Texto do historiador Leopoldo Amado, membro da nossa tertúlia (1)
Caro Paulo Reis (2),
Seria muito interessante encontrar-se o plano de retracção dos contingentes portugueses na Guiné. Eu não tive essa sorte, mas vali-me dos documentos do Arquivo do PAIGC sobre a matéria e, já agora, também gostaria de certifiacr-me da existência dessa documentação para, caso exista, confrontá-la com a interpretação que, em muitas situações, certamente foram condicionadas pela documentação do Arquivo do PAIGC.
Todavia, devo dizer-te que estou convencido de que tal plano não se elaborou na sequência das negociações de Londres, mas sim nos vários encontros havidos posteriormente na mata de Cantanhez entre o Comando-Chefe da Guiné e uma delegação político-militar do PAIGC. Foram esses encontros, mais do que as de Londres, que fizeram avançar as coisas. Publiquei no livro que escrevi para o Presidente as actas desses encontros elaboradas pelas NT (ver versão PALOP, Editorial Notícias).
Lembro-me que foi nas matas de Cantanhez que se aprovou conjuntamente o plano de retracção das tropas portuguesas, após ter sido adoptado pelas duas partes um documento intitulado "Normas de Vida", documento esse em que basicamente o PAIGC procurava regular a acção do Exército português na fase de transição, tanto mais que ali estava patente que os soldados portugueses apenas podiam deslocar-se num determinado raio de acção dos aquartelamentos, além de uma série de outras restrições em que se via claramente que o PAIGC influenciava a agenda e ditava o rumo dos acontecimentos.
Aliás, quando Spínola expediu para Bissau 20.000 cartazes com imagens suas – convicto como estava de que ainda iria proclamar a República da Guiné-Bissau numa Magna Assembleia em que forçosamente o PAIGC seria forçado a partilhar o poder com outras forças políticas emergentes, algumas delas fabricadas por Spínola com elementos a partir de elementos que com ele colaboraram na política da "Guiné Melhor" – o PAIGC fez ver ao Fabião que as negociações de Londres não permitiram avanços significativos que permitissem ajuizar sobre o diferendo político e militar.
Para além, pois, de recusar terminantemente a ideia da proclamação do Estado da Guiné-Bissau proposta por Spínola, o PAIGC lembrou a Portugal, por intermédio do Fabião, que em momento algum teria anunciado unilateralmente um cessar-fogo, pelo que a cessação das hostilidades que estava a observar, devia-se a um compromisso assumido na decorrência do encontro havido entre Mário Soares e Aristides Pereira, sob os auspícios de Senghor, pelo que a situação que prevalecia era globalmente considerada pelo PAIGC de "tréguas", donde a necessidade de assumpção de um compromisso pelo Comando-Chefe em Bissau relativamente as "Normas de Vida".
Assim, assinado que foram as "Normas de Vida" entre as duas partes, prefigurou-se doravante as condições para que o PAIGC conseguisse em Argel o essencial das suas reivindicações, mormente os aspectos que em Londres revelaram-se de difícil entendimento e que conduziram essa ronda negocial a uma situação de impasse e que somente se desbloqueou com os quatro ou cinco encontros de Cantanhez que, na prática, foram internacionalmente caucionados em Argel.
A posição militar privilegiada do PAIGC depois de 1974 (nem sempre o desequilíbrio de forças foi favorável ao PAIGC), como referi anteriormente, permitiram que fosse esse Partido a influenciar a agenda dos processos que, no essencial, determinaram doravante o rumo dos acontecimentos. Senão vejamos: foi José Araújo (hábil jurista do PAIGC) quem redigiu as "Normas de Vida"que, não obstante algumas emendas de somenos importância sugeridas pela parte portuguesa, acabou no essencial por ser adoptada pelas partes em negociações no terreno.
Foi igualmente na sequência dessas negociações que o Governo português acabou por anuir a proposta do PAIGC no sentido de ser assinada um acordo geral em Argel (sintomaticamente, a escolha de Argel é do PAIGC por razões óbvias, pois ali tinha o apoio do Governo local, para além da pressão internacional exercida sobre o Governo português em sentido convergente, quer do lado do bloco afro-asiático, quer do bloco comunista, para além dos EUA, das Nações Unidas (na altura dirigida por Kurt Waldheim), e ainda, discretamente, também a pressão discreta exercida directa ou indirectamente sobre Lisboa por parte dos países nórdicos e escandinavos em geral.
Aliás, não é por acaso que aspectos que quase conduziam em Londres as delegações de Portugal e a do PAIGC a autêntica situação de crispação, foram quase que magicamente resolvidas posteriormente em Argel, tal a celeridade com que a delegação portuguesa anuiu em relação a todas elas, nomeadamente a exigência do PAIGC para que Portugal reconhecesse sem condições nenhumas a independência da Guiné-Bissau (entretanto proclamada unilateralmente em Madina de Boé, a 24 de Setembro de 1973), o direito à autodeterminação e independência de Cabo Verde e ainda o direito à autodeterminação e independência dos povos das restantes colónias africanas de Portugal.
Aliás, é curioso notar que foi igualmente na ronda negocial de Argel que as duas delegações aprovaram o plano de retracção do Exército português na Guiné, sintomaticamente, plano esse praticamente elaborado por Pedro Pires com base em documentos militares do QG do Comando-Chefe encontrados aquando da tomada de Guiledje, de resto, documentos que continham informações altamente classificadas e, portanto, fidedignas, sobre a composição numérica das unidades do Exercito português espalhados pelo TO, bem como a natureza táctica e estratégica dos dispositivos e companhias militares, incluindo as forças especiais.
Efectivamente, e tomando à letra os documentos de Arquivo do PAIGC, quase todo plano de retracção e evacuação do Exercito português na Guiné foi feito segundo o plano do PAIGC elaborado por Pedro Pires, actual Presidente de Cabo Verde que, não obstante não ter participado directa e pessoalmente nas negociações havidas em Cantanhez, chefiou e dirigiu, pessoalmente, as sessões negociais de Londres e Argel, assim como quase todo processo da descolonização da Guiné-Bissau e Cabo-Verde.
Curiosamente, não foi por acaso que Spínola o recusou cumprimentar a 10 de Agosto de 1974 (salvo erro), quando este chefiava a delegação do PAIGC que compareceu em Lisboa para a cerimónia solene do reconhecimento por Portugal da independência da República da Guiné-Bissau (Spínola acreditava também que Pedro Pires era o elemento moralmente responsável pela morte dos três majores na Guiné). Aliás, no seu discurso de circunstância, Spínola foi incisivo na maneira como se referia aos guinéus, em oposição aos caboverdianos, apesar da solenidade de que se rodeou a cerimónia.
Voltando agora à vaca fria, seria importante encontrar-se documentos militares portugueses que permitissem uma melhor aferição do processo da descolonização do Exercito português, mormente os condicionamentos que propiciaram o abandono dos ex-soldados africanos que combatiam nas fileiras do Exército português. Já agora, seria também importantíssimo aferir da existência ou não desses documentos e, inclusivamente, a aferição de um eventual plano alternativo de retracção militar do contingente português na Guiné, na medida em que, apesar de em 1974 o desequilíbrio de forças ser claramente a favor do PAIGC, facto esse que era mesmo reconhecido pelos INTREP com a chancela Reservado ou Secreto, em uso no QG em Bissau, nada fazia prever que o Comando-Chefe da altura pudesse aceite, como aparente ter acontecido com o Exército português na Guiné, que anuiu a quase totalidade das imposições do PAIGC, inclusive, a de nem sequer se ter dado ao trabalho de ter ou de apresentar, durante o processo negocial, um plano próprio de retracção/evacuação dos seus contingentes.
Sintomaticamente, os documentos do PAIGC são omissos quanto a existência de um tal plano, apesar de não podermos, por isso, aferir da sua inexistência, aliás, eu próprio devo reconhecer – e isso é certamente uma das lacunas de que a minha Tese enferma – que em muitas ocasiões, a interpretação dos factos foi sobremaneira condicionada pela existência de documentos disponíveis. No caso vertente, pelos documentos do Arquivo do PAIGC.
Como quer que seja, caro Reis, é pena já não termos o Fabião entre nós, pois seria certamente de grande utilidade uma sua entrevista com o fito de esclarecer as nossas dúvidas metódicas. O seu filho, Rui Fabião, meu antigo professor de português no Liceu em Bissau e até hoje meu amigo, não me conseguiu proporcionar uma entrevista com o pai ainda em vida, em virtude da frágil situação que o pai atravessava em termos de saúde.
Todavia, nas actas dos encontros de Cantanhez (lavradas põe elementos do Exército Português) e que reproduzi no livro que escrevi para o Presidente Aristides Pereira, encontram-se outros nomes que acompanharam o Fabião em todo esse processo. Eles poderão certamente ser úteis.
Do lado do PAIGC (não confundir com o PAIGC actual), para além dos Presidentes Aristides Pereira e Pedro Pires, outros elementos ainda vivos acompanharam de algum modo esse processo. Valeria a pena abordar-lhes.
Em Cabo Verde, é o caso do Comandante Julinho de Carvalho, ex-chefe do Estado-maior, que tomou parte nalgumas sessões negociais em Cantanhez. Relativamente a Guiné, foram os casos de Juvêncio Gomes, a contraparte de Fabião em todo o processo de transição; Lúcio Soares, que tomou parte nas negociações de Londres, creio.
No livro em referência que escrevi para o Presidente Aristides Pereira, entrevistei um número considerável de ex-combatentes do PAIGC, mas não posso agora precisar se terei ou não abordado os aspectos que agora indagamos. Vale a pena reler essas entrevistas, da mesma maneira que afigura-se importante ouvir os guineenses e caboverdianos que referi. Nesse sentido, caso tiveres interesse e disponibilidade, posso tentar facultar os contactos.
Leopoldo Amado
__________
Nota de L.G.
(1)Vd. post de 4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P840 - Curriculum Vitae do nosso doutorando Leopoldo Amado
(2) Vd. post anterior, de 9 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P858: Plano de Evacuação da Guiné (Abril/Outubro de 1974) - I Parte (Paulo Reis)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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