Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024
Guiné 61/74 - P25223: Historiografia da presença portuguesa em África (411): A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2023:
Queridos amigos,
Jamais em tempo algum tinha ouvido falar deste boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, dois investigadores brasileiros dão porquês para o seu aparecimento e falam da vida acidentada que a publicação teve, a maior colónia portuguesa no mundo ainda recebia afavelmente gente republicana, como Norton de Matos, e acresce que naqueles anos de 1930 os próceres do Estado Novo desconfiavam das doutrinas de Gilberto Freyre no que toca ao luso-tropicalismo. Tudo teve o seu tempo, mas acho que vale a pena dar uma vista de olhos ao que o escritor e jornalista Hugo Rocha publicou sobre a presença guineense na primeira exposição colonial portuguesa e é bom deixar no nosso arquivo as duas páginas com imagens de Bolama daquele tempo que era capital da colónia.
Um abraço do
Mário
A primeira exposição colonial portuguesa contada numa revista do Rio de Janeiro
Mário Beja Santos
Com a preocupação de vasculhar quanto a referências da Guiné portuguesa, na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa alertaram-me para o Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, publicação que vingou entre 1932 e 1939, primeiro com o título de África Portuguesa e depois referenciada como Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Que pretendiam? No n.º 1 de África Portuguesa, janeiro de 1932, com o título a que vimos, faz-se a seguinte apresentação:
“A que vem África Portuguesa? Sentar praça nas hostes dos paladinos do Novo Renascimento Colonial Português. Este Novo Renascimento da expressão política devia-se a várias sacudidelas: a fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa e às epopeias de Silva Porto, Serpa Pinto, Capelo e Ivens. E à ocupação efetiva: Mouzinho, Alves Roçadas, João de Almeida, António Enes, Norton de Matos. África Portuguesa vem contribuir com a sua quota parte, cá deste lado do Atlântico, para essa obra de ressurgimento colonial, proporcionando aos nossos patrícios e a todos quantos se interessam pelas coisas coloniais uma resenha dos principais acontecimentos e factos mais notáveis da vida das colónias. Enfim, pôr em relevo a obra colonizadora dos portugueses.”
Mas pode-se apurar mais quanto aos intentos deste projeto, veja-se um artigo de Mateus Silva Ikolaude e Marçal de Menezes Paredes sobre as questões da lusofonia no n.º 48 da Revista Portuguesa de História, Coimbra, 2017.
Escrevem os autores:
“Na década de 1930, Portugal e Brasil constituíram na esfera diplomática importantes espaços de aproximação política. Se, por um lado, em Portugal existia um colonialismo com pretensões nacionalistas e que pensava o exemplo brasileiro como referências às colónias africanas, por outro, no Brasil havia nacionalismo que mobilizava componentes internacionais para com África e para com Portugal. O Rio de Janeiro constituía-se no principal centro de emigração portuguesa do mundo e a colónia lusitana organizada buscava afirmar e recriar a sua identidade a partir de duas estratégias principais: o associativismo e a imprensa. A visão do Brasil enquanto obra máxima da ação colonizadora portuguesa refletia-se na representação assumida pelos emigrantes residentes na antiga colónia, ao passo que a constituição da maior comunidade portuguesa fora de Portugal, em pleno século XX, reforçava simbolicamente os laços estabelecidos historicamente de uma predestinação lusitana. No dia 22 de maio de 1930 foi fundada a Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro. Em 1934, a tiragem da revista era de dois mil exemplares que eram gratuitamente distribuídos para intelectuais, políticos, além de escolas, centros culturais e prefeituras.”
Haverá inúmeras tensões com o Estado Novo, basta pensar que uma das figuras mais admiradas na colónia era Norton de Matos, opositor do novo regime, curiosamente na década os próceres dos Estado Novo olhavam de viés as doutrinas de Gilberto Freire sobre o luso-tropicalismo, a doutrina será recuperada com a questão colonial posta nos anos 1950 e 1960.
No número dedicado à primeira exposição colonial portuguesa, que decorreu no Porto em 1934, o escritor e jornalista Hugo Rocha prendeu-se de amores com a Guiné e redigiu um apontamento digno de reflexão:
“Ontem, a meio da tarde, para matar saudades, fui ao Palácio ver os pretos e buscar assunto para esta reportagem à margem do noticiário quotidiano. E a primeira impressão, forte, dominadora, absoluta, foi a de que entrara em pleno território colonial. Desde há poucos dias, 63 pretos e pretas da Guiné fazem vida africana em pleno recinto da Exposição Colonial Portuguesa. Fulas, Bijagós, Mandingas, Balantas. A melhor, a mais completa representação etnográfica que a Guiné, guarda avançada de Portugal na África, podia enviar à metrópole.
Pronta para receber tão imensa embaixada, a aldeia da Guiné, que é a mais típica do certame, porque é lacustre como grande parte das aldeias da Guiné e porque se situa entre uma paisagem admirável, não chegou, todavia, para acomodar todos os indígenas. Houve que dividir, como soe dizer-se, o mal pelas aldeias. E, assim, no bosque, em sítio escuso, de aspeto tropical, novas cubatas houve que erguer. E fez-se nova sanzala. E 20 negros – 18 homens e 2 mulheres – de raça Fula, passaram a habitar, ali, dando-se, também, a ilusão de que não estão no Porto, de que estão na Guiné…”
Interrompo aqui a citação para referir que há uma conversa entre Hugo Rocha e um guineense a quem ele chama Mony, fala-se do tempo em Portugal e na Guiné, e há para ali uma alusão maliciosa, Mony era casado com aquelas duas mulheres, uma delas estava a pentear um dos homens, para o observador havia para ali uma cena de sedução e perguntou-se a Mony se ele não tinha ciúme, a resposta foi portentosa, Mony não sabia o significado da palavra ciúme… E vamos continuar com o texto de Hugo Rocha:
“Henrique Galvão, com admirável sentido prático pelo que deve ser a preparação do certame, não quer que os indígenas da Guiné estejam ociosos. Sendo, alguns deles, trabalhadores excelentes, o melhor sistema de os tornar úteis ao certame, enquanto as portas não se abrirem ao público, era, evidentemente, empregá-los nas obras.
E assim, mal chegados, os negros começaram a faina, auxiliando os trabalhadores brancos que labutam, ali. Acarretam. Limpam. Auxiliam. Elas, enquanto os homens não perdem o seu tempo, estabelecem o ménage. Transportam lenha para as fogueiras, águas para a cozinha. Ao fim da tarde, quando eles estão disponíveis, a ilha oferece o quadro mais completo da Guiné que possa conceber-se. Quase todos vestindo – despindo será melhor dito… - à boa usança do sertão, eles estendem-se pelo chão, sobre as esteiras ou na terra dura. E elas, com uma paciência de Job, penteiam-nos, engorduram-nos, fazem das suas carapinhas baças um emaranhado inextrincável de fios embebidos de tacula, que parecem, pronto o toucado, barretes avermelhados e um tudo nojentos…
Depois, o batuque. Horas seguidas, enquanto a multidão de empregados e operários forma barreira compacta no continente, defesa como é a entrada na ilha, o tantã soa entre as árvores, a que uma ou outra palmeira, refletindo-se no lago, dá o ar tropical…
E a algazarra do dialeto, que ninguém entende, e as risadas sonoras, e o cheiro pronunciado a sertão, e aqueles corpos negros, nus e besuntados, que se agitam como se aquele fosse o seu verdadeiro meio, dão, a quem olhar a cena e a considerar, atentamente, a sugestão completa, farta, dominadora, de África…”
Foi o único artigo sobre a Guiné que encontrei. No entanto, dei com imagens de Bolama e seis imagens do interior da primeira exposição colonial portuguesa que aqui vos mostro.
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Nota do editor
Último post da série de 21 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25194: Historiografia da presença portuguesa em África (410): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (7) (Mário Beja Santos)
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5 comentários:
Mário, não tens espreitado o blogue... Temos uma dúzia de referências ao Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro... Inclusive publicámos na íntegra o artigo (hoje diríamos... "vergonhoso") do Hugo Rocha, jornalista, diretor do "Comércio do Porto", antecipando a abertura da Exposição Colonial do Porto (1934)...
22 DE JANEIRO DE 2024
Guiné 61/74 - P25098: Historiografia da presença portuguesa em África (405): voyeurismo, exotismo, sexismo e racismo na exposição colonial do Porto de 1934: uma reportagem do jornalista de "O Comércio do Porto", Hugo Rocha (1907-1993), publicada no "Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro"
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/01/guine-6174-p25098-historiografia-da.html
BS tanto escreve que não tem tempo para ler.
Aliás BS e LG são dois fenómenos a escrever.
Principalmente sobre as colónias, não perco uma deles os dois.
Mas sobre a grande paixão colonial, desta geração do tempo dos "Milreis", a geração de Capitão Galvão, Norton de Matos em que velhos colonialistas sonhavam com Nova Lisboa capital do Império, e também a paixão destes "brasileiros" do Rio de Janeiro, anti- salazaristas, tem alguma explicação.
É que naquelas cabeças, em toda a Europa a mesma coisa, jã não cabiamos todos no velho continente.
Iam para o Brasil, América do Norte, das nossas super-habitadas aldeias, nos anos 40 e até 1955, famílias numerosas que enchiam os porões dos paquetes/vapores ingleses.
Nessa época, ainda Salazar mandava construir nessas aldeias escolas para 100 crianças.
Era o tempo da 3ª ou 4ª classe, o mais velho para pastor, o outro para sapateiro, o outro ou outra para costureira/alfaiate, e lá sobraria um quinto ou sexto filho para padre.
Isto, os que não emigravam, porque chegavam a imigrar meias ruas que deixavam as ruas em silêncio.
Havia em Luanda e Rio de Janeiro, ainda em 1974, velhos colonialistas que na cabeça deles continuavam a pensar que sem colónias Portugal não sobrevivia.
Pensavam tal como a geração dos "Milreis" que aliás ainda não diziam "escudos".
Pronto, acabou-se,ainda se emigra mas sem filhos.
Antº. Rosinha
E até havia aquele Silvestre que emprestava dinheiro com a garantia/aval de uma leira, a quem quisesse imigrar para o Brasil, deixando por cá a mulher e filhos, que depois tinha de pagar com juros, e que sempre ia pedindo quando ele próprio é que escrevia as cartas.
E havia o que por lá já ganhava e mandava algum dinheiro à mulher, desejando saúde às crianças e rematando com um alegre 'tua Maria come e bebe e o Silvestre que se f...' .
Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Valdemar, mas havia outros Silvestres sacanas, que tomavam conta da mãe dos filhos do emigrado, e o emigrado que se f.
E havia casos de emigrados que escreviam a 1ª e última carta quando desembarcavam e a mulher e os filhos nunca mais sabiam dele, até hoje.
E parece um fenómeno, é que nos dias de hoje, inverteu-se de tal maneira a ordem das coisas, que são tanto "eles" a ficar pendurados sem mulher e filho, ou mesmo com o filho nos braços, como o contrário.
O que ainda estaremos para ver!
rectifico
evidentemente que era 'emigrar para o Brasil'
Valdemar Queiroz
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