IN MEMORIAM
Ana Luísa Amaral (Lisboa, 1956 - Porto, 2022)
© Adão Cruz
PARA ANA LUISA AMARAL
Como a vida te apagou, também apaguei o teu e-mail.
Lá para os confins do mundo molecular do Universo, não tenho possibilidade de comunicar contigo, mas irei falando para mim mesmo sobre tanta coisa que deixaste.
Aprendi com outros e também contigo que a cultura tem de fazer parte integrante da estrutura do ser humano, da sua solidez e profundidade, da sua autenticidade, da sua verdade e da sua intrínseca sabedoria.
Aprendemos que a cultura com que te irmanaste e que cedo a morte ceifou é construída através da vida como qualquer mecanismo de adaptação, mas apenas quando assenta nos fortes alicerces do conhecimento científico e na aprendizagem dos emaranhados mecanismos neurobiológicos da mente criativa.
Também aprendemos que a verdadeira cultura, a cultura do saber autêntico, a cultura do ser são indissociáveis da nossa língua e de toda a linguística onde sempre foste mestra.
Como todos sabemos, a língua não é apenas um mero instrumento de comunicação, mas uma parte inseparável do todo que somos e da riqueza anímica que construímos.
Um bom perfume deve ser sentido como parte integrante da personalidade de uma mulher e não como um cheiro. Uma boa decoração deve ser sentida pelo bom ambiente, pelo conforto e bem-estar que cria e não por dar nas vistas apenas pelo estilo e pela configuração dos objectos.
A cultura não é um enfeite, uma cosmética, uma roupagem mais ou menos vistosa, nem pode ser confundida com a cultura-folclore, com a prolixa cultura política ou com a cultura do enciclopedismo balofo dos nossos dias.
Adeus Ana Luisa. Guardarei como recordação o difícil livro que me aconselhaste: PAISAJES COGNITIVOS DE LA POESIA, de Amelia Gamoneda e Candela Salgado Ivanich
adão cruz
____________
Nota do editor
Último poste da série de 6 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23501: In Memoriam (443): Maria Aldina G. O. Marques da Silva (Fafe, 1946 - Lourinhã, 2022), esposa do Jaime Silva (ex-alf mil paraquedista, BCP 21, Angola, 1970/72): o funeral é em Fafe, amanhã, domingo, às 12h00
6 comentários:
Cada vez mais aprecio e me espanto com a sensibilidade, a poesia e, principalmente (!), a pintura do Dr. Adão Cruz.
Alberto Branquinho
Testamento
por Ana Luisa Amaral
Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos
Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas
Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.
https://www.escritas.org/pt/t/9843/testamento
(Com a devida vénia...) (A poesia tem que se partilhar, e chegar a todo o lado. Há fome de poesia no mundo.)
Caro amigo Adão Cruz
Já por algumas vezes tenho referido que não me sinto capaz de comentar poesia.
Falta-me a sensibilidade dos poetas.
Mas sei que gosto ou que não gosto.
E, realmente, embora não comente, aprecio os poemas com que nos presenteias e, socorrendo-me do que escreveu o Branquinho, também me tem impressionado as diversas pinturas ilustrativas.
Hoje por hoje, impressionou-me esta homenagem à falecida poetisa Ana Luísa Amaral.
Hélder Sousa
A não perder... Grande, grande entrevista!... Ana Luisa Amaral, RTP 3, 6 de Agosto de 2022, 23h00, programa Grande Entrevista, Ep 29, por Vítor Gonçalves...
Programa gravado a 27 de juklhio, se não erro, uma semana antes de morrer, a 5 do corrente...
Um dos poemas que ela leu (premonitoriamente?) foi justamente o Testamento, dedicado à sua filha, e já aqui reproduzido.
https://www.rtp.pt/play/p9766/grande-entrevista
Laura Fonseca, Porto (By email)
8 ago 2022 20:14
Olá, Luís
Ainda não digeri a morte deste grande ser humano, poeta, colega, mulher de causas e também de algum relacionamento pessoal, feminista, académica de excelência. Partilhei com ela, nos anos 1990/2000(?), a direção da APEM (Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres). Estava ainda no início do seu reconhecimento poético e no final do seu doutoralmente. O que nós partilhávamos e apreendíamos!!!
Na verdade, o teu amigo Adão Cruz faz um texto belíssimo, que exprime bem o que penso e sinto em relação a esta mulher: tão culta, tão solidária, tão inquieta e subversiva perante os problemas humanos. E fazio-o sempre e tinha sempre tempo, com a sua presença, a sua poesia.
Admirava a sua cultura, o seu empenho, o caminho de maturidade poética que estava a trilhar, sem perder o pé na terra nas pequenas e grandes coisas. Ana Luisa adorava partilhar o seu trabalho, fazer e dizer poesia, divulgar o trabalho de outras mulheres e homens. Não se cansava de dizer sim e ser generosa com tudo o que fosse errado para as pessoas e natureza neste mundo.
É uma pessoa que nos deixa muito. Mas é também uma pessoa que nos vai fazer muita falta, ao mundo, ao país, ao Porto, à academia, à ciência, ao movimento cívico e político, aos amigos e à sua adorada filha Rita sempre sua companheira e sua inspiração de amor e de humanidade.
Obrigada, Ana Luísa, obrigada, Adão Cruz, pelo seu maravilhoso texto de homenagem.
Os poetas são artesãos da palavra.
Através da pintura escrevem-se poemas.
O camarada Dr. Adão Cruz continua a deliciar-nos com as cores e os traços dos seus escritos.
Que o faça por muitos e bons anos!
Obrigado
Eduardo Estrela
Enviar um comentário