1. Mensagem do nosso camarada Adão Cruz, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68), médico cardiologista, pintor e escritor, com data de 29 de Setembro de 2022:
O SENTIDO DO SANGUE
adão cruz
Ontem, estive com os dois da foto anexa, o Laranjeira à minha esquerda e o Ruca à minha direita, sentados à mesa. Na mesma mesa, além das respectivas esposas, o amigo António Dias e o Alves. Não nos víamos há cinquenta e três anos.
Ontem realizou-se o almoço de confraternização, no Grande Hotel Do Porto, ao fundo da Rua de Santa Catarina, da CART 1745, 67/69, da guerra da Guiné. Esta Companhia foi a última em que estive e que foi substituir a minha CCAÇ, a 1547, 1966/68, em Bigene, no norte da Guiné. Quando faltavam pouco mais de dois meses para a minha Companhia acabar a comissão e vir embora, o capitão recebeu uma ordem superior para ser realizada uma perigosa emboscada nocturna no corredor de Sambuiá, onde, eventualmente, iriam passar Amílcar Cabral e seus homens. A tão pouco tempo de vir embora, todo o pessoal, já fisicamente debilitado por quase dois anos de mato, foi psicologicamente ao fundo, compreensivelmente aterrorizado. Morrer agora, no fim? O comandante e eu éramos bastante amigos. Propus-lhe que enviasse um rádio para o Estado-Maior dizendo que o médico considerava a Companhia inoperacional, com o que ele concordou. Recebeu como resposta a mesma ordem, dizendo exigir-se um último esforço. O capitão voltou a responder, dizendo que o médico considerava muito difícil qualquer esforço. Tudo isto se passou durante uma madrugada inteira. Ao romper do dia, aterrou na pequena pista de Bigene um helicóptero trazendo a bordo o Comandante Supremo Arnaldo Shulz, o major-médico do serviço de saúde e um colega meu do hospital militar. Vinham fazer uma inspecção à Companhia. Soube mais tarde que me valera a razão, de outra forma teria ido parar à pildra. A companhia foi dada como inoperacional e iria ser substituída pela CART 1745, com a qual, ou melhor com os poucos elementos que dela restam, eu almocei ontem, no Grande Hotel Do Porto.
Numa tempestuosa noite, no minúsculo cais do Rio Cacheu, deu-se a rendição das Companhias. A minha embarcaria rumo a Bissau, após o desembarque da CART 1745, comandada pelo Capitão Miliciano, Torre do Vale. Na altura da troca, este novo comandante recebeu um rádio dizendo que embarcava toda a Companhia menos o médico. Não é fácil descrever, quer da minha parte quer da parte dos soldados e oficiais, a onda de emoção, tão torrencial como a chuva. Com lágrimas de raiva, recusei-me a ficar. O Capitão Torre do Vale, mais tarde um grande amigo, infelizmente já falecido, muito amavelmente fez-me ver que era uma ordem superior à qual não podia desobedecer e que seria obrigado a prender-me, se eu insistisse. Uma mesquinha e inesquecível vingança do Estado-Maior, pelo meu atrevimento!
Estes almoços, como o de ontem e outros em que estive, sobretudo da minha CCAÇ 1547, não são almoços que possam assemelhar-se a ouros quaisquer. Não sei dizer o que sentimos. Trata-se de um sentimento muito específico, um sentimento difícil de definir, um sentimento de tristeza e alegria, um sentimento muito enraizado de unidade, de irmandade, de cumplicidade que está para além do natural sentimento da amizade. De Saudade não será, mas é um sentimento que arranca cá do fundo uma espécie de estranha nostalgia, um rebuscar no fundo do tempo o sentido do sangue que nos corria nas veias, a memória de todos os medos e fraquezas, uma sensação de perda profunda que até hoje aceitámos como vitória e que nos trouxe a um futuro do qual nunca saberemos o valor. Sabemos apenas que sem essa perda e essa vitória, sejamos nós quem formos, nunca seríamos quem somos.
Mantive-me nesta nova Companhia os quase três meses em que, por direito, devia estar em Bissau, descansadamente, a beber umas cervejas. Quando vim embora, o último abraço, já sentado na avioneta, foi-me dado, de forma bem apertada, pelo meu caro Ruca. Pouco tempo depois de chegar a Portugal, soube por um dos muitos amigos nativos que lá deixei, que o “alfero” Ruca tinha perdido uma perna.
Ontem, felizmente, reconheci que o tal abraço não fora o último, pois ao fim de cinquenta e três anos, o que não faltou neste almoço foram abraços. Ao fim da tarde, não me despedi sem perguntar ao meu caro Ruca: olha lá, Ruca, tu que eras um rapazinho de vinte e poucos anos, por acaso muito bonito, com um prometedor séquito de namoradas, como é que lidaste no teu futuro com as mulheres? O Ruca respondeu, sorridente: olha, meu caro Adão, tinha uma prótese e as próteses, na altura eram tecnicamente pouco evoluídas. Eu via-me à rasca para camuflar o melhor que podia, até ao terrível momento de dizer à namorada que só tinha uma perna.
O Larangeira à esquerda e o Rogério Silva (Ruca) à direita
____________Nota do editor
Último poste da série de 21 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23635: Convívios (940): Um total de 72 inscritos no 49.º almoço-convívio do pessoal da Magnífica Tabanca da Linha, amanhã, quinta feira, dia 22/9/2022, em Algés, o que é um número muito bom depois do "longo inverno social" que foi a pandemia de Covid-19
4 comentários:
Os briosos militares que nos seus gabinetes decidiam as operações a executar, muitas vezes sem nenhum alvo em concreto mas tão somente para demonstrarem a crueldade de algumas das suas decisões, deviam ter alinhado nas tormentas do mato da Guiné para saberem o que era sofrer. Mas felizmente para alguns deles tal nunca sucedeu e muitas vezes acompanhavam as operações através do denominado PCV, que era para o PAIGC a melhor forma de localizar as nossas tropas no terreno.
A carne para canhão éramos nós.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela
Adão Cruz
Se esse Torre do Vale adorava tocar guitarra acompanhando os fadistas com notório prazer que contagiava, também foi do meu conhecimento. A última vez que o vi (há muitos anos) foi no "Retiro do Quebra Bilhas", ao Campo Grande, em Lisboa (que já não existe). Foi uma tarde de convívio, em que muita gente cantou.
Cptos.
Alberto Branquinho
Boa tarde, queria saber em que regimento a Cart 1745 foi formada, é que eu sou da 1742 daí a minha curiosidade.
Um abraço.
Acontecia as convocações para operações o mais absurdas possível. A minha companhia de Caç. 557 depois de ter entregue todo o material de guerra faltavam três dias para o embarque de regrsso a Portugal foi informada para ir ao cabo quarteleiro levantar todo o material de guerra para ir para apoio a uma operação dizia-se que a convocação era devida nossa experiência e conhecimento de guerra e do terreno.
Bem revolta total ninguém queria ir levantar o material de guerra, o que levou o capitão comndante da companhia a mandar formar a companhia na parada e tem mais ou menos estas palavras meus amigos e camaradas militares vós além de milicianos ainda são militares e uma recusa a uma ordem do CTIG terá como resultado todos para o forte de Elvas, Tarrafal ou coisa parecida, mas neste momento os que lhe posso garantir é que como vosso comandante se não fomos HERÓIS até aqui não é agora que o vamos ser, por o que lhes acabo transmitir bem no fundo do coração todos em marcha ordenada ao cabo quarteleiro levantem o vosso material de guerra e cito as minhas palavras que me custa repetir se não fomos heróis até aqui não é agora que o vamos ser. Ordem acatada por todos levanta-mos o dito material de guerra fizemos uma véstoria á pressa e durante a noite seguimos para a dita operação que nem sequer cheguei a saber qual o resultado final, pois a missão imcumbida á c.caç. 557 era de apoio á retaguarda, regressados a Bafatá na noite seguinte entrega do material de guerra no dia seguinte.
E no dia seguinte tomamos as camionetes mercedes para Bambadinca nem tempo para despedir dos amigos, em Bambadinca apanhamos o barco a Bor chegado a Bissau enfiados á pressa no navio Paquete Niassa que nos esperava ancorado já com a partida atrasada devido á nossa situação, ao largo pronto a partir. Foi assim a minha despedida da guerra porque dos amigos nem tempo nem autorização para o fazer. Abraço.
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