Caro Luís Graça,
Para aliviar um pouco o tema que tenho estado a abordar (2) , aproveito para desanuviar e se nesta altura for apropriado conto a primeira das minhas brincadeiras de mau gosto, diabruras ou disparates, tanto faz.
Esta foi no interior de um pavilhão mas também há as exteriores.
Como já tinha contrariado, sempre no bom sentido, algumas das directrizes do meu Comandante de Companhia em Bissorã (3), que felizmente acabaram em bem e sem inimizades, pensei em Brá comportar-me cândidamente.
Foto: © João Parreira (2006)
Porém como logo na primeira noite de estadia me fizeram uma malandrice, depressa puz para trás esse pensamento, e dentro do mesmo espírito fiz também algumas patifarias, em que algumas delas poderiam muito bem ter dado para o torto.
Já a manhã daquele dia 10 de Fevereiro de 1965 não me tinha corrido muito bem pois estava eu a dormir profundamente quando às 08H00 me acordaram precipitadamente dizendo que estava uma avioneta na pista à minha espera para me levar para Bissau.
Não contava que assim fosse pois estava programado que só iria no dia 11. Assim saltei da cama meio estremunhado, peguei à pressa nas minhas coisas e saí a correr em direcção à pista.
Tendo chegado ao Quartel dos Adidos em Brá fui apresentar-me ao Cmdt dos Comandos que me disse que depois me chamava para falar comigo e na altura indicou-me o quarto onde eu iria ficar instalado e onde deveria ir levantar os lencóis, almofada, etc.
Na posse do que era necessário fui para o quarto que me tinha sido indicado e dirigi-me para a única cama que se encontrava vazia e comecei a fazê-la estranhando que as mesmas não estivessem adaptadas para levarem mosquiteiros. Seria que em Bissau não existiam anopheles? O certo é que muito deficientemente consegui que o referido protector das picadas daqueles irritantes insectos me cobrisse
Guiné > Bissau > Brá > Centro der instrução e sede dos comandos > 1965 > A cama do Parreira, sem rede mosquiteira...
Foto: © João Parreira (2006)
Agora que estou a falar nisso lembro-me que quando estava em Salisbúria, Rodésia, para onde fui quatro meses depois de regressar da Guiné e apareciam aqueles mosquitos com o seu barulho caracteristico costumava dizer a brincar - cuidado que aí veem os aviões da Zâmbia, o que dada as rivalidades existentes entre aqueles dois países africanos fazia rir os meus acompanhantes.
No dia seguinte mandou-me chamar e depois de me ter dito qual seria a minha situação indicou-me o local onde deveria ir levantar o material de guerra.
Chegou a noite e quando entrei no quarto para me deitar já lá estavam os outros três
camaradas que entretanto tinham regressado de operações. Para além de me apresentar não deu para falarmos mais. Eram eles o Morais (4), o Matos e o Moita.
Durante a noite acordei com imenso calor e com cheiro a queimado, tendo pulado da cama sem saber o que se estava a passar. Não tinham sido causas naturais mas sim um daqueles grandes safados, que como teste ou boas vindas presumo eu, apanharam-me a dormir e pegaram fogo ao mosquiteiro.
Depois disto nunca mais usei nenhum, pois fiquei com a impressão que me ia suceder o mesmo. Coincidência ou não o certo é que passado uns dias não me livrei de ficar de cama com paludismo, em que, dada a elevada temperatura fui contemplado com a visita do médico. Deste modo não tive a mesma sorte que o camarada Magalhães Ribeiro (5).
A minha primeira reacção ao que me tinha acabado de acontecer foi ficar furibundo pois se não acordasse a tempo ficaria com alguma mazela, pelo que tentei saber qual deles tinha sido o engraçadinho, quanto mais não fosse para saber o gozo que aquilo lhe tinha dado, mas fecharam-se todos em copas e eu não insisti.
Também podia ser um acto isolado e nenhum deles saber quem foi, senão o próprio.
No dia seguinte ao fim da tarde, já com ideia do que lhes ia fazer como retribuição, mas sem qualquer ressentimento, escolhi, das granadas que entretanto já tinha colocado debaixo da cama uma de fumos que deixei ficar à mão e guardei no bolso um cordel fino que se podia partir com um puxão, e de seguida fui para Bissau de onde regressei muito tarde na esperança de que quando chegasse já estivessem a dormir.
Assim aconteceu de facto, pelo que sem acender a luz e silenciosamente prendi aos ferros da cama um pé do Moita que estava de fora mesmo a geito, e depois de me certificar agarrei na referida granada e dirigi-me para a porta que abri.
Uma granada de fumos... Foto: © João Parreira (2006)
Já na soleira tirei a cavilha e larguei-a no chão, e de imediato tranquei a porta e fui para o fundo do corredor.
Não sei o que é que se passou lá dentro, mas é de prever que tenham acordado meio sufocados pois ouvi-os a tossirem e depois devem ter corrido para a porta no meio de uma grande fumarada sem saberem o que se passava, mas como eu a tinha fechado não tiveram outra alternativa senão saltar em cuecas para a rua através da janela que tiveram que abrir, e esperar que o fumo se dissipasse.
Passado algum tempo destranquei a porta, e depois de tudo voltar à normalidade fomo-nos deitar, e como se tudo fosse natural nenhuns de nós falou do que se tinha acabado de passar.
Um abraço.
João Parreira
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Nota de L.G.
(1) Vd. posts de:
3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
6 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLI: O 'puto' Parreira, do grupo de comandos Apaches (1965/66)
(...) "Temos connosco o Parreira.Foi furriel-miliciano comando na Guiné e ambos pertencemos ao grupo de comandos Apaches que saiu do 2º curso de comandos realizado na Guiné.
"Entre nós era conhecido por puto Parreira pela sua aparência um pouco imberbe que, aliás, ainda hoje conserva.
"O seu testemunho está correcto e a sua vinda a este blogue será certamente uma excelente contribuição.
"Parreira: ficamos à espera da narração da operação em que perdeu a vida o furriel Morais, morto com um pequeno estilhaço de RPG que lhe atravessou a coluna vertebral. Um abraço. Mário Dias".
(2) Vd. posts de:
31 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXXII: Mais ex-combatentes fuzilados a seguir à independência (João Parreira)
23 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)
22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVII: O Justo foi fuzilado (Leopoldo Amado / João Parreira)
(3) Vd. post de 20 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXLIII: Com a CART 730 em Bissorã e Olossato (1965) (João Parreira)
(4) O Fur Mil Cmd Morais virá a morrer em combate, três meses depois, no decurso da Op Ciao, em 7 de Maio de 1965. O João Parreira, também conhecido pela sua alcunha, o Uva, já aqui descreveu a morte do Morais, através do Virginio Briote, que cita o seu diário: vd. post de Guiné 63/74 - CCCLXV: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote)
"8.CAPITÃO MANILHA
"(...) Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel Uva [João S. Parreira], um deles, podia ler-se.
“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação 'Ciao'.
"Num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Varela foi connosco.
"Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Ina, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo 'Comandante Nino'.
"Já na madrugada do dia 7, a poucos kms do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário.
"Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sw de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga.
"8 armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.
"Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro de 88 (?), até então ainda não apreendido na Guiné!
"O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Manilha chamou o Amadu e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadu. Ofereci-me bem assim como o capitão Varela, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.
"De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo.
Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.
"Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me." (...)
(5) Vd post de 7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...