1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
Restos de uma saudade que se definha no tempo e onde a passagem pela Guiné deixou também as sua marcas
De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce
Porra! Desculpem-me camaradas por esta dicotomia de palavreado porque sou cidadão do Baixo Alentejo, natural da freguesia de Aldeia Nova de São Bento e oriundo de famílias humildes. Gentes que, modestamente, souberam laborar, com precisão, o” pão que o diabo amassou”. Não foram pessoas letradas, mas gentes que bem souberam, com o seu erudito conhecimento, distinguir “o trigo do joio”.
Com um dujbi a tirar água de poço em pleno mato
Na perceção de um antigo combatente, eu de carne e osso, fui um fruto oriundo de excelentes pomares, estes polvilhados de estrume de animais que me deram vida e que foi ganhando alicerces que me permitiram chegar à idade presente, 72 anos, e ser quem hoje o sou. O meu saudoso pai, Francisco Saúde, foi um dos militares que “guardaram” a fronteira entre Portugal e Espanha no tempo da guerra civil espanhola (1936). Dele, meu pai, recolhi excelentes ensinamentos que guardarei para sempre neste já débil corpinho.
A cédula militar do meu pai, com a sua impressão digital
Estamos em pleno século XXI, onde a voraz notícia se transmite facilmente com os meios tecnológicos de que facilmente cada um de nós dispomos. O tempo de irmos aos correios para contactarmos alguém telefonicamente, e que estava longe, era do tipo em que a telefonista lá colocava uma “cavilha” no seu “painel” telefónico, sendo que ouvir do outro lado da linha alguém, entretanto solicitado, obedecia a um demasiado tempo de espera. Ou enviar um telegrama, ou quando a notícia chegava através de uma telefonia, a pilhas, ou a chegada da televisão a preto e branco. Recordo, desses tempos, ouvir aquela trova do antigo regime quando a guerra rebentou em território angolano e que dizia: “Angola é nossa!”. Ora, eis que anos mais tarde o meu destino militar passou por conhecer uma das antigas províncias ultramarinas.
Hoje, porém, todo esse voraz passado dissipou-se nas auréolas do tempo, sabendo nós o quão difícil fora chegar ao momento presente, onde o poder tecnológico permite examinar o Mundo de uma outra forma pronta, ou seja, de fio a pavio, ou conhecer conteúdos de uma outra guerra, que sabemos que existe, em cima do acontecimento.
Sento-me ao meu computador portátil e lá vou debitando ideias que o meu coração me suscita, um coração que teima em bater, não obstante as delinquências sofridas ao logo da vida, mormente como protagonista de um antigo combatente numa Guiné a ferro e fogo. Sim, porque na verdade a vida, em toda a sua extensão, é uma ligeira passagem por este cosmo terrestre e o nosso final irreversivelmente certo.
Longe vão os tempos em que a “máquina” humana correspondia na sua totalidade. Agora… “emperrou”
Presentemente, a minha “máquina” acusa irreparáveis falhas que o tempo jamais recuperará, dado que as peças incriminam desgaste, o que é normal, e não usufruírem do deleite de uma retificação, ou da sua oportuna substituição. A tal “máquina” que sempre correspondeu aos meus imperecíveis desejos, mesmo quando fui um dos muitos camaradas da guerrilha em território guineense. Aquela velha “máquina” humana jamais recuou perante as adversidades surgidas. Ficaram as imagens que detenho e que viajarão comigo para a perpetuidade.
De uma juventude saudável a um envelhecer agridoce tudo foi rápido. Mas, fica para a história a nossa passagem por este planeta de onde colhemos excelentes momentos, sendo que existiram ainda outros piores, sendo o caso específico, e em particular, alguns dos instantes constatados na guerra de além-mar. Tudo, no fundo, fez parte das nossas vivências. Regressámos a solo lusitano vivos e sãos, sendo que os nossos corpos regressaram tal como partiram. Outros, infelizmente, não poderão partilhar da mesma filosofia de uma vida.
Pessoalmente parti, muito novo, da minha aldeia, Beja recebeu-me e conheci a algazarra de uma Lisboa deveras eletrizante. Nasci, após o fim da 2ª Guerra Mundial, à beira das searas e de um campo essencialmente marcado pelo prisma do literalmente saudável. Pelas ruas da minha aldeia, umas empedradas outras em terra batida, delineei os meus primeiros passos de vida. Vi mulheres com xailes pretos a tapar-lhes o rosto e parte do corpo, ou conterrâneas cujos xailes tinham um preceito que anunciava a presença de um filho na guerra colonial, os ranchos de homens que aos domingos percorriam o povoado parando às portas das tabernas e lá seguia o voluntário a caminho do taberneiro a comprar uma garrafa de vinho, trazendo consigo um copo por onde todos bebiam, enquanto os outros lá se lançavam em mais uma moda.
Assisti, ainda, ao abrir de valas cujas canalizações tinha como efeito que água canalizada chegasse a casa de quem o quisesse, ou a ida à bica comunitária situada no rossio, ou ao poço lobo. Recordo, com nostalgia, o tempo das matanças do porco. Da construção do depósito da água. O barulho de uma carroça, puxada por animais, a deslocar-se sobre as ruas empedradas. As aleluias com os moços, sempre em correria, andarem de loja em loja em busca de rebuçados, ou figos, de entre tantas outras brincadeiras de criança. Das profissões de então, sendo muitas delas agrestes. A luta das classes sociais. De homens que deixaram história. Do tempo que eu, com quatro ou cinco anos, fui “abarroado” pelos cães galgos do “Galdrapas” quando ao sair da taberna do meu tio Zé Torrão, rua do Sobral, se atiraram a mim e me “sacaram” uma sande que, entretanto, comia.
Dos jogos de futebol dos rapazes e do jogo do ringue das moças. O saltar aos “aviões”, do pau da lua ou do eixo. Memórias, embora sintéticas, que nos fazem viajar no tempo e que nos enviam para a nossa juventude. Ou uma ida aos ninhos lá para as bandas do monte do campinho onde o montado imperava e um barranco no qual as mulheres lavavam a roupa, ou uma ida para as califórnias, uma zona onde havia figos de qualidade. Beber água do poço do “tio” Matias e com a rapaziada exausta pelo calor que se sentia. Poço do “tio” Matias que ao lado tinha um forno onde se coziam os tijolos.
Da feira anual de setembro, 1, 2 e 3, na minha aldeia, e das romarias que nos enchiam de prazer e orgulho. A Festa das Santas Cruzes é disso um exemplo óbvio. O dia de São Sebastião, 20 de janeiro, a sua procissão e a venda de ramos de laranjas. E tão bem que o nosso João Lucas o fazia.
Saudades de um tempo que se definhou enquanto o “diabo” esfregou os olhos. Do Bairro Alto ao Algés, nas baixas, passando pela malta da rua da Atafona, do Rossio, do Bairrinho, do Rabo Toureiro, de entre muitos outros, todas essas “guerrilhas” futebolísticas amigáveis o tempo queimou. Ou, dos jovens que partiam para a guerra do Ultramar e o presumível “luto” de ausência que os pais e irmãos assumiam.
Hoje, encostado, não a um cajado, mas a uma bengala, lá vou prosseguindo o meu viver, “queimando” as pestanas dos meus olhos, tendo como finalidade deixar memórias para as gerações presentes e futuras poderem observar desde que o interesse lhes desperte a atenção. Testemunhos também de uma Guiné onde fui mais um dos camaradas que se depararam com tal conflito.
O meu AVC que leva praticamente 17 anos de “convívio” com a minha pessoa e que data a 27 de julho de 2006, uma madrugada que nunca esquecerei, não me derrubou, pelo contrário deu-me ganas que me trouxeram eloquentes prazeres.
Comandando uma coluna que se dirigia a Bafatá
Um dia partirei para um outro mundo, ficando, porém, a certeza que repousarei para a eternidade na terra que me viu nascer: Aldeia Nova de São Bento. Restos de uma saudade que se definha no tempo, ou seja, de uma juventude saudável a um envelhecer agridoce, sabendo, no entanto, que naquele recanto lá descansam camaradas e amigos infância, da minha geração, que perderam a vida nas então três frentes da guerra colonial.
Ficará, porém, no meu cardápio uma passagem pela guerrilha na Guiné, território onde conheci o quão difícil fora assumir um conflito onde os poderes das armas impunham, obviamente, respeito. Mas, jamais me sairá da minha memória a despedida dos jovens mancebos que eram enviados para as frentes de guerra. Na minha aldeia, a exemplo daquilo que passava em quase todo o nosso território, era comum as famílias e amigos se juntarem para prestarem ânimo a quem partia. Ou, os regressos daqueles que chegavam aparentemente bons de saúde, ou daqueles que faziam essa viagem de regresso, mas “embrulhados” em quatro tábuas de madeira.
Retratos de uma vida que ficarão eternamente no meu mero historial!
Abraço, camaradas
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 ____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série de 5 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24367: (Ex)citações (427): Retratos de existências em tempos de conflito armado. O existencialismo humano (José Saúde)
5 comentários:
Zé Saúde mais um excelente texto, este sem o habitual filigranar das palavras antes com as palavras apropriadas de vivências como duma autobiografia.
Por todo o Portugal rural, não era muito diferente desse que apontas para Aldeia Nova de São Bento/Alentejo. Nós temos uma diferença de seis anos, eu nasci em 1945, julgo que tu deves ser da colheita de 1951.
Agora vamos lá falar da fotografia "Com um dujbi a tirar água de poço em pleno mato".
Em pleno mato será logo cinco minutos depois de sair de Nova Lamego, calhando já longe da população da tabanca. Então para quem é que se iria fazer um poço em 'pleno mato' com tampa, corda e tudo? Seria uma grande ideia que no meu tempo não havia disso.
Outro pormenor muito interessante para um Ranger se deslocar a um poço no mato, não fosse estar armadilhado, digo eu, com botas de cabedal, relógio, G3 como se fosse às rolas, com um cantil impecável. Ah! e as cartucheiras para o que fosse preciso? Nã havia precisão, seria de muito cuidado.
Venham mais 'restos de uma saudade'. Aquela de comprar a garrafa de vinho e depois cada qual com o seu copito se aviassem na rua, é das boas.
Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz
Pois é José Saúde no teu tempo regressavam também embrulhados em quatro tábuas de madeira, mas no meu tempo 1963/65 nem esse direito tinha-mos o Estado leváva-nos vos novos e cheios de saúde, mas mortos só se alguém pagasse a viagem de regresso e ainda hoje por lá moram abandonados ao "Deus dará" e os governos deste País todos eles fazem orelhas mocas por tal assunto. Abraço.
É uma miserável vergonha que o estado português actual continue a ignorar os que perderam a vida em defesa daquilo que era à época, a pátria una e indivisível, do Minho a Timor. A ser assim, não estávamos numa guerra colonial, do ultramar ou de libertação, mas sim numa guerra civil.
Seja o que for, partiram na defesa dos interesses dos que exploram os mais fracos e se autoproclamam defensores dos valores morais e civilizacionais, ignorando os valores e a cultura dos que subjugam.
Deveriam ser resgatados e voltar às suas origens para poderem ter o Zé Saúde, o Botelho Colaço, o Valdemar Queiroz e todos os Carlos Vinhal e Luís Graça perto de si.
A tua perspicácia Valdemar é brilhante.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela
Eduardo Estrela sempre com pontos de vista como deve ser.
Deves estar recordado do que nos ensinavam/diziam no CSM sobre a definição de "guerra de guerrilha" que, afinal, era muito parecido com uma definição de guerra civil: Conflito armado e violento que ocorre dentro de um estado-nação entre grupos organizados e cidadãos provenientes do mesmo país, com o objetivo de assumir o controle de determinada região de forma a conquistar a independência ajudados ou não do exterior.
O Estado nunca quis saber de tratar da recuperação dos corpos dos militares portugueses em cemitérios nos territórios ultramarinos, assim como foi feito o memorial dos mortos em combate em Belém, também poderia ser feito um cemitério com as lápides respectivas. A chatice é arranjar o terreno não vá ser preciso mais tarde pra algum aeroporto.
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
"com um djubi a tirar água", como sendo um djubi = rapaz a tirar água.
Com esta do djubi poderia ter acontecido uma corruptela parecida com a "canguru" que assim se chama ao grande marsupial da Austrália mas quer dizer "não compreendo". Como se chama esse animal teriam perguntado aos aborígenes que responderam canguru = não compreendo a pergunta.
Quando chegamos à Guiné ouvíamos djubi/jubi por todo o lado principalmente para os rapazes, que queria dizer estás ouvir, estas a ver, olha cá, vem cá, mas depressa passamos a chamar djubi/jubi como sendo "rapaz", p.ex. ó djubi vê isto aqui.
Consultando o dicionário de Crioulo-Guineense vemos o seguinte:
djubi v., arc. inspecionar; observar. Na djubi si komportamentu.
Estou inspecionando seu comportamento. N’ bin djubi bu
tarbadju. Vim observar o teu trabalho.
djubi v., arc. olhar, ver; assistir. N’ bai djubi insaiu. Fui olhar o
ensaio. Na djubi so dianti. Vou olhar só para a frente.
djubi dianti loc. olhar para frente.
djubi djubi loc. olhar em volta.
djubi tras loc. olhar para trás.
O quer dizer que djubi não quer dizer rapaz.
Valdemar Queiroz
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