Texto de Lema Santos:
Caro Afonso Sousa (1),
Para já, fico grato pela leitura atenta que dedicaste ao texto que a Direcção da Caserna entendeu como interessante publicar.
Falar do Cacheu representa, para mim, quase metade do meu tempo de comissão. Parece-me pouco justo dedicar-lhe apenas meia dúzia de linhas a Ele, rio Cacheu, e a Todos os que naquelas 95 longas milhas estacionaram ou navegaram, sofreram, combateram ou até tombaram definitivamente.
De um ou do outro lado e foram muitos. Certamente demasiados.
Poderemos sempre recordá-los-los apelando pessoal ou colectivamente à homenagem, invocando o exemplo e a coragem de alguns pela segurança de todos.
Colectivamente, o mais válido e mais sério esforço, será evitar repetições mas ainda que legislação sobre guerra fosse publicada, como se fiscalizaria, multaria ou penalizaria quem não cumprisse ou pisasse o risco?
Para mim, num eventual regresso à Guiné, uma das prioridades de viagem seria revisitar aquele curso de água com características únicas, de Cacheu até Farim, num irresistível e saracoteante misticismo.
Também nas recordações em que me envolvo sempre que o revejo, ainda que apenas em fotografia.
O curso de água com um leito de perfil em U na quase totalidade da extensão e para montante de S. Vicente, embora com açoreamentos pontuais, permitia aquilo que não conheço em nenhures ou seja, navegação com calado de 2,20 m quase a roçar as pernadas do alto tarrafo, como se de um canal se tratasse.
Em algumas zonas diria mesmo a escafear as antenas de comunicações e, com algumas tangentes mal calculadas, até a deixar lá algumas de recordação.
Nestas condições de navegação, forçoso será reconhecer que em alguns locais, para nós representadas pelas abertas na frondosa vegetação dos mangais, lalas, matas, resumidamente tudo o que não fosse o habitual e muito amigável tarrafo, funcionando como um muro de protecção, representava uma excessiva e perigosa exposição a ataques dos nossos amigos de pêto à época.
Admitamos que não era muito fácil esconder 42 metros de patrulha e, como todos os que se sentem acossados, não podendo evitar as passagens sistemáticas por aquelas zonas menos hospitaleiras, procurávamos nas duas Boffors anti-aéreas de 40 mm e mais umas entradas de que dispunhamos antes do prato principal, a sempre excelente companhia nesses momentos, quer como profilaxia quer como terapêutica.
Como rotinas, a simples ficalização ou a escolta a LDG, LDM, LDP ou batelões comerciais, transportando pessoal, material ou víveres.
Como alternativas, o embarque de DFE em Bissau com uma ordem de operações na mochila, rumar até ao Cacheu e, navegando para montante, executar as instruções previstas na ordem de operações, utilizando as LDM - as grandes heroínas da navegação nos baixos, no tarrafo e do encalhe - para efectuar o transbordo do pessoal para terra, normalmente durante a noite.
O controlo da operação a partir da LFG para o CDMG e, na manhã seguinte, o regresso a Bissau aos camarões e às ostras com as respectivas bazookas.
Voltarei à vaca fria no Cacheu e, mais tarde, também para Sul.
Quanto à costureirinha que referes, julgo tratar-se da Pistola-Metralhadora PPSH, de origem soviética, calibre 7.62 (russo), de tambor redondo e que nos anos 60 também fez parte do armamento dos movimentos africanos de independência que se opuzeram a Portugal. Também se ouviam no Cantanhês. Tinha um matraquear próprio com ruído especialmente irritante (haverá algum que o não seja?).
Um abraço de amizade para todos,
Manuel Lema Santos
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Nota de L.G.
(1) Vd. post anterior, nº 843.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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