Foto cedida por Torcato Mendonça
1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló, que a morte infelizmente já nos levou, há 7 anos, em 2015, ainda antes de completar os 75 de idade. Os seus filhos, por sua vez, vivem (ou viviam até há uns anos) no Reino Unido.
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.
Dias depois, nova saída, para Buruntoni, no Xime. Saímos de Bissau, de barco, para o Xime.
Logo que chegámos, instalámo-nos no quartel, até ao fim do jantar. Forneceram-nos um guia e marchámos directos a Burontoni.Nesta operação [1], eu ia integrado na 3ª equipa, a meio do grupo. Toda a noite a andar, a corta-mato. Perdermo-nos já era uma sina, andámos, sempre com o guia à frente, sem darmos com o caminho que nos levava para o acampamento. Quando chegámos à zona, o sol ia alto, eram para aí 7h00 [2].
Encontrámos um rapazito de 8 ou 9 anos. Interrogado disse que ia para o campo de lavra dos pais. Sobre o acampamento da guerrilha que procurávamos[3], disse que ficava na outra margem do rio Burontoni. Seguimos até à margem. O alferes ia falando com ele, fazendo-lhe perguntas. Se o acampamento tinha pessoal, respondeu que nessa manhã, o Suleimane Djaló tinha avisado a população para abandonar o acampamento, porque tinha andado uma avioneta a sobrevoar e isso não era bom sinal, que podia acontecer qualquer coisa a todo o momento.
O alferes Saraiva passou para a frente e fomo-nos aproximando do local, onde julgámos que ela estava. Estava numa árvore. O alferes abriu fogo e ele caiu imediatamente. Corremos para ele, e quando lá chegámos já estava moribundo.
– Amadu, que vamos fazer ao puto?
– Levá-lo, meu alferes?
– Ele é turra, Amadu!
– O meu alferes tem mais formação e conhecimento que eu, mas parece-me que com esta idade, o menino não é inimigo nem amigo.
– Então, por que vivia no mato, Amadu?
– Porque os pais vivem no mato, meu alferes!
– E tu, o que queres fazer com ele, Amadu?
– Deixamo-lo no quartel de Bambadinca.
O capitão da companhia de recolha estava junto de nós. O alferes perguntou se eles queriam ficar com o miúdo. Negativo, respondeu o capitão. O alferes ficou a olhar para mim e eu disse:
– Levamo-lo connosco para o quartel. Se o meu alferes não quiser que ele fique no quartel, eu fico com ele na minha casa.
– Não tens mulher, como é que vais tomar conta dele?
– A minha irmã toma conta!
– Tens a certeza, Amadu? Fica à tua responsabilidade!
– Inteiramente, meu alferes.
Agarrei no menino e começámos a andar até ao Xime e depois para Bambadinca.
Em Bambadinca, eram para aí 18h00, estava um barco no cais, a preparar-se para partir para Bissau. Aproveitámos o transporte no barco que ia carregado com laranjas, limões, ananás, bananas, muita fruta. Mas não era o que nós precisávamos, o que nos fazia falta era uma refeição quente.
O barco levava também batata-doce e abóboras. O furriel Artur tinha só 5 escudos e o alferes, que tinha uma nota de 500 escudos, pediu para lhe venderem batata-doce e abóboras, ao preço que se vendiam em Bissau. A batata-doce era vendida ao quilo, a abóbora era conforme o tamanho. Começámos a pesar as batatas e ninguém no barco tinha troco. Então, nós dissemos que, logo que chegássemos a Bissau, no dia seguinte um de nós ia ao mercado pagar. Mas não aceitaram.
Então pedimos uma panela grande, descemos ao porão e pusemo-nos a cozinhar a abóbora que tínhamos comprado. Mas uma abóbora não dava para o grupo todo. Enquanto o cabo Cruz, sentado em cima de um saco, cantava fados, íamos roubando batatas, uma a uma. Quando o Cruz assobiava parávamos de tirar batatas e assim fomos enchendo a panela. Quando o cozido ficou pronto, chamámos o grupo todo para comer.
Eram para aí 21h00 quando acabámos. Quando chegámos a Brá, já depois da meia-noite, ainda comemos uma refeição quente, de peixe cozido e depois retirei-me para a minha casa.
Eu estava muito satisfeito comigo próprio e com o alferes. Assim que ele aceitou o meu pedido de ficar com o miúdo, que se chamava Malan Nanque [4], um companheiro europeu do meu grupo, o Mendes, que tinha apanhado uma maleta com quatro cortes de fazenda, ofereceu-ma para fazer roupa para o rapazito.
Agora, que estou a escrever e a recordar este episódio, tenho os olhos húmidos. Estou a ver o miúdo à frente da arma com a mão na nuca, a tremer todo, a olhar para o matador. Ele, o menino, tinha acabado de ver o alferes matar a sentinela e devia pensar que agora era a vez dele. (**)
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Notas do autor Amadu Djaló e/ou do "copydesk" Virgínio Briote:
[1] Nota do editor: “Vai à Toca”
[2] Nota do editor: 11 de Novembro de 1964
[3] Em Darsalame Baio
[4] O rapazito, Malan Nanque, biafada, mudou de apelido, para poder frequentar a escola. Passou a ser meu sobrinho e viveu com a minha família em Bafatá. Durante muitos anos ninguém da nossa família soube que o Malan Djaló era o miúdo que tinha sido capturado pelos Fantasmas, numa manhã de Novembro de 1964.
Anos depois, em 1973, levei-o a ver a mãe, em Bissau. Mas Malan continuou a viver na nossa casa. Uns anos mais tarde, já com a Guiné independente, deu aulas de português em quartéis do PAIGC. Casou, teve um filho, adoeceu e morreu pouco tempo depois no hospital de Bafatá. O único filho que teve, uma menina, também sobreviveu pouco tempo. Morreu, ainda não tinha dois anos.
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Notas do editor:
(*) Sobre o Mauricio Saraiva (1939-2003) e o seu Grupo Fantasmas, Vd.
Ver o que escreveu, sobre o Maurício Saraiva, o Luis Rainha, em poste de 31 de marco de 2010, no blogue Comandos Guine 1964 a 1966 (que deixou de estar dospinível na Net, não está sequer no Arquivo.pt, o que é pena: http://comandos-guine-1964a1966.blogspot.pt/ ):
(…) Não querendo menosprezar ninguém, até porque sou Comando Centurião, quero aqui afirmar que o Grupo Fantasmas foi de todos os Grupos formados e existentes na Guiné que mais louvores e condecorações teve. Teve um Chefe excepcional, que foi um belissimo condutor de homens, um guerrilheiro fantástico e um exímio estratega.
Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…) [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)
Sobre o seu comandante, com quem esteve nove meses (até Maio de 1965), e por quem nutria respeito, admiração e afecto, o Amadú Djaló é parco em pormenores, nomeadamente sobre aspectos, eventualmente mais controversos, do seu comportamento como homem e militar.
Aliás, ele é, quase sempre, de uma grande discrição e até deferência em relação aos seus "companheiros europeus" (sic). Só é crítico quando vê "europeu" a tratar, com menos respeito, bajuda e mulher grande...
Perante umn capitão manifestamente racista, que ele conheceu no CICA/BAC, em Bissau, em 1962 ("Preto é como tartaruga, só quando lhe chegamos fogo ao cu, é que tira cabeça!", p. 41), Amadú é condescendente, compreensivo e caridoso: "Pela minha parte, ele era um diabo, não era um ser humano. Um homem com tanta cultura, oficial do Exército Português, não deveria trata deste modo os subordinados", p. 41).
(**) Último poste da série > 16 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23790: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VIII: 1º Curso de Comandos do CTIG e imposição dos crachás em outubro de 1964... Grupo Fantasmas, do alferes 'comando' Maurício Saraiva
9 comentários:
Foi ele, Capitão Maurício Leonel Sousa Saraiva, dos militares Portugueses mais condecorados de todos os tempos e quiçá dos tempos vindouros. Este Homem, de H grande, grande Português e grande Patriota, ainda estava para sofrer os horrores da guerra não convencional. (…) [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)
Esta nota do editor confirma o que na altura em 1964 se comentava na Guiné embora sem dados reais "Coisas da guerra e da censura" sobre o carismático Alferes Saraiva, o que se comentava é que ele não tinha assistido aos actos selvagens sobre a família por estar a estudar não se encontrava na fazenda, os pormenóres pouco interessam e também poucos dos que hoje estão vivos o sabem e aqueles que o sabem não estão interessados em prestar declarações na praça pública, eu próprio já fiz a pergunta a um camarada dele e a resposta foi um: "NÃO isso não é verdade" e que era um assunto da esfera pessoal.
Zé, obrigado pelo teu comentário... Uma ressalva: " [Era] um homem tremendamente marcado pela guerra em Angola, onde assistiu à morte de Familiares seus. (…)"
Quem escreveu não foi o editor do poste, LG, mas sim o Luís Rainha, contemporâneo e camarada do Maurício Saraiva... O Rainha era comandante do Grupo Centuriões... Infelizmente deixámos de ter notícias dele...
Não temos muitas referências ao Maurício Saraiva (quem o conheceu foi também o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote)... Uma delas é do Gonçalo Inocentes (Matheos), membro nº 810 da nossa Tabanca Grande, fur mil at cav, CCAÇ 423 e CCAV 488 / BCAV 490, de rendição individual (1964/65), tendo passado por Bissau, Bolama, S. João, Ponta de Jabadá, e Jumbembem, angolano como Saraiva, tendo nascido 1940, em Nova Lisboa (hoje, Huambo, Angola), hoje reformado da TAP e a viver em Faro.
(...) Pormenor delicioso: durante a viagem, no DC6 (carregando "carne para canhão", homens para a guerra no mato, mas também senhoras de graduados que iam para as "intermináveis sessões de canasta" de Bissau), o Gonçalo Inocentes conhece um outro angolano, o capitão 'comando' [Maurício] Saraiva, que não está com meias tintas, quando sabe o seu destino, e lhe dispara: "Estás fodido, pá. Tem um capitão que é uma merda e já tem uma mão cheia de mortos"... Referia-se à CCAÇ 423, que estava em São João (...)
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/09/guine-6174-p21339-nota-de-leitura-1303_10.html
Recorde-se o que aqui escreveu Virgínio Briote:
(...) O capitão Maurício Saraiva, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a Medalha de Valor Militar em Ouro, depois de duas cruzes de guerra, tinha metido o chico8, estava em Lisboa na Academia Militar.
Aproveitara as férias para vir a Bissau dar-lhes instrução operacional, e sair com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos do CTIG.
Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o Godinho, os irmãos Roseira Dias, o Miranda e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de uma ponta a outra.
Deixou fama pela forma como fazia a guerra, por vezes parecia encará-la como se fosse uma brincadeira. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.
Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram sérios problemas. (...)
9 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14857: Guiné, Ir e Voltar (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando) (V Parte): Brá, SPM 0418
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2015/07/guine-6374-p14857-guine-ir-e-voltar.html
Tenho vindo a seguir om muito interesse, como é natural, a transcrição do livro que o Amadú Jaló nos deixou.
A forma como o Luis Graça tem feito o trabalho de republicação acrescenta valor ao manuscrito que o Amadú foi fazendo.
Recordo um pormenor: a história do miúdo apanhado na zona de Burontoni, no escrito dele acabava secamente, "e veio connosco para Bissau". E tal como em muitas outras ocasiões, eu questionei-o. Amadú, é um daqueles miudos que anda por Brá? Não é? E aí ele foi contando, eu perguntando e batendo no teclado as respostas. E depois, etc...aconteceu muitas vezes e em algumas ele dizia não se recordar ou desconhecia o que sucedera depois.
Quanto ao Maurício Saraiva esse facto da família e tal, corria em Bissau, mas não há nada que o confirme. Corroboro o que o Zé Colaço diz acima. Não há nenhuma evidência que esse facto tenha ocorrido.
O Saraiva era um profissional da guerrilha e um excelente condutor de homens, embora alguns factos que ocorreram em algumas acções militares deixem alguma margem para reparos. O que não é de admirar, acontece a todos e aos melhores também.
Luís Graça, o blogue continua a andar, com quase 20 anos de idade (no nosso tempo já tinha sido incorporado), desta vez com os combatentes a serem eles a contar a história da guerra. E todos este imenso trabalho foi e tem sido feito por ti e pelo nosso Homem de Mansabá, o Carlos Vinhal, o melhor apontador que podíamos ter para esta batalha que ainda vai durar mais que a Guerra na Guiné.
Bem hajam!
V. Briote
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Caros amigos,
O Malam Nanque, se o apelido é verdadeiro não é Biafada, mas sim Pepel (Papel), embora, originalmente, este pudesse ser Biafada, se acreditarmos no mito de origem da tribo Pepel que os coloca como originários dos Biafadas (ver conto sobre a origem da tribo Papel). No entanto, como nós conta o António Carreira, os Biafadas encontravam-se desde meados dos Sêculos XVII/XIX num processo de transformação ou transição para uma mandinguização completa que nos anos 60/70 estava quase no seu estádio final, pelo que já ninguém ou poucos ostentavam os apelidos originais, preferindo os apelidos mandingas (Djassi-Sanha-Mané-Dabó-Biai etc.).
Cordiais saudações,
Cherno Baldé
E a confirmar-se que, de facto, o rapazito era Pepel e não Biafada estaríamos perante um enigma e assim quem de facto estaria a fazer figura de ingénuo seria o Amadú Djaló, pois que o rapaz, para todos os efeitos, era um proto(turra) porque vivia com eles e a sua presença numa região de onde não seria nativo era potencialmente suspeito e aí o Alfa. Maurício teria razão em considerá-lo como sendo "turra". Mas, numa coisa o Amadú Djaló tem razão:" uma criança não tem nem amigos nem inimigos" e o tempo acabou por lhe dar razão, pois que o Malam Nanque visitou algumas vezes a mãe em Bissau, de onde seria originário, mas não quis regressar ao mato (a zona) de onde tinha sido resgatado ela tropa.
Cherno Baldé
Quanto ao Maurício Saraiva esse facto da família e tal, corria em Bissau, mas não há nada que o confirme. Corroboro o que o Zé Colaço diz acima. Não há nenhuma evidência que esse facto tenha ocorrido.
Essa é a minha dúvida ?! As fontes que consigo são as de amigos e esses não confirmam, mas deixam que a dúvida persista.
Como é possível que estes "enigmas, boatos se mantenham sine die" se o Mauricio Saraiva era uma figura pública conhecida em Angola não consigo entender porque não é resposta a verdade nua e crua sim famíliares foram alvo de massacre, ou não isto é uma invenção de alguém para se fazer notado, e dizerem onde e como os seus familiares mais próximos viveram e onde estão sepultados.
Virgínio:
É muito interessante o que contas, aqui em jeito de confidência, para os nossos leitores, sobre o "making of" do livro do Amadu (que, originalmente, não passava de umas dezenas de páginas manuscritas, e que ninguém queria pegar)...
Em boa hora deste a mão ao Amadu, e ajudaste a escrever as suas memórias... As memórias são dele mas o livro acabou por ser escrito a quatro mãos, como tantos outros em que há um "copydesk"...
(...) Recordo um pormenor: a história do miúdo apanhado na zona de Burontoni, no escrito dele acabava secamente, "e veio connosco para Bissau". E tal como em muitas outras ocasiões, eu questionei-o. Amadú, é um daqueles miúdos que anda por Brá? Não é? (...)
E, claro, Virgínio, com esse clique "abriste as comportas"... Imagino que o Amadu, ao saber que estava a escrever para os seus camaradas europeus, e que o livro iria ser editado pela Associação de Comandos, tenha feito (ou tenha sido tentado a fazer) alguma "autocensura"... É normal, é humano...
O mérito é também teu, ao teres a "inteligência emocional" de dar-lhe a oportunidade de falar sobre essa situação tão constrangedora, para as NT, que era uma criança, no mato, como "prisioneira"... Houve mais casos, alguns já aqui relatados... e que são também exemplos de grandeza humana dos camaradas que os viveram...
(...) E aí ele foi contando, eu perguntando e batendo no teclado as respostas. E depois, etc...aconteceu muitas vezes e em algumas ele dizia não se recordar ou desconhecia o que sucedera depois.(...)
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