É uma gentileza do autor e nosso camarada, a quem agradecemos, em nome da nossa Tabanca Grande.
Estamos em 1981 em Cantão e em Macau (território ainda sob administração portuguesa, até 1999).
Lay Yong e Bernardo conheceram-se quando viajaram juntos, em 1981. na "ferry-boat" que fazia a viagem, de 120 quilómetros, entre Cantão e Macau, ao longo do rio das Pérolas (*)
Lai Yong e Bernardo, uma História Simples - III (e última) Parte
por António Graça de Abreu (*)
VII
Macau está a actuar sobre Bernardo como um turbilhão de descobertas e prazeres. Inevitabilidade dos seus trinta e poucos anos, ainda, sempre imaturos, os flancos expostos a todos os ventos e tempestades. O português de Pequim pensa, repensa-se.
Descobre, redescobre-se. Quer e não quer, avança e recua. É, determinado e hesitante, confiante e receoso. Vagueia pelo âmago de Macau, esta China que não é a sua China, abraça uma mulher chinesa, toda dádiva e formosura, uma mulher que não é a sua mulher. Bernardo caminha confundido.
Sábado de manhã. Lai Yong tem todo o dia livre. Vou buscá-la a casa, lá no extremo da rua da Praia do Manduco. Manda-me entrar. Subimos a escada, um segundo andar acanhado, num edifício antigo de quatro pisos, bolorento e húmido, bem ao modo da velha Macau. Porquê levar Bernardo para o patamar aparentemente pobre do seu dia a dia?
Apresenta-me aos pais, gente humilde que jamais vira um português a entrar-lhes portas adentro. Curiosos, afáveis, oferecem-me chá. Ignoro o que a filha lhes contou a meu respeito, mas sou recebido com a singeleza das pessoas de bem da China eterna.
Despedimo-nos. Um cumprimento de mãos juntas e saio com a Lai Yong. Vamos até à ilha de Coloane. O minibus 7 atravessa a ponte para a Taipa e depois o istmo até Coloane, a ilha que foi outrora coio e pertença de piratas e só em 1910 entrou para a efectiva e completa governação portuguesa de Macau.
Passear a pé por Coloane, de mão na mão. O sorriso infindável da Lai Yong ondulando entre os lábios, mais as sibilantes frestas dos seus olhos. Na capela de S.Francisco Xavier, uma Nossa Senhora chinesa com um Menino Jesus nos braços vestido de imperador criança. Ela não acredita muito no Deus cristão do Ocidente, diz-me que lhe faz confusão um Cristo sofredor, agonizante, seminu, espetado numa cruz semelhante aos dois traços do caractere chinês shi 十, o número dez.
Também não entende muito bem o que vem a ser um pecado, uma coisa mal feita capaz de nos condenar ao fogo dos infernos. Mas respeita o Deus estrangeiro e quem sabe se um dia não precisará da sua ajuda…
Almoçamos na pousada de Cheoc-van, debruçados sobre o mar, com a pequena enseada e a praia lá em baixo. A suavidade destas ilhas, o mar em volta, a abastança portuguesa em terras chinesas. No restaurante da pousada, na larga mesa ao fundo, um secretário-adjunto do governo de Macau -- que me conhece e me cumprimentou ao entrar, admirando a minha presença por ali com uma beldade chinesa --, oferece um banquete a uns tantos figurões acabados de chegar de Portugal, convidados oficiais que, como de costume, se deliciam com as mordomias que Macau tem para lhes oferecer.
São, por norma, portugueses mal acostumados, que recebem bastante de Macau mas pouco ou nada dão à cidade. Encolhidos na nossa pequenez, a Lai Yong e eu apaladamos festivamente a boca num excelente repasto com delícias portuguesas.
Ela pergunta-me se eu conheço pessoas importantes em Macau, homens com poder e mando. Digo-lhe que sou um pobre Beijing ren 北京人, um “homem de Pequim”. Na capital da China, no meu relacionamento com os poderosos, limito-me a vê-los passar, eu não mando nada, e em Macau acontece exactamente o mesmo.
Acabámos o almoço a passear os olhos, e entendimentos, um no outro, depois a diluir o olhar no mar de Cheoc-van.
À tarde descemos para a praia de Hac-sá –Heisha 黑沙 em mandarim– que, com todo o rigor, significa “Areia Preta”. Um dia de sol, céu quase azul, as águas levemente amareladas e o areal prateado resplandecendo.
Descalçamos os sapatos, arregaçamos as calças até aos joelhos, molhamos os pés, chapinamos na água, nas ondas pequenas que morrem na praia. Corremos na areia escura, como crianças inocentes e limpas, libertas de mil cadeias e medos. Abraço a Lai Yong, aperto-a no peito. Deixa-se enlanguescer como uma pequena onda desfalecendo em mim. Beijos de sal, as bocas como flores de lótus abrindo, trocamos de línguas e de saliva, num desvairo de fogo e desatino. Voltamos a correr pela praia, a parar, a juntar, a abraçar os nossos corpos. Até o dragão que habita no fundo das águas do mar, entusiasmado, sobe e vem ouvir a nossa música.
Regressamos a Macau. O meu lar eventual e passageiro é um mini-escritório com uma sala grande, dois quartos e quatro camas. É o office emprestado por um amigo português que alugou o espaço para alojar uns pares de contabilistas de Hong Kong que vêm regularmente a Macau proceder a escritas de empresas. Está vazio, fica também na velha cidade, não longe da casa da Lai Yong, no Pátio da Casa Forte, ao lado da rua Central, diante da igreja de S. Lourenço.
Levo-a comigo, flutuando a meu lado como uma fénix celestial. Mas é jade puro, mulher quase perfeita. Ou um bombom terreno, a prata a envolver o corpo para eu desembrulhar e comer.
Lai Yong dá-me a honra de a despir. Lentamente, folha a folha, pétala a pétala, de deixar correr os meus lábios pela sua pele fina, de seda imaculada, perfumada a almíscar e jasmim, de amaciar os dedos nos seus seios maravilha, do tamanho do desejo da concha da minha mão, de tocar, beijar duas framboesas róseas e de colher a peónia à solta no seu ventre. Abertas as portas de jade, o riso doce, o gosto da alegria. Mil espantos, dez mil carícias, yun yu 云雨, embalados no antiquíssimo jogo das nuvens e da chuva, a arte do quarto de dormir, para enobrecer os dias e as noites.
Nas últimas horas de estadia em Macau, antes do regresso de Bernardo a Pequim , vamos jantar à pousada de Santiago da Barra. Não é barato, mas nós merecemos tudo.
Pouco antes de partir, pergunto à Lai Yong:
– Para quando um reencontro? Qual vai ser o nosso futuro?
Responde-me, mais ou menos assim:
– Não temos futuro um com o outro. Vivemos o dia a dia, vivemos hoje. Não nos vamos preocupar com o ontem nem com o amanhã. Vivemos agora o prazer de um homem e de uma mulher que se dão bem, que gostam de estar juntos. Mais nada. Tu seguirás o teu destino, em Pequim, eu caminharei por Macau, por Cantão, pelas minhas cidades. Foi muito bom conhecer-te. Guarda-me na tua memória, eu guardar-te-ei também, mas não me dês demasiada importância. Desejo a tua felicidade.
Amores em Macau, breves e leves como névoa, brisas de Outono, carícias solenes no perpassar dos dias.
Um soluço na garganta e adeus, Lai Yong, O Bernardo promete-te que um dia, daqui a muitos anos, se for capaz, escreverá a nossa história simples.
VIII
Nesta viagem, depois de Macau, Bernardo seguiu para Hong Kong onde comprou uma edição chinesa e outra em tradução inglesa da Jin Pin Mei 金瓶梅, um romance de costumes da dinastia Ming, atribuído com muitas dúvidas a Wang Shizhen (1526-1590) com dezenas de poemas onde o erotismo campeia.
É um dos “cinco grandes romances” da literatura chinesa (os outros quatro são “À Beira de Água”, “Romance dos Três Reinos”, a “Peregrinação a Oeste” e “O Sonho do Pavilhão Vermelho”).
Na longa viagem de regresso à capital, durante quase mais dois dias de comboio de Cantão para Pequim, Bernardo traduziu o seguinte poema da Jin Pin Mei:
Amor em segredo
Os patos-mandarim brincam na água,
Duas garças caminham entre as flores.
as cabeças, par a par.
Dois ramos selvagens abraçam-se, felizes,
exaltando o prazer da união dos amantes.
Os lábios do rapaz na boca da mulher,
ela abandona o rosto a todas as carícias.
Descalça as meias de seda,
mostra os seios levantados, como duas luas.
Uma nuvem de cabelos negros,
seu alfinete dourado cai na almofada.
Juram ambos o sublimar da paixão
por montanhas e mares.
Ela é o decoro da névoa, a timidez da chuva,
ele, o golpe suave no seu arco de jade.
Trocam salivas, as línguas húmidas
num desvairo, rejuvenescidos pela Primavera.
Ofegante a sua boquinha de cereja,
os olhos do sonho, duas estrelas cintilantes,
seu suor são gotas de jade perfumado,
os seios cremosos abanam como orquídeas na brisa,
o orvalho goteja e cai no coração escondido da peónia.
Sim, tão doce um casamento abençoado e casto,
mas nada melhor do que um amor em segredo.
António Graça de Abreu
Fim
(Seleção, revisão / fixação de texto para efeitos de publicação neste poste: LG)
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Nota do editor:
(*) Postes anteriores da série de:
9 comentários:
O amor na sua plenitude.
Um conto de rara beleza poética.
Obrigado António Graça de Abreu pela partilha.
Abraço fraterno
Eduardo Estrela
Excelente partilha. Desconhecia por completo o poeta.
Fiquei muito agradado pelo vosso blogue e empenho. Porém e, ao mesmo, triste pois o meu irmão mais velho António Soares, já falecido há 9 anos, foi combatente na Guiné e nunca soube(mos) da vossa comunidade.
Teve uma morte muito trágica. Um trabalhador exemplar, parecia ter uma saúde de ferro. Nunca faltou ao trabalho, na Salvador Caetano, em Gaia. Reformou-se aos 60 anos e passado um ano teve Esclerose múltipla Aguda, associada a uma leucemia. Sofreu imenso nos últimos seis meses da sua vida.
Sejam também bem-vindos ao meu blogue BioTerra. Podem segui-lo. Sou Biólogo e Educador Ambiental.
Cumprimentos cordiais
Estes nossos amores efémeros com estrangeiras são tramados... Ficou a lembrança doce mas também dorida...
Obrigado, António, abriste a nossa caixinha de Pandora em plena Páscoa cristã ...
Espero que a tua Lai Yong seja hoje uma avozinha feliz e que ainda se lembre de ti, quero eu dizer, do dr
Bernardo...
O teu conto é também um hino à nossa capacidade, como seres humanos (e não especificamente como portugueses), de nos abrirmos à cultura do outro....
Tiro-te o quiçá. Emas tempos de intolerância, xenofobia, sinfonia, rabismo, o teu conto é uma bênção..
Luísque (a caminho da Lourinhã ).
João Soares, obrigado pelo comentário. E também pela partilha. Vou espreitar o seu blogue. Mas para já queria saber mais coisas sobre o seu mano,António, nosso camarada. Há fotos dele e outras memórias? A que unidade/subunidade pertenceu? Por onde andou e em que época?
Um abraço. Luis Graça.
PS -Escreva-nos por mail ou através do formulário de contacto. Ou aqui mesmo, nesta caixa de comentários.
E a propósito de Macau e da sua história, julgo que nunca aqui se falou dos lamentáveis "incidentes" de 3 de Dezembro de 1966, em plena revolução cultural chinesa, em que uma manifestação popular contra administração portuguesa foi reprimida pela polícia, provocando 8 mortos e 200 feridos...
Devido aos "motins 1-2-3", como ficaram conhecidos, o Governo de Macau chegou a considerar mesmo a possibilidade de abandonar Macau e entregar simplesmente à República Popular da China.
Mas, Pequim não estava interessada por razões comerciais devido a entrada de divisas por Macau e Hong Kong.
Valdemar Queiroz
Um belo conto, com um final de poesia e ternura reconfortantes, bem ao jeito do que nos tem oferecido o distinto camarada, António Graça de Abreu. Parabéns e obrigado pela partilha.
E a propósito, vou reler o seu Diário da Guiné, Lama, Sangue e Água Pura, que teve o condão de ser o primeiro livro que li, sobre as memórias de um combatente da Guiné, passados 40 anos de eu lá ter aterrado, e que serviu de catalisador para querer acordar as minhas memórias desses lugares e tempos e reconciliar-me com esse passado agridoce, que tinha procurado esquecer.
Abraços
JLFernandes
Joaquim Luis Fernandes, obrigado pelo comentário.
O meu Diário da Guiné não é um livro de Memórias. É o testemunho real, verdadeiro, estupuradamente sentido,o dia a dia da nossa vida na Guiné 72/74. Não confundir com memórias.
Abraço,
António Graça de Abreu
Caro Luís Graça
O meu irmão António esteve na Guiné entre 68/70. Acho que a família tem fotos dele. Mas não somos uma família muito unida. Por isso vai ser difícil (e vão estranhar) pedir fotos desse tempo. Além disso, todos desejamos que ele esteja bem na Paz Eterna, pois deixou-nos muito traumatizados. Ninguém diria que um homem bem constituído, robusto e com energia de ferro morresse com tanto sofrimento e nosso também. Num mês perdeu 15 quilos. No 2º mês já não se levantava da cama. Várias e incontáveis idas ao hospital.
Um abraço
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