiras com as deficiências de cada um… Termina o trabalho dizendo que à data o anexo ainda albergava combatentes que ali ficarão depositados até à morte.

Pega-se neste documento elaborado por jovens, vêem-se as fotografias, os poemas de amor, os depoimentos sobre as operações, a descrição orgulhosa de Bissum, aquela terra e a sua gente e fica-nos a pergunta sem resposta: Por onde andarão muitos outros trabalhos assim feitos por gente com a idade dos nossos netos, relatos de memória discretamente arquivados, sem acesso a outros jovens, e por igual razão sem acesso aos investigadores?

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23280: Notas de leitura (1447): “Guiné-Bissau, dos povos à nação, uma longa marcha de sofrimento”, por Malam Sambú; edição de autor, Macau, 1999 (Mário Beja Santos)

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