Queridos amigos,
Antes do António Estácio partir em 2006 para Bissau, numa daquelas conversas espúrias em voz baixa num recanto da biblioteca da Sociedade de Geografia, fiquei a saber quem era Nha Carlota, nem ela a conheceu pessoalmente nem me foi referenciada nas minhas passagens por Bissau. Reli empolgado a sua inquirição em vários lugares da Guiné onde foi encontrar testemunhos sobre esta negociante que se distinguia por receber em sua casa, em Nhacra, quem quer que lhe batesse à porta, ao cheiro dos seus petiscos, tudo gratuíto, os amesendados só pagavam as bebidas. Uma longa história de negócios e como nos romances mantém-se no mais completo dos segredos a sua vida privada desde que chegou à Guiné, em 1911, até ter casado em finais de 1936, com um antigo empregado, companheiro até ao fim dos seus dias. Um nome que se tornou uma lenda, pela generosidade e afabilidade, leem-se os testemunhos de quem a conheceu e não é difícil perceber a reverência pela Senhora de Nhacra. Que bonito gesto, o do António Estácio, deixar cinzelado no seu tão belo testemunho, a história desta mulher.
Um abraço do
Mário
Gratas recordações do confrade António Estácio:
Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Carlota
Mário Beja Santos
Não sei exatamente se foi em 2005 ou no princípio de 2006 que a subir a escada que dá acesso à Biblioteca da Sociedade de Geografia o António Estácio dá-me a seguinte notícia: imagina que vou a Bissau, recebi apoio para investigar um pouco mais sobre a Nha Carlota. Surpreso, perguntei-lhe quem era a dita. “Nunca foste comer a canja de ostra a Nhacra, em casa da Nha Carlota? Havia ali a melhor cozinha da Guiné, era a senhora mais conceituada da região, com grandes negócios, era ela quem arrematava tudo, o marido ficava atrás, era lendária a sua generosidade”. Ficámos por aqui, cada um foi à sua vida, uns bons meses depois voltou e disse-me que se entregava de alma e coração a pôr todos os seus apontamentos em forma de livro. E em 2010 ofereceu-me Nha Carlota, Carlota Lima Leite Pires, edição sua. Como oportunamente escrevi em recensão aqui feita, era mais uma prova do deslumbramento do António Estácio por pessoas devotadas à sua terra natal e que se tinham distinguido por praticar o bem. Ele replicava escrevendo uma narrativa em sua memória. E esta é digna de pedra mármore.
Muita investigação, bateu à porta de muita gente, foi bem acolhido no essencial, e deixa-nos uma Nha Carlota a roçar a intemporalidade. Não esconde a profunda admiração pela biografada: “É bem o arquétipo de alguém que, oriunda de Cabo Verde e moldada pela dura escola da vida, atingiu invulgar notoriedade na Guiné, onde viveu cerca de seis décadas.” Era conhecida por Nha (Senhora) Carlota do Cumeré ou de Nhacra, visto ter tido negócios em ambas as povoações. Sabe-se que faleceu no Hospital da Parede em setembro de 1970, fica por apurar de que tipo de fratura foi ali tratar, segundo o médico terá sido de fratura do colo do fémur, que obriga à imobilidade e suscita problemas cardíacos.
Já estaria casada com João José Pires em finais de 1936, mas teve uma filha e um filho antes do casamento com este seu antigo empregado. É suposto que tenha nascido em 1889, o António Estácio visitou o cemitério de Bissau e lá fez as suas deduções para chegar a esta data. Era natural de Santo Antão, terá chegado à Guiné em 1911, ela teria então 21 ou 22 anos. E descreve-a: “Alta e de tez clara, constituía uma bela figura, direi mesmo imponente, cujo resoluto olhar irradiava uma grande determinação. A opinião pública é unânime em realçar-lhe a simplicidade no convívio e a hospitalidade, bem patente na lhaneza do seu trato com que a todos recebia.” Era uma admiradora incondicional de Salazar, havia no seu espaço íntimo uma fotografia do ditador, poucos se atreviam a chacotear o seu nome, e em casos tais ela pedia para as pessoas não voltarem. Altruísta, pródiga a ajudar quem precisava, célere a interceder em benefício de terceiros.
E vamos acompanhando a investigação testemunhal, sempre que necessário o António Estácio pôs-se ao caminho para ouvir depoimentos de quem com ela fez negócios, conviveu, recebeu conselhos ou era seu afilhado, deixou-os em grande quantidade. E há a ternura das imagens, naquela viagem de 2006 fez o possível e o impossível para obter imagens de Nha Carlota, que dá à estampa na sua bela narrativa. Quando chegou a luta armada, a sua vida social foi sujeita a grandes alterações, apoiava primordialmente os militares sediados em Nhacra, continuava a abastecer-se em Bissau, viajava através do Impernal na maré-baixa, sempre acompanhada por dois guardiões balantas, a sua sombra, mas nunca ninguém a molestou.
Limito-me a discorrer sobre este texto que vim propositadamente reler à mesa onde ele se sentava, outra homenagem inequívoca não lhe sei prestar, mas seria impensável findar este punhado de recordações sem citar o final do seu livro:
“A ingratidão dos homens e a inexorável voragem dos anos tardam em prestar a merecida distinção. A postura assumida e reconhecida, permitiram-lhe ombrear com grandes vultos da sociedade guineense, pelo que a sua evocação se me afigura ser de elementar justiça. E, embora nunca com ela tenha privado, esta foi a forma que encontrei para lhe tributar o meu reconhecimento, lamentando não ter tido o engenho e arte suficientes para a enaltecer como merecia.”
Como estás enganado, António Estácio, o que há de mais cativante nessa viagem de 2006 foi este processo de enaltecimento completamente desinteressado a uma mulher de boa vontade, que parecia destinada a ficar exclusivamente na memória da tradição oral africana. E nesta secretária em que tanto labutaste já estão mais três livros para te referenciar, tu és credor de todo o nosso agradecimento.
Carlota Lima Leite Pires
____________Nota do editor
Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23536: In Memoriam (448): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (1): Um homem bom, um estudioso que ligou a China à Guiné, sua terra natal (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Esta figura feminina faz recordar outra grande senhora luso-guine-caboverdeana, Dona Berta que "matava a fome" aos cooperantes portugueses na célebre Pensão da Berta.
Esta fome que eu falo, existiu mesmo a sério em Bissau, no tempo de Luís Cabral.
Como pode ter chegado aquele ponto a ideia política de um Caboverdeano, quando sabemos todos que os caboverdeanos não são assim?
Enviar um comentário