domingo, 10 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros.

Fotos: © Paulo Raposo (2006)


XIX (e última parte) do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Comentário de L.G. >
O Paulo Enes Lage Raposo, que hoje vive em Montemor-o-Novo, foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70).
Durante a sua comissão, esteve em Mansoa e sobretudo na zona leste (Galomaro e Dulombi), a sul de Bafatá. A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé.
Desde Abril de 2006 que o nosso blogue tem estado a publicar o testemunho (escrito) que o Paulo elaborou em 1997 e que só era connhecido de alguns amigos e camaradas da sua companhia e do seu batalhão. É um documento policopiado, de 65 páginas, com o seu "testemunho e visão da Guerra de África", mais concretamente sobre a história da sua vida militar, desde a sua incorporação, como soldado cadete, em Abril de 1967, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, até à sua mobilização para a Guiné, como Alferes Miliciano da CCAÇ 2405, onde teve como camaradas os membros da nossa tertúlia Rui Felício e Victor David.
Esta unidade partiu para a Guiné em Julho de 1968. O Paulo regressou passou à vida civil "ao fim de 37 meses de tropa". Nesse espaço de tempo teve a imensa alegria da visita do seu pai a Bissau e a grande tristeza da sua partida, para sempre, desta vida.
O Paulo teve a gentileza de me escrever as seguintes palavras no exemplar que me ofereceu: "Como testemunho de gratidão pela tertúlia que proporcionaste na Net. Com amizade. Paulo Enes Lage Raposo. Março 2006".
O Paulo não esconde que tem uma visão própia da "guerra de África" (pp. 55-65), as causas e consequências, o seu contexto histórico e geo-estratégico, 0 25 de Abril, a descolonização, etc., que não coincide (nem tem que coincidir) com a minha, ou com a visão de alguns de nós, mas que eu respeito, que todos respeitamos. Essa é (e continuará a ser), de resto, a regra nº 1 da nossa tertúlia: aceitarmos mutuamente as diferentes leituras e interpretações da guerra de que fomos actores e testemunhos. Essa última parte do seu depoimento poderá ser publicada em altura oportuna.
A parte factual do testemunho do Paulo termina hoje. E é com pena que o digo. Faço votos para que as suas memórias da guerra da Giné não fiquem por aqui. De qualquer modo, o meu agradecimento por este valioso contributo para a reconstituição do puzzle da nossa memória (individual e colectiva). A curta frase com que o Paulo termina a sua história de vida na Guiné, é emblemática e pode seguramente ser subscrita por todos nós: "Odeio as guerras"... Todos nós, que fizemos a guerra da Guiné, ficámos a odiar todas as guerras...
Espero poder conhecer pessoalmente o Paulo, dentro em breve, e dar-lhe um abraço, daqueles de quebra-costelas, como ele faz questão de nos brindar. E quando digo em breve, digo no próximo dia 14 de Outubro, na Herdade da Ameira, em Montemor-o-Novo, se essa for a vontade de mais amigos e camaradas, respondendo a um convite simpático e irrecusável do próprio Paulo. (LG).
_____________________
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 51-53 (1)
A VIAGEM PARA LISBOA

Embarcámos no Carvalho Araújo. Navio pequeno e velho. Qualquer coisa servia para sair de lá. A emoção da alegria da largada não tem descrição. À medida que o navio começa a afastar-se daquela terra, a humidade começa a diminuir. O mar estava chão.

Como estávamos nós de saúde? Mal. A nossa cor era verde e o nosso cheiro tinha-se alterado. Na Guiné tinha tido dois ataques de paludismo, embora tivesse tomado o quinino todas as 5ªs feiras. Os ataques de paludismo deitavam-nos muito abaixo. Primeiro eram uns frios grandes e depois uns calores insuportáveis.

A minha úlcera duodenal estava numa lástima. A bordo seguia um médico que nos fez várias análises. Ao sangue, urina e feses. A bicharada que estava nos intestinos era obra. Tomámos uns purgantes.

Como o navio não estava com muito combustível, o Comandante resolveu acostar na Madeira para reabastecimento. Aquela ilha é realmente bonita. O Capitão André (mais tarde, Presidente da Câmara de Proença-a-Nova, durante 20 anos, até 2005) e eu demos uma volta pelo Funchal num carro militar, gentilmente cedido pelo Regimento local. Flores há-as por todos os lados, é um paraíso. Numa dessas floristas comprámos flores para serem entregues em Lisboa.

O Capitão André manda à sua mulher, com um cartão. Ela estava no fim do tempo para ter uma criança. Eu mando à minha mãe, também com um cartão. Quando cheguei a Lisboa, a minha mãe perguntou-me que cartão era aquele. Tinham-nos trocado.

Do Funchal a Lisboa foi num instante. Começámos a ver terra muito cedo, já estávamos todos acordados, e para fazer tempo para o navio acostar à hora certa ainda fomos fazer um círculo perto do Guincho. Novamente a alegria e a emoção do fim daquele tormento.

A CHEGADA

Estavam lá todos, a família e os amigos, mas o meu pai não estava. Desembarcámos. Mais um desfile e vá de ir para casa. Tudo era diferente. Não só eu me tinha transformado, como cá também tudo tinha evoluído.

Se me custara passar de civil a militar, o inverso depois de 37 meses de tropa foi também muito complicado.

A ansiedade que adquiri no fim da comissão nunca mais me largou. Diminui ou aumenta conforme o cansaço. Está sempre dentro de mim.

Quanto a terrores nocturnos, tive-os durante muitos anos. Por causa de ter adormecido profundamente no mato e não ter ouvido os tiros do inimigo, tive pesadelos pela eventualidade de a companhia avançar e me deixar para trás, só e isolado no mato. Outra situação que me apavorava era a possibilidade de ser novamente chamado para nova comissão como capitão.

Odeio as guerras.

_____________
Nota de L.G.

(1) Vd. posts amteriores:

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

(...) "Entrei para o Convento de Mafra - E.P.I., como soldado Cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência. Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava" (...)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

(...) Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano. Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.

"Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores" (...).

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

(...) "Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc." (...)

5 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

(...) [Spíonla] põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa diz-me: - Você tem sorte.Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente: - Porquê, meu Comandante? - Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão.

"Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso: - Você que se cuide" (...)

7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa


(...) "Seguimos finalmente para Mansoa, em coluna. Como ainda não estávamos armados, nos sessenta quilómetros que se seguiram, íamo-nos perguntando:- E se houver ataque à coluna, como é?

"Mansoa era uma terra importante com ruas alcatroadas. Durante essa primeira noite, o Batalhão que lá estava, o 1911, simpáticos, fizeram uma salva de artilharia à noite para verem a reacção dos periquitos (alcunha dos recém chegados)." (...)


8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

(...) "Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada." (...)


11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(...) "A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra. Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:- Atenção heli, aqui tropa à rasca" (...).

19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste


(...) "Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula. O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

"Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio. Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca". (...)

22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (9): Fome em Campatá e Natal em Bafatá

(...) "Ao meu grupo de combate calhou a Tabanca de Campata. Ali nos deixou a Companhia, por muito tempo e sem qualquer razão, sem comida. Durante cerca de uma semana, praticamente não tínhamos de comer. Dizia-me um soldado:- Ó meu Alferes, a fome é negra!Em face disto, fomos subtraindo galinhas e cabritos à população, que não os queriam vender por serem o único meio de subsistência que tinham" (...).

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

(...) "Estacionámos na margem sul do rio Corubal, nós e a companhia de Madina [CCAÇ 1790], durante toda a noite para protecção. Durante a noite a jangada foi transportando para a outra margem todas as viaturas. Já de madrugada [ do dia 6 de Fevereiro de 1969] e passados todos os carros, foi a nossa vez de atravessar o rio. Como tínhamos por hábito rodar as nossas posições assim que parávamos, a nossa companhia passou para a frente da de Madina e o meu grupo de combate., por sua vez, passou para a frente da minha companhia. Com o meu grupo de combate na frente, a companhia dirigiu-se para a jangada para fazer a travessia. A jangada já estava praticamente cheia e só coube o meu grupo. Para trás ficaram dois grupos da minha companhia [CCAÇ 2405]e toda a companhia de Madina [CCAÇ 1790]". (...)


21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal


(...) "Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné, lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.

"Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio" (...).


26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai

(...) "Era Setembro, e eu estava na altura em Galomaro, juntamente com uma companhia de paraquedistas. O Major Pardal dirige- se a mim, passa-me a mão pelas costas e diz-me:- O teu pai acabou de falecer; o Brigadeiro Nascimento mandou um heli buscar-te, reservou o lugar do Governador na TAP e tens na repartição de pessoal uma licença para seguires viagem" (...).

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(...) "Para as operações é costume contratar carregadores locais, para nos levarem água adicional e munições. Habitualmente não fugiam e era uma forma de dar trabalho na região. Por vezes a verba disponível para estes serviços era gasta em falsos contratos, e eram os soldados que tinham de carregar com os pesos.Estas operações mais compridas eram muito penosas e assim eu, por minha conta, contratava um carregador para me levar a arma, bebidas e comida adicional. O que mais apreciávamos comer no mato era a fruta em calda. Era refrescante e o sumo tinha o açúcar necessário para nos dar as forças suficientes para a caminhada. Por desidratação, em cada operação, perdíamos sempre vários quilos" (...).

10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

(...) "Vivíamos pois no meio da população e nunca tivemos qualquer tipo de problemas. Em que condições íamos para lá? Aos soldados era-Ihes dado um colchão pneumático Repimpa de cor verde-tropa, igual aos que se utilizam na praia. As formigas baga-baga tinham umas tenazes que chegavam a ferir. Resultado: no dia seguinte o colchão estava furado, o ar ia-se e os rapazes passavam a dormir no chão.

"No que me diz respeito, levava a minha cama, colchão, mosquiteiro, frigorífico e cimento, que roubava ao Furriel Tavares, para pavimentar a Tabanca aonde ia dormir.No exterior desta colocava um tambor aberto para receber água, e, com duas esteiras, uma no chão e outra lateral, fazia uma casa de banho onde diariamnete, ao fim do dia, tomava o meu banho e fazia a barba.Junto à cozinha, fazíamos um forno para cozer pão. Tínhamos sempre pão fresco" (...).

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

(...) "Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimo" (...).

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi

(...) "Estávamos em Fevereiro de 1970 e contávamos, por tudo o que já tínhamos passado, ir para os arredores de Bissau, para o descanso, pois a nossa comissão terminava em Maio.Dulombi ficava a sul de Galamaro. Será que ainda tínhamos de ir para lá? Passado pouco tempo de chegado à Companhia surge a ordem para a [CCAÇ] 2405 seguir para Dulombi para instalar um aquartelamento.A desmoralização foi muita. Íamos para pior e bem pior." (...)

7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(...) "Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.

"Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.

"Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele" (...).

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1034: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (18): O fim da comissão

(...) "No dia do embarque formámos novamente nos adidos em Brá, onde o General Spínola faz o agradecimento e se despede. Nesta cerimónia faz-se a chamada dos mortos. É um momento muito emocionante. A medida que se vai pronunciando o nome de cada um que caiu, nós respondemos:- Presente!

"Era uma parte de nós próprios que lá ficou. Porquê aqueles e não nós? Como reagiram os pais daqueles rapazes que não voltaram para casa? A pior coisa que pode acontecer a um pai é perder um filho. Não há nenhum que substitua outro" (...).

Guiné 63/74 - P1059: Estórias do Zé Teixeira (14): A Maria-tira-cabaço-di-branco (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


Guiné > Ingoré > 1968 > O 1º cabo auxiliar enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler, no início da sua comissão que o levaria do Cacheu (Ingoré) até ao Sul, às regiões de Quínara (Buba, Empada) e Tombali (Quebo, Mampatá, Chamarra).


Foto: © José Teixeira (2005)


Continuação das estórias do Zé Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (1)


A Maria tira cabaço di branco


Quando chegamos a Empada (2), lá aparece a Maria, mais a irmã, a dar-nos as boas vindas. Rapidamente se soube da sua arte e mestria em tirar cabaço a branco e satisfazer as necessidades a quem já sabia da poda, para desgraça da nossa jorna, já de si tão pequena e que se esvaía na cerveja e agora tínhamos a Maria.

Um alferes, a quem não foi contada a história da pequena, tenta o engate e, záz!, arranjou namorada que até ia ao quartel, durante o dia, prestando-se para todo o serviço. Ninguém lhe podia tocar, era a namorada do alferes, durante o dia, mas, à noite, zumba que zumba com toda a gente que tivesse uns patacõezitos para gastar. Até faziam fila e a irmã dava uma ajuda.

Houve cenas engraçadas com a Maria-tira-cabaço. Um camarada e amigo encabaçado, tinha vontade e. . . inexperiência, vergonha, medo, falta de jeito, etc. Então foi meter uma cunha a outro companheiro para pedir à Maria para o atender bem. Este foi, meteu a cunha e gozou de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco tinha de ser bem pago !

Tanto quanto pude apreciar até o Nino sabia da sua vida, pois num célebre ataque ao cair da noite, as primeiras canhoadas foram para a casa da Maria, só que os brancos que lá estavam eram velhinhos e voaram ao sentirem o som das saídas do canhão.

O pobre do alferes é que, quando soube, rebentou de raiva. E foi uns dias depois, quando foi à sua procura na morança, um dia ao fim da tarde (talvez a fosse convidar para jantar): encontrou o lugar ocupado e gente à espera...
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post anteriores:

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1055: Estórias do Zé Teixeira (12): O Balanta que fugia do enfermeiro

4 de Setembro de 2006 >

Guiné 63/74 - P1042: Estórias do Zé Teixeira (9): camaleões, putos e cobras

Guiné 63/74 - P1043: Estórias do Zé Teixeira (10): O embalsamador amador

Guiné 63/74 - P1044: Estórias do Zé Teixeira (11): As vitaminas abortivas

(2) Vd. posts de:

1 de Janeiro de Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(...) O diário do Zé Teixeira foi já publicado, entre 1 de Janeiro e 14 de Março de 2006. É composto por 19 posts. Eis como o Zé Teixeira, no post de 1 de Janeiro de 2006, resumiu as saus deambulações por terras da Guiné:

"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].

"Aí a CCAÇ 2381 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.

"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt


Capa do romance de Curzio Malaparte (1898-1957), Kaputt (Lisboa, Edições Livros do Brasil, 1962. Tr. de Amândio César. Edição original italiana: 1940).



Mensagem de 29 de Agosto de 2006:

Caro Luís, aqui vai um terceiro texto e algumas notícias:

Primeiro, e sem insídia, sugeri ao Paulo Raposo que tivéssemos este ano pelo Natal o nosso primeiro encontro bloguista ao vivo. Como tu és o pai espiritual desta matéria-prima, vê se queres animar a malta.

Segundo, em função de algumas leituras que fiz durante a guerra e que vou referir no blogue, sempre que possível seria interessante ilustrar com tais livros. Por exemplo, no texto de hoje faço referência a Kaputt e parece interessante ilustrar, já que curiosamente o livro está à venda tal como o li. Na primeira flagelação que sofri em Missirá, em 6 de Setembro de 1968, estava a ler As Sandálias do Pescador, por Morris West, editado pela Clássica Editora. O livro ardeu, como sabes, não tenho ilustração. Paciência.

Terceiro, espero enviar-te ainda esta semana três fotografias referentes a matérias que vamos abordar. Terei a preocupação de dar a informação que julgo a mais conveniente, já que tu tens sido bondoso nos comentários que fazes. Se considerares toda esta prosa está a mostrar-se excessiva, não te coíbas de me fazer reparos.

Recebe um abraço do Mário.


Kaputt


Na segunda semana de estar em Missirá, vi com os meus olhos a minha morança pronta. A palha fora toda limpa e a morança envolvida de palha nova, o chão recebeu saibro e o interior caiado. Nesse dia, um soldado das milícias, Ieró Candé, avançou para mim e olhou-me determinado:
-Quero ser guarda costa de alfero!

Como não conhecia tal intendência, perguntei-lhe o que era um guarda costas e ele respondeu:
-Alguém que leva a roupa de alfero à Binta (a lavadeira), prega os botões que a Binta estraga, limpa a arma, arruma a habitação de alfero, engraxa a bota e se necessário dá a vida pelo alfero.
Ieró foi aceite, pois nunca pensara que a vida humana era menos classificável que engraxar botas e aquela sinceridade tocou-me até aos dias de hoje. Passei horas a arrumar os meus discos, fez-se com tábuas um pequeno armário para a roupa e com mais outras tábuas e tijolos de adobe estantes para as centenas de livros que me iriam fazer companhia até arderem em Março de 69.

Na arrumação dos livros, encontrei cheio de alegria o Kaputt, de Curzio Malaparte. Para quem não conhece esta obra - prima da literatura universal, seguem-se as minhas impressões e recordações. Comprei o Kaputt em 1964, e não supunha que aquela ferocidade inumana, aquela bestialidade da II Guerra fosse transponível para outras guerras. Estão ali registados os horrores do nazismo e do facismo, descritos num estilo que hoje se poderá chamar de Romance de não-ficção (aliás, A Sangue Frio, de Truman Capote, que não li antes nem durante a guerra, é outra obra- prima deste estilo).
Malaparte era um jornalista brilhante, um enfant terrible do fascismo italiano, ideologia com o qual veio romper, sendo mesmo perseguido pela Gestapo devido à crueza dos seus comentários na correspondência que enviou da frente russa. O livro é redigido com extrema elegância, pautando-se pelo cinismo e a narrativa frontal do horrível, do imundo e da beleza.

Kaputt (palavra alemã que quer dizer estragado, perdido, estilhaçado e reduzido a pedaços), é uma narrativa em cinco partes e com protagonistas completamente diferentes. Em Os Cavalos, Malaparte encontra-se com o Principe Eugénio da Suécia, depois do seu regresso da frente filandesa. Fala-se de Paris, de Capri, dos prisioneiros soviéticos que comiam os cadáveres dos seus camaradas no campo de Smolensk, dos cavalos russos que caíram num lago e gelaram, formando a composição mais inacreditável que é possível com as cabeças de cavalo apontadas a outra margem do rio.

O irmão do Gustavo V da Suécia chora mansamente enquanto Malaparte descreve os fuzilamentos e as matanças dos nazis na frente russa, os pogroms dos fascistas romenos aos seus judeus.
Em Os Ratos que li sempre como o mais pungente episódio sobre qualquer guerra e em qualquer cultura, Malaparte encontra-se com Hans Frank, o Governador Geral da Polónia em vários momentos. Num ambiente de verdadeiro encontro do Renascimento, rodeado de altos dignatários do nazismo, fala-se dos judeus empilhados nos guetos de Varsóvia e outras cidades e os doutrinadores raciais de Hitler expendem considerações sobre a extinção dos ratos judeus. Não resisto esta transcrição que me apareceu durante anos em sonhos:

- Repare neste muro - disse-me Frank.- Vê realmente essa terrível muralha de cimento eriçada de metralhadoras de que falam os jornais ingleses e americanos? Na voz arrogante de Frank havia um não sei quê que eu julguei reconhecer, alguma coisa de triste: uma crueldade humilde e triste.
- A atroz imoralidade deste muro - respondi - não consiste apenas no facto de impedir que os judeus saiam do guetto, mas no facto de impedi-los de aí entrar.
- E contudo - disse Frank, rindo - embora a violação da proibição de sair do ghetto seja punida com a morte, os judeus entram e saem à vontade.
- Escalando o muro? - Oh, não! - responeu Frank. - Saem por pequenas aberturas, semelhantes a buracos de ratos, cavam durante a noite na base do muro e escondem de dia com terra e folhas. Enfiam-se por esses buracos e vão à cidade comprar víveres e roupas. O mercado negro do guetto pratica-se em grande parte através desses buracos. De vez em quando, alguns desses ratos caem na ratoeira: são crianças de oito a dez anos, não mais arriscam a vida com vedadeiro espírito desportivo...
- Em Cracóvia - disse Frau Wächter - o meu marido construiu em redor do ghetto um muro à oriental, com curvas elegantes e bonitas seteiras. os judeus de Cracóvia não têm razão de queixa.É um muro muito elegante, em estilo judaico.
Todos começaram a rir, batendo os pés na neve gelada. - Ruhe! (Silêncio) - disse um soldado que, de espingarda apontada estava ajoelhado a alguns passos de nós, escondido por um montão de neve.

O soldado visa um buraco cavado num muro à flor do chão. Um outro soldado, ajoelhado atrás dele espiava por cima do ombro do seu camarada. De repente, este disparou. A bala atingiu o muro precisamente no bordo do buraco.

-Falhou! - exclamou alegremente o soldado, carregando de novo a arma. Frank aproximou-se dos dois soldados e perguntou contra quem disparavam. - Contra um rato! - responderam eles, rindo rudiosamente. -Contra um rato? Ach so! - disse Frank ajoelhando-se para olhar por cima do ombro do soldado. Tínhamo-nos aproximado também e as mulheres riam e meneavam-se, erguendo as saias até meio da perna como fazem habitualmente as mulheres quando se falam de ratos.

-Onde está ele? Onde está o rato? - perguntou Frau Brigitte Frank. -Achtung! - disse o soldado fazendo pontaria. Pelo buraco cavado na base do muro vimos aparecer um tufo de cabelos negros desgrenhados: depois duas mão emergiram do buraco e apoiaram-se na neve. Era uma criança.

O tiro partiu. Desta vez ainda, falhou o objectivo por pouco. A cabeça da criança desapareceu. -Dá cá isso- disse Frank com impaciência- nem sequer sabes servir-te de uma espingarda!- Apoderou-se da arma e fez pontaria.
A neve caía sobre o silêncio.

A terceira parte chama-se Os Cães. Num encontro entre diplomatas, Malaparte descreve a chacina de militares soviéticos na Ucrânia. Na quarta parte Os Pássaros, a barbárie continua à solta e Malaparte conversa com a Princesa Luísa da Prússia. Falam das atrocidades praticadas pelos fascistas croatas. Na quinta parte, As Renas, Malaparte descreve o seu encontro com Himmler na Finlândia. Por fim, na sexta parte, As Moscas, é o encontro de Malaparte com Edna Ciano, a filha de Mussolini, os bombardeamentos a Nápoles pelos Aliados e a premonição do fim da guerra.

Como escreveu Malaparte: "A alegria cruel é a mais extraordinária experiência que tirei do espectáculo da Europa no decorrer destes anos de guerra.". Daí, igualmente, a impressão que Kaputt me voltou a trazer nessas noites de Agosto de 68, quando o reli sofregamente, entre dois turnos de sentinela. Porque nascera outro hábito da minha existência. Com o auxílio de um 1º Cabo e com a chancela de um furriel, eu aprovava os turnos de sentinela entre as 18 horas e as 6 horas da manhã. E aparecia de surpresa, fosse a que horas fosse para confirmar que tudo está a correr bem. Centenas de pessoas dependiam da vigilância destes guardas. Falhar era imperdoável.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > 1969 > A morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião de um grande ataque ao destacamento em Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, inclkuindo os seus haveres mais preciosos: os livros e os discos...
Foto: © Beja Santos (2006)


Quando cheguei a Missirá os meus soldados eram números. Eu dizia assim:
-Quero falar com Mamadu Silá.
Alguém respondia:
- Vai chamar o 109. 
Eu dizia:
-Diz ao Cherno para vir imediatamente. 
 Outra voz proclamava:
- Vai chamar o 118.

Nasceu aí uma ordem de serviço: "A partir de amanhã, toda a gente nos pelotões será conhecida como gente. Pode haver números, mas no trato seremos gente!". Quem escrevia esta declaração seria e continua a ser tratado por Veiga Santo, Beja Santo, Mário Santo e, excepcionalmente, Mário Beja Santos ou coisa mais parecida.

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1057: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > s/d > Um dos valentes soldados do Pel Caç Nat 52, e um dos novos amigos do Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos, enviado em 25 de Agosto de 2006 :

Caro Luís, agora é que eu descobri que tenho episódios para contar entre Agosto de 68 e Setembro de 70, com as sequelas do meu regresso à Guiné em Janeiro de 90 e de Setembro a Dezembro de 91.

Espero cumprir cabalmente a missão que me propus. Para a semana enviar-te-ei novo sobrescrito com fotografias. Não tenho palavras para te agradecer os cuidados que vais pondo na minha prosa ilustrada. Procurarei corresponder a tais provas de estima. Como já te escrevi, ficarás fiel depositário de toda a minha documentação. Os aerogramas do Contra-Almirante Teixeira da Mota, se houver condições, poderiam vir a ser oferecidos a um departamento da Guiné, já que ele amou profundamente aquela terra. Espero termos vida bastante para encaminhar para os locais certos papelada que vai pertencer à História.



Os inolvidáveis encontros humanos, e a fala da razão e do coração: os meus novos amigos

por Beja Santos

Na minha primeira semana em Missirá (1), lembro-me de ter anotado numa folha:

"1- Os míudos precisam de aulas, temos que pôr uma escola a funcionar; 2- Não se pode comer desta maneira: os cozinheiros têm que ir estagiar a Bambadinca; 3- Importa calendarizar as obras de segurança do quartel: estacas e arame farpado, três fiadas novas; pedir metralhadoras modernas, já que não se vai a parte nenhuma com a Breda e a Dreyse; fazer casas de banho pois os militares vão permanentemente atrás da árvore..."

Quanto à escola, chamei o Zé Pereira, um papel de Bissau que tinha frequentado a missão católica. Era 1º Cabo, falava primorosamente, tinha mesmo uma encenação professoral. Disse-lhe:
- Zé, temos cerca de 40 crianças que sabem agricultura e que vão connosco com uma Mauser na mão até Bambadinca. Temos que as preparar para fazer exames de instrução primária. O que é que tu sugeres?.

O Zé lembrou-me que era militar e que não queria abandonar tal estatuto. Cortei rápido:

-Vamos fazer uma instalação para a escola, tu propões-me um professor, vou arranjar livros, cadernos e ardósias e toda a gente do pelotão de caçadores nativos e das mílicias de Missirá e Finete vai aprender a falar português.
Para quem não se recorda, o português era falado entre brancos, entre brancos e alguns guineenses como o Zé Pereira. Eu recorria sistematicamente a vários intérpretes: ao Zé, ao Domingos Silva (quando não estava bêbedo), ao Albino Mamadu Baldé, Comandante da Milícia de Missirá ( também conhecido por Samba, não me perguntei porquê), entre outros, visto ser interpelado em crioulo, mandinga e fula com a maior das naturalidades. Interpelado em quê? Para levar doentes ao posto médico; para fazer uma coluna a Finete para fazer sacos de arroz; para trazer géneros, equipamento militar e até petromaxes (mesmo com as promessas do Spínola, deixei Missirá sem electrificação).
A escola foi negociada com o régulo, acertou-se o horário das aulas, fui arranjar um professor ao Bambadincazinho (avisei os arranchados que iriam comer "um pouco menos bem", já que algum dinheiro seria destinado ao professor, o que ao princípio deu contestação, mas no mês seguinte foi aceite, quando passei a regatear mais comida na CCS [do BCAÇ 2852, com sede em Bambadincxa], episódio a não perder num dos próximos capítulos), o Zé e eu passámos a dar aulas à tropa, ao sabor dos tempos livres (o Luis Graça é capaz de descobrir uma fotografia alusiva).
Passando para a comida, o frango praticamente cru e o arroz espapaçado que o Doutor me atirou num prato de alumínio pelas 5 horas da tarde daquele dia 4 de Agosto de 1968 não me saem da memória. Passei a viver em levantamento de rancho espiritual. Nessa altura era o Cabo Veloso que exercia as funções de vagomestre, arroz num lado, caixa de folha de flandres com bacalhau noutro, caixas com leite achocolatado noutro e ainda hoje tenho um zumbido nos ouvidos com o barulho do frigorífico que trabalhava a petróleo.
O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso.
Resta dizer que as instalações onde comíamos e a cozinha eram alfurjas, a que chamaríamos hoje espaço multiusos. Com efeito, mal se dava por fim a refeição, havia quem jogasse o loto a feijões, quem escrevesse aerogramas e ouvia rádio (ouvíamos o Manuel Alegre a partir de Argel, como se ouviam igualmente as canções do momento ou os grandes clássicos a pedido da tropa, tipo Adeus, Guiné ou Mãe, estás tão longe de mim). Foi à porta desta espelunca que nos fins de Setembro uma rajada de PPSH levou o telhado e o Teixeira das transmissões atirou-se para dentro de um bidão com restos de garrafas. Eu depois conto.

Quanto ao armamento, foi guerra que perdi para sempre. Tirando algumas HK21 e depois o morteiro 81, fiquei sempre reduzido a armamento pré-histórico. E, como se verá adiante, eu era credor de ter uma peça de artilharia para responder às sucessivas arremetidas do PAIGC.

Vou ganhar a batalha da higiene, pois claro. A engenharia de Bissau irá oferecer-nos um engenhoso mecanismo de 6 bidões que irão facilitar a limpeza de quem combate e patrulha diariamente Mato de Cão. A chegada deste mecanismo a Missirá é um episódio de gesta heróica. As amizades estreitam-se. A confiança estabelece-se. A autoridade surge espontaneamente. Nenhuma provação em tempo de guerra prescinde de valores e da sinceridade da relação humana. Naquele ponto do Cuor, estabeleciam-se misteriosas concordâncias entre o coração e a razão. Coisas que também se irão contar.
___________
Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves, ao centro, ladeado pelo seu impedido, o Mamadu (à esquerda) e o cozinheiro, herói desta estória (à diereita).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Texto do Joaquim Mexia Alves, com data de 3 de Agosto de 2006:

Caro Luis Graça:

A propósito de apanhados (1) e outras vivências, junto fotografia tirada no Mato Cão, onde estou eu, o Mamadu, impedido da messe, e o cozinheiro, de quem não lembro o nome, mas penso que pertenceria ao Pelotão de Morteiros de Bambadinca, que tinha uma secção no Mato Cão (2).

O referido cozinheiro era um bom rapaz, muito ingénuo e um pouco apanhado, e que nunca tinha saído para o mato (já lhe chegava estar no Mato Cão!).

Retenho esta história:

Um dia, irritado com as graças e ditos acerca da sua pessoa, declarou solenemente que se ía embora.

Meteu pernas ao caminho, passou o arame farpado no lado contrário ao do Rio Geba e continuou pela mata dentro.

Claro que eu não fiquei nada preocupado e disse ao resto do pessoal:
- Não há problema. O gajo anda um pouco, vê-se sozinho e volta a correr.

Só que o tempo foi passando e o cozinheiro não havia modo de voltar.

Ao principio fiz um pouco de finca-pé, do tipo "Se pensas que te vou buscar estás muito enganado", mas depois comecei a ficar preocupado.

Lá vesti qualquer coisa mais conveniente para sair para a mata, peguei nas armas e acompanhado - salvo o erro, pelo Furriel Bonito -, saí do perímetro para ver se o encontrava.

Não estava muito longe, mas como tinha começado a escurecer o medo era tanto que já não andava nem para a frente nem para trás.

Lá o trouxemos para dentro, preguei-lhe a descasca conveniente e, claro, no outro dia a seguir lixou-se, porque foi mais gozado que antes.

No entanto todos gostavam muito dele e por isso era tudo foi feito com muita camaradagem.

Mais uma história leve, que também servia para nos irmos libertando das tensões.

Abraço

Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029

_______

Nota de L.G.

(1) Sobre a temática dos cacimbados ou apanhados, vd. entre outros os seguintes posts:

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P992: 'Estar apanhado' dava muito jeito e algum gozo (Joaquim Mexia Alves)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P973: Estar ou fazer-se 'apanhado' para não enlouquecer (Jorge Cabral)

19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P972: Cacimbados ou apanhados do clima ? (Zé Teixeira)

17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P965: 'Cacimbados', 'apanhados do clima'... ou os nossos comportamentos de risco, bravatas, diabruras, loucuras... (Luís Graça)

13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)


15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)

(2) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P1055: Estórias do Zé Teixeira (13): O Balanta que fugia do enfermeiro (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas (1).

Foto: © Humberto Reis (2006).


Continuação das estórias do Zé Teixeira (ex-1º cabo auxiliar enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (1)


O Balanta que fugiu à seringa


Em Mampatá Forreá, os dois únicos balantas que lá conheci (a população era Fula, Futa-fula e Mandinga) eram lenhadores, contratados pela tropa a troco de uma marmita de comida diária para cortarem lenha para a cozinha militar.

Um deles tinha tanta força como de ingenuidade. Um dia peguei numa faca e disse-lhe que o ia matar. Desatou a correr e eu atrás dele, a rir-me às gargalhadas, correndo os dois a tabanca toda.

Ninguém sabia o que se passava nem entendia porque quando eu parava, atrás de uma morança, ele parava e, se eu começasse a correr, ele fugia por entre as moranças, a rir-se, mas sempre longe de mim. Um bom espectáculo para um fim de tarde de alguém que apenas precisava de queimar o tempo e ainda faltava tanto .

Só parámos, quando deitei a faca ao chão. Depois demos um abraço e . . . fizemos as pazes. Certo dia acertou com o machado num pé., cortando profundamente um dedo. Por pouco não traçava o osso por inteiro.

Dirigiu-se à enfermaria, ao ar livre, isto é, ao cantinho onde todos os dias eu montava o meu engenho de enfermaria.

O meu dilema era completar a obra do machado e sacar o dedo ou tentar suturá-lo, na esperança de o osso solidificar. Ou, então, aguardar dois dias pela avioneta do correio e mandar o embrulho para Bissau.

Optei pela sutura, lavei muito bem o pé - que talvez nunca tivesse sido lavado na vida -, e preparei a seringa para a anestesia local. Ele baixa a amostra de calções mais negros que a sua pele, convencido que ia tomar uma injecção. Quando se apercebe que ia ser picado no pé, começa a gesticular que não. No pé, não. Claro que eu não sabia balanta, ele não sabia crioulo, nem português. Assim não nos entendíamos, mas ele encontrou a solução. Desata a correr pela aldeia fora com o dedo dependurado e a sangrar. Pica no pé, nunca, só no traseiro.

Passado algum tempo lá voltou. Com a ajuda do companheiro, conseguimos entendermo-nos melhor. Fiz de novo a higienização da ferida, suturei como pude e passados uns dias, com a ajuda de umas picas de penicilina lá se curou e voltou ao trabalho de lenhador para ter direito a comer (os nossos restos).

Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)


Guiné-Bissau > Região de Quínara (Buba) > Empada > Abril de 2006 > De novo, o pai, Xico Allen, e a filha, Inês, juntos na pesquisa de vestígios da presença dos Metralhas (CCAÇ 3566) nos já idos tempos de 1972/74.


Foto: © A. Marques Lopes (2006)


1. Mensagem que me foi enviada, em 26 de Agosto último por Maria Clarinda Gonçalves, viúva de um camarada nosso, da CCAÇ 3566 (Empada/Catió, 1972/74)

Viúva de um ex-combatente dos Metralhas

Lembram-se certamente do António Joaquim Rosa Gonçalves, também ele pertenceu à vossa companhia, também ele foi um metralha... Pois eu sou a viúva dele, que era grande amigo do Xico Allen (1) e do Joaquim P. Silva, o brasileiro (2), e mais outros (3).

O meu marido falava tanto dos amigos, tinha tanta coisa para contar de Empada, o meu filho andava sempre a pedir ao pai para falar dos amigos da tropa e, claro, lá vinham mais histórias.

Por curiosidade fui à Internet e dei comigo a pesquisar sítios sobre a Guiné e a CCAÇ 3566. Gostei do que li e vi, lembro-me perfeitamente do meu marido falar de alguns nomes de vocês, senti que o meu marido deixou em mim o gosto pela vossa companhia, OS METRALHAS.

Agora quero que todos vocês, OS METRALHAS, fiquem a saber que, a quando da doença do meu marido, recebi apoio que da parte do Xico Allen e do Joaquim Pinheiro da Silva , o brasileiro (este mesmo estando do outro lado do Atlântico, as dezenas de vezes que telefonava para saber do amigo Rosa!).

Não me esquecerei também de um colega vosso que apareceu no hospital para saber como o meu marido se encontrava, e como a situação era muito complicada, prontificou-se a nos apoiar, a mim e ao meu filho. Nunca mais o vi para lhe agradecer pessoalmente.

Agora passados 7 anos após a morte do meu marido, quero agradecer a todos por terem sido tão amigos dele, não deixando de sublinhar o quanto é grande e bonita a amizade que vos une, amizade essa que transmitiram para nós, mulheres,como é bom saber que ao longo dos anos ainda mantêm bem vivas as lembranças, a amizade.

Sendo mulher de um dos vossos e já não o tendo junto de nós, ele e outros colegas que já partiram deste mundo continuarão a estar sempre nos nossos corações. A todos OS METRALHAS espero que se mantenham sempre unidos porque uma amizade como a vossa já é uma raridade nos dias de hoje. Além disso, quantas lembranças há ainda em cada uma de vós!

Maria Clarinda (Lina) e Venâncio Gonçalves.

2. Comentário de L.G.:

É uma mensagem singela mas que nos toca a todos, esta da Maria Clarinda Gonçalves que já viu o seu companheiro partir, precocemente, e que vem agora, através deste espaço que é o nosso blogue, agradecer as provas de amizade e solidariedade que recebeu, ela e a sua família, por ocasião da doença e da morte do nosso camarada da CCAÇ 3566, o Rosa Gonçalves. Aqui fica o convite para ela se juntar à nossa tertúlia, se assim o entender, e partilhar connosco as memórias da Guiné, do nosso Rosa Gonçalves (aerogramas, fotos, etc.).
_________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 1 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P831: Do Porto a Bissau (23): Matando saudades de Empada (A. Marques Lopes e Inês)

(2) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIV: Que maravilha de trabalho (Joaquim Pinheiro, CCAÇ 3566, Empada/Catió, 1972/74)

(3) Sobre outros camaradas da CCAÇ 3566 - Os Metralhas, vd os posts de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)

Guiné 63/74 - P1053: Corrigindo a foto com o monumento da CART 2716 (David Guimarães)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > 1972 > Monumento mandado erigir pela CART 2716, em princípios de 1972. Esta unidade foi substituída pela CART 3492, a que pertenceu originalmente o nosso camarada Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) , CCAÇ 15 (Mansoa ).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Guiné > Xitole > 1969/70 > Guiné >Xitole > 2º semestre de 1970 > Copluna logística Bambadinca-Xitole: da esquerda para a direita: o fur mil Humberto Reis, da CCAÇ 12; o alf mil cav Vacas de Carvalho, comandante do Pelotão Daimler 2406; o fur enf Godinho, da CCS do BART 2917; e o fur mil T. Roda, também da CCAÇ 12.

Foto: © Humberto Reis (2006)


Mensagem do David Guimarães, datada de 4 de Setembro último:


Luís:

E eis-me chegado de férias... Pronto, acabaram. E logo vim ver a Guiné, o nosso blogue, outras novas velhas histórias, de 30 e mais anos. E valeu a pena...

Não há dúvida: o Mexias Alves foi para o Xitole quando eu já estava em fim de comissão terminando-a em Bafatá... Mas - e aqui é que sou chato - ponho-me a olhar os pormenores...

Ora, vamos lá corrigir a fotografia do Xitole, com o nosso monumento que está ao contrário... no post de 11 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1033: Monumento da CART 2716, Xitole, 1972 (Joaquim Mexia Alves)

Envio a cópia direita da fotografia - pois que, se fosse como na figura anteriormente publicada, o monumento não estava à entrada como o deixámos e as letras [CART 2716] não estavam invertidas...

Anexo a fotografia direitinha... Esse momumento encontrava-se à frente onde o Humberto está com o macaquito algures numa fotografia e junto à Daimler do Vacas de Carvalho, bem perto da porta de armas do quartel - acampamento, claro..

Pronto, um abraço ainda com sabor a férias, num regresso lento ao trabalho...



David J. Guimarães

Ex-Fur Mil At Artilharia e Minas e Armadilhas
CART 2716 / BART 2917
Xitole (1970/72)

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1052: Pel Caç Nat 63: A paz em Missirá (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Missirá > 1971 > Jorge Cabral, comandante do Pel Caç Nat 63, o mais paisano dos oficiais milicianos que eu conheci na Guiné (LG)

Foto: © Jorge Cabral (2006)


Texto enviado, em 24 de Agosto último, pelo nosso camarada Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)

Amigo,


Sei que é tempo de férias, mas aí vai texto acompanhado de fotografia onde apareço arranjadinho para ir a Bambadinca.


Tenho aproveitado estes dias para revisão do material publicado no blogue, o qual merece um estudo.


Por ora, um Abração, com votos de descanso e Paz.


Jorge



A Paz em Missirá

Estivemos lá, é certo. Alguns nos mesmos sítios. Iguais foram os sons, as cores, os cheiros. Diferentes as memórias… O que recordamos e o que esquecemos, tem a ver com o que fomos lá e ao longo da vida, e reflecte a nossa forma de estar e ser, quase quarenta anos passados.

É impossível sentir o que sentíamos e pensar o que pensávamos, então. O que agora contamos surge filtrado pelo tempo, pela razão, pela experiência da vida. Tentamos reconstruir o ontem, com a cabeça de hoje e dessa forma moldamos uma realidade, a nossa verdade, inteiramente lícita e legítima, mas não obviamente única.

Menos de um ano após a saída do Beja Santos, fui eu para Missirá. Já contava quinze meses de comissão, conhecia o Mato Cão, passara uma temporada em Finete, e convivera com o Saiegh, o qual me havia informado sobre o que iria encontrar.

Missirá constituía um Destacamento isolado, de importância quase simbólica, e com diminuta capacidade de intervenção, numa área de forte implantação do PAIGC. As operações na zona eram escassas. Enquanto lá estive, apenas tomei parte em duas. Fui, a título individual, com os Páras a Madina/Belel, creio que em Abril de 1971, e com a CCAÇ 12 a Salá, já em Julho do mesmo ano.

Assim, e com exclusão das Seguranças em Mato Cão, a actividade operacional resumia-se a alguns patrulhamentos, o que me deixou tempo para passear. Gostava muito de ir pescar à granada, no rio Gambiel, junto ao qual fiz um prisioneiro que praticamente se entregou com arma e tudo, e me forneceu informações curiosas sobre os comerciantes de Bambadinca… Levei-o ao Batalhão, onde inventaram uma ordem de patrulhamento, que eu cumprira com óptimos resultados…

Também tentei, e quase consegui, restabelecer a ligação rodoviária com o Enxalé, como já relatei. Comigo, nunca o quartel foi atacado, o que me levou a pensar que os turras se haviam transferido, apesar de encontrar vestígios da sua passagem, presumivelmente para Mero. Aliás, por essas bandas encontrei um porco, não tendo percebido se o animal havia fugido, ou se se tratava de uma oferta… Comido foi e em festa…

Ainda hoje não compreendo as razões desta Paz, tanto mais que quando visitei Madina/Belel (1), constatei o poder e importância da base ali existente. Bem armada e com significativa guarnição, possuía abrigos, posto de socorros, escola e um recheado depósito de víveres, com centenas de quilos de arroz. Teria o respectivo Comandante, Corca Só, sido atacado de preguiça? Ou convencera-se do meu inventado parentesco com Amílcar Cabral? (2)

Claro que tão estranha quanto pacífica situação gerou opiniões, palpites, invenções, dizendo-se no Batalhão que eu era amigo dos turras. Quanto aos Africanos, não tinham dúvidas.:
- Alfero Cabral tem grande feitiço.

Estou em crer que tinham razão!

Jorge Cabral


P.S.

1. É verdade que sofri três mortos e um ferido, mas por via de minas, que rebentaram sempre atrás de mim. Quando teriam sido colocadas?

2. Constitui uma dolorosa surpresa a revelação de que o meu Amigo Saiegh coleccionava orelhas. Conheci-o muito bem, cheguei a jantar em casa dele, em Bissau, e nunca suspeitei que se dedicasse a semelhantes práticas. Antes pelo contrário, quando aconteceu o tristíssimo episódio da cabeça cortada pelo João Uloma, o Saiegh foi dos poucos da Companhia de Comandos Africanos a criticar o feito (3).

__________

Notas de L.G.

(1) V. post de 27 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P918: Operação Tigre Vadio (Março de 1970): uma dramática incursão a Madina/Belel (CAÇ 12, Pel Caç Nat 52 e outras forças)

(2) Vd. post de 5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...

(3) Vd. posts de:

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

23 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXXIV: Lista dos comandos africanos (1ª, 2ª e 3ª CCmds) executados pelo PAIGC (João Parreira)

11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Guiné 63/74 - P1051: Pel Caç Nat 63: Uma Mina em Sancorlá, poema de Jorge Cabral

Texto do Jorge Cabral (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71)


Amigo Luís,

Então essas férias? Certamente óptimas! Por mim, cá estou, preparado para mais um ano de trabalho duro, e às vezes frustrante. Escrevi muito na Guiné, principalmente poesia, tendo deixado todo o material no Biafra, como já relatei. O Blogue porém deu-me força para tentar recuperar alguns escritos, que havia enviado a familiares e amigos. Assim, descobri mais um poema, que ora envio acompanhando um Grande Abraço.

Jorge



P.S.

1) Também eu não entendo as razões que ditaram a implementação do destacamento do Mato Cão, talvez em Setembro de 1971 (1).

2) O Pel Caç Nat 52, comandado na altura pelo Nelson Wahnon Reis, voltou a Missirá em Julho de 1971, ficando o Pel Caç Nat 54 em Fá, e o Pel Caç Nat 63 na Ponte do Rio Udunduma.

3) Quando cheguei em Junho de 1969, dependiam de Bambadinca, apenas dois Pelotões de Caçadores Nativos, o 52 e o 63.

4) O Pel Caç Nat 54, pertencia a Mansoa e o Pel Caç Nat 53, andava pelo norte, tendo vindo para o Saltinho, substituir o 63. Era então comandado pelo Alferes Mota, que conheci muito bem, e que infelizmente já faleceu.



Uma Mina em Sancorlá
Segundos? Um Minuto?
O Tempo desta Morte
Meio corpo evaporado
Só resiste o olhar
Quem a terá pisado?
Fui eu que tive sorte
Ou ele que teve azar?

Depois a Raiva, o Medo
Sim, Beber
(Chorar só em Segredo)

E para sempre o Luto!


Missirá, 14/02/71
J. Cabral

_____________

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1050: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (7): O espectro de Kafka nas guerras do Cuor



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Missirá > s/d > O Alf Mil Beja Santos, de óculos escuros e lenço azul ao pescoço, com uma secção do seu Pel Caç Nat 52, em cima de um burrinho (Unimog), na estrada Missirá-Finete.

Foto: © Beja Santos (2006)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Missirá > s/d > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, de óculos escuros, ao lado do condutor e, na frente da viatura, o furriel Saiegh, na picada da bolanha de Finete

Foto: © Beja Santos (2006)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, com data de 22 de Agosto de 2006:


Caro Luis, aqui te deixo um texto que fica a aguardar o teu regresso. Tu tens sido exímio na ilustração e nos comentários aos materiais que te dei. Vais encontrar o teu computador inflacionado com os meus mails que subitamente se reproduziram. Espero que tudo já esteja consertado em termos informáticos. Continuação de férias retemperadoras e recebe um abração do Tigre de Missirá.



O espectro de Franz Kafka nas guerras do Cuor

por Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)


A 6 de Agosto [de 1968], de manhã, o rádio fez chegar a mensagem de que iam passar três barcos civis em Mato do Cão, pelas 3 horas da tarde. Constitui-se uma coluna de 25 homens, bazuca, morteiro 60 e três dilagramas. Como era a minha estreia, pedi ao Saiegh (1) que percorréssemos a estrada no seu troço a Missirá/Cancumba, Morocunda, Gambana, Mato do Cão. Consigo ainda visualizar um céu azul eléctrico, uma estrada bem pronunciada (se bem que o capim fosse tomando conta das bermas), o voo das aves de rapina, os poilões... E eu ia fazendo perguntas:
- Saiegh, que elevação é aquela?
Ele explicou:
- Chama-se baga-baga, e é uma formação de terra feita por térmitas.

Se bem que tivéssemos flanqueado a estrada, foi uma viagem muito boa e só senti a opressão de um silêncio da falta de vida humana. Para quem nunca lá foi, quero que se saiba que o passeio abaixo da bolanha de Chicri (2) até ao pontão apodrecido de Mato de Cão é de uma rara beleza. Farei este percurso vezes sem conta, a todos os segundos de todos os dias durante 17 meses, com sol tórrido, com árvores a dançar no meio dos céus, em plena época seca e com a garganta encortiçada, no meio de trombas de água como se um cortejo de cegos divagasse por entre oceanos de lama e trovões.

Não será ainda nesse dia que vou conhecer o macaréu, só dois meses depois. Mas foi uma viagem fascinante, ver passar barcos iguais àqueles em que viajei dias antes, igualmente para Bambadinca, o último porto navegável do Leste, acenar e ser calorosamente correspondido pelos djilas e outros passageiros.

Quando chegámos a Missirá, o Teixeira das transmissões já decifrara outra mensagem: amanhã devia apresentar-me em Bambadinca, na secretaria. Aqui, a 7, entregaram-me o processo de uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, que vitimara uma criança, Abudu Cassamá. Li rapidamente que em Fevereiro de 1964, numa altura em que um pelotão de uma companhia sediada no Enxalé estava instalada em Finete, formando milícias e criando um dispositivo de defesa com abrigos e arame farpado, uma criança subiu para um atrelado e accionou uma granada.

A palavra incendiária lembrou-me fósforo e napalm. Na ocasião, não fiquei inquieto, o que eu queria era perceber o que ia fazer. O Tenente da Secretaria foi claro:
- O nosso alferes tem que fazer deprecadas a toda a gente envolvida, pedindo-lhes esclarecimentos sobre a razão de ser do acidente e apurando responsabilidades, a criança está viva, sofre muito e tem direito a uma compensação.

Aprendi que uma deprecada era uma deligência em que por entreposta entidade um militar iria ser questionado sobre uma determinada matéria. Muni-me de papel e legislação, voltei para Missirá e desatei a escrever para quartéis e destacamentos da GNR de todo o país, entre Vila Nova de Cerveira e Angra do Heroísmo, num universo onde couberam um capitão, dois alferes, um sargento ajudante e quatro furriéis.

A primeira leva de respostas chegou aproximadamente um mês e meio depois. Houve protestos ("Não aceito ser ofendido pelo conteúdo da pergunta, exigo decoro pela minha patente"), houve esquecimentos absolutos ("Não só não sei como nunca ouvi falar"), houve menção de eventuais outros responsáveis ("Quem respondia pela segurança do parque de viaturas era o Cabo X..."). Entretanto, ouvi os familiares de Abudu e, claro está, conheci Abudu. Era uma criança de 7 anos de lindos olhos e as costas pregueadas e sulcadas pela destruição. Sobrevivera milagrosamente e os pais só se lembravam das circunstâncias do sinistro.

Eu levara na minha carga de livros O Processo , de Kafka. Para quem não leu ou não recorde, o genial autor checo aborda a inacessibilidade da autoridade e os contornos e ínvios da Justiça. Joseph K. é preso e não sabe porquê. Ao longo de toda a obra procura defender-se e é constantemente acusado com argumentos e linguagem que não pôde rebater nem compreender o vigor lógico. É condenado à morte e aceita a sentença com maior indiferença possível.

Kafka ajudou-me imenso neste processo: aquela granada aparecera num atrelado num acaso divino, nenhum ser humano dela se apercebera; o verdadeiro culpado fora a criança que não devia ter subido a uma viatura militar; quando se dera o acidente todos tinham feito o possível para mitigar o sofrimento daquela explosão. Como há limites para Kafka, a vida encarregou-se de tornar tudo ainda mais complexo. Ia o processo já bem gordinho, na segunda volta das deprecadas, tudo cada vez mais ilógico e torvado quando a flagelação de 19 de Março de 1969 consumiu tudo quando estava dentro da minha morança, com excepção dos ferros da cama do Prof. Armando Cortesão.

Recomecei o processo mas meses mais tarde foi arquivado por falta de provas. Em 1991, durante os cerca de 5 meses que fui cooperante na Guiné-Bissau procurei avidamente rever a criança Abudu Cassamá. Nessa altura eu vivia nas instalações da Cicer, a companhia de cerveja que, penso eu, estava semifalida. Uma noite batem-me à porta e quando abri deparou-se-me um homem franzino com cabelo hirsuto com um tamanho de uma juba que me gritou com todos os dentes à mostra:
- Sou Abudu Cassamá e quero um rádio, um relógio e dinheiro para comprar um saco de arroz!

Não houvera justiça para Abudu Cassamá, só aquele processo gerara um afecto e uma memórias perduráveis. Agora uma confissão. O Alferes de Missirá e Finete e depois pau para toda a colher em Bambadinca teimava, discreta mas obstinadamente, contra ventos e marés da criatividade literária, em poetar, quando devia fazer outras coisas. O produto é no seu todo intragável e desconchavado, mas hoje e noutras ocasiões a ele se fará referência, tal a sua sinceridade e o peso do seu testemunho. Aqui fica a

Canção para Abudu

Quem me espera às portas de Finete
quando venho cansado?
Quem me espera com incêndio nos braços,
corpo de velho nos olhos de carvão?
Quem me tira a arma do ombro
e me leva um copo à boca?
Abudu! Como é bom ter um menino
que nos espera! Abudu!


Quem me esquece a mina e emboscada,
quem me ensombreia os nervos do sol
no choro dos pássaros, no vértice das picadas?
Sim, quem me sufoca de beijos retalhados?
Abudu! Que estrela ou fio de música
te priva de olhares rancoroso
para teu corpinho de escaras,
para longe, tão longe, da explosão
que não te adormeceu


Abudu, és febre ou uma flor?
Ou és o coral de uma missa no deserto?
Quem éstu, beleza de anjo emudecido?
Mais que Abudu, és rei de um presépio?
Abudu, coração de marfim!
Mil vezes Abudu!


Como é bom ter um menino que nos espera,
que me espera às portas de Finete!
Dia após dias, quem grita os pulmões da vida
no seu limiar em arame farpado?
E, dia após dia, sempre:
grandeza de bissilão, obrigado!


Entretanto, com o apoio do Teixeira das transmissões, que se ofereceu para trolha, planeou-se cimentar a nossa sala de convívio, uma espelunca permanentemente empoeirada e aspecto sórdido; com a malta da engenharia em Bambadinca, procurou-se uma solução para tomar banho e levámos sanitários para Missirá e Finete. Aprendi a escrita dos abastecimentos e subitamente fui envolvido por acontecimentos amorosos no meio militar e civil. Mais tarde explico.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor


(2)Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > O Ten Cor Polidoro Monteiro, último comandante do BART 2917, o Alf Médico Vilar e o Alf Paulo Santiago, "vendo a dentadura do crocodilo"...

Foto tirada em Novembro ou Dezembro de 1971 no Mato Cão, após ocupação da zona com vista à construção de um destacamento, encarregue de proteger a navegação no Geba Estreito e impedir as infiltrações na guerrilha no reordenamento de Nhabijões, um enorme conjunto de tabancas de população balanta e mandinga tradicionalmente "sob duplo controlo".

Foto: © Paulo Santiago (2006)


Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72) (1),

Luís

Vi o pedido do Beja Santos ao Mexia Alves (2), resolvi dar uma achega.

1- Tive um click ao ler a mensagem do Tigre de Missirá, quando menciona o nome do substituto, Nelson Wahnon Reis.Não tivemos grandes contactos, mas o Alf Mil Reis aparecia, por vezes, em Bambadinca, durante os meses que lá permaneci, Outubro de 71 a Março de 72. O Pel Caç Nat 52 estava em Fá. Recordo agora, outro click, ouvir a história do cajado [em substituição da G-3] ao Reis, não referindo-se ao Beja Santos, mas sim ao Cabral do 63.

2- O Mato Cão foi ocupado em Novembro de 71 - posso precisar a data-, com o objetivo de protejer a navegação no Geba Estreito e também evitar as infiltrações no Reordenamento dos Nabijões (3). Dizia-se em Bambadinca, meio a sério, meio a brincar, que à noite nos Nabijões cruzava-se um militar de G3 com um turra de Kalash, que vinha reabastecer-se. Penso, sem certezas, que o Pel Caç Nat 63 estava nos Nabijões.

3- Será que no Mato Cão, quando lá fui com o Polidoro e o Vilar [vd. foto acima], estava um grupo de combate da CCAÇ 12 ou era o Pel Caç Nat 63 ? Inclino-me para a última hipótese.

4- Quando lá fui de visita, em Novembro ou Dezembro de 71, as condições eram do pior. Não havia qualquer construção, por mais rudimentar que fosse, não havia valas nem arame farpado. Tinham desmatado uma zona junto ao rio,onde tinham aberto uns buracos para caberem os colchões, protegidos pelos mosquiteiros.

5- As flagelações e ataques eram quase diários e ferozes. Recordo um ataque num Domingo, durou mais de 30 minutos, em que o IN retirou abandonando vários mortos, incluindo um guerrilheiro com uma pistola Tokarev à cinta.

6- Alguém sabe dizer-me como se chamava o comandante do 63 ?

Um abraço a todos

Paulo Santiago


__________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53)
(1): Bissau


(2)Vd. post de 5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

(3) Sobre Nhabijões, ver entre outros os seguintes posts:

28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

21 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

Guiné 63/74 - P1048: Nunca fui capitão miliciano (Joaquim Mexia Alves, CCAÇ 15)

Mensagem de 29 de Agosto de 2006, enviada pelo camarigo Joaquim Mexia Alves:

Caro Luís Graça:

Uma correcção: nunca fui Capitão Miliciano (1).

Comandei a CCAÇ 15 como Alferes, por diversos períodos mais ou menos compridos, ao longo dos cerca de seis meses que lá permaneci.

Passaram por lá três Capitães, um ou dois quase nem os vi. Estava-se melhor em Bissau.

Abraço

__________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

(...) Nota de L.G. :

(1) O Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, durante o período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, pertenceu a: (i) ; CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas); (ii) Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) ; e (iii) CCAÇ 15 (Mansoa ) (aqui já já como capitão miliciano).

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1047: Blogpoesia: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970: Da esquerda para a direita, os ex-furriéis milicianos Marques e Henriques da CCAÇ 12 (1969/71), em amena conversa ou talvez disputando amigavelmente o lugar do morto (que era ao lado do condutor). Os dois foram vítimas, juntamente com as suas secções (do 4º Grupo de Combate), da explosão de uma mina anti-carro na GMC em que seguiam (Estrada de Nhabijões-Bambadinca, a 13 de Janeiro de 1971, a um mês e meio da sua rendição individual).

Foto: © Luís Graça (2005).



Texto do editor do blogue, Luís Graça (ex-furriel miliciano Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Maio de 1969/Março de 1971):

A maior parte da malta que foi mobilizada para a Guiné, teve quase três anos (ou até mais) de tropa. No mínimo, passou dois dos seus aniversários de nascimento no Teatro de Operação (TO) da Guiné. Foi o meu caso, mobilizado já com quase 12 meses, aos 22 anos de idade, já feitos: passei os meus 23 e 24 anos na Guiné, “longe do Vietname”, como eu costumava escrever no meu diário, a que eu chamo Diário de um Tuga. Desses escritos, seleccionei e revi, nestas férias, os apontamentos referentes ao dia em que fiz 24 anos, já na recta final da minha comissão...Vale apenas como documento que atesta o estado de espírito de um jovem que, como Manuel Alegre escreveu, foi "soldado contra a sua própria regra"...


Bambadinca/Imbecilburgo, 29 de Janeiro de 1971 / Lourinhã, verão de 2006


Alá não passou por aqui,
por Luís Graça


Bambadinca/Imbecilburgo, 29 de Janeiro de 1971 / Lourinhã, verão de 2006


Vinte e quatro anos:
ocorreu-te que hoje fazias anos,
e que por mera curiosidade
era o teu segundo aniversário
nestas terras da Guiné,
e, por sinal, o teu terceiro
na tropa,
coincidindo com o terceiro
da era do marcelismo.

Vinte e quatro anos,
vividos mal,
vinte e um meses de tropa-macaca,
entre o Geba e o Corubal,
vida de cão rafeiro,
de macaco-cão,
saltando do chão
e do baga-baga
para a copa
da árvore dos teus desenganos.


Tempo de miserabilismo,
tempo do salve-se quem puder,
tempo de calculismo e de cinismo.
Desenfiado,
é a palavra de ordem,
para a soldadesca,
para os gajos do quadro
ou do contingente geral,
quer concordem ou discordem
desta farsa grotesca.

Aqui vive-se sem calendário
nem ética,
nem dignidade,
não se apurando perdas e danos,
não se distinguindo
dias da semana, sábados,
domingos ou feriados,
o verão e o inverno,
os bons, os maus e os safados.
Se há resistência, ela é invisível e muda,
e o tempo que conta
é o que falta para a peluda.


És um cão,
um cão danado,
apanhado na rede.
O tempo é pura aritmética,
soma de momentos,
de dias riscados
na parede,
suja, mimética,
dos nossos abrigos:
se um ano aqui é uma eternidade,
dois é o inferno.
O teu corpo fede,
tresanda a terrafo,
a suor
cheira a morte,
cheira a merda,
a luto,
a perda,
a da tua juventude,
a dos teus ideais.

És um pobre fantasma de Quinhentos,
que perdeu o norte
e os demais pontos cardeais,
a idade,
a quietude,
a auto-estima,
a praça-forte,
o astrolábio,
as Índias,
a caravela,
a rota,
a proa,
a pose,
a árvore genealógica,
as coordenadas de Lisboa,
os Lusíadas,
a Peregrinação,
do Fernão Mentes Minto,
a História (trágico-marítima),
o ritmo,
a rima,
o ADN,
o pedigree,
a inocência do Nuno Tristão da Silva,
a cruz,
o cruzeiro,
o estandarte,
a espada,
o manual,
a valentia do Teixeira Pinto,
e até o jeito de matar
do Afonso Albuquerque,
para além da arte
e da ciência de marear,
no macaréu do Geba,
nas bolanhas do Corubal.

Mais prosaicamente,
na Guiné
o dia dos teus anos é
uma rodada
de uísque ou de cerveja
pr’os teus camaradas
no bar de sargentos.
No fundo,
o teu dia é um pretexto
para a autocomiseração,
para um voo até
às galáxias da metafísica,
que é sempre melhor, chiça!,que ouvir
o silvo de uma granada,
em teu redor,
que é coisa bem mais real
e mortífera,
é a quilha
do barco da morte.
Com sorte,
talvez o amável Zé da Ila,
de nós todos o menos reguila,
pegue na viola (1)
e te cante
a Pedra Filosofal
Talvez cantemos todos juntos,
às tantas da noite,
africana,
pestífera,
mortal,
e suficientemente alto,
com as nossas vozes guturais,
para que Eles, os gajos,
nos oiçam, mesmo ali ao lado,
no bar dos oficiais…

Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
E sempre que um homem sonha,
A vida pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança…

Seguramente
um dia como os outros,
sem mais nada,
seguramente mais um dia
de solidão,
com ou sem o poema do Gedeão
e a música do Manuel Freire,
a tua canção favorita,
a nossa balada querida,
e que eu sei que irrita
os teus Cães Grandes

Ninguém te vai dar os parabéns,
só por fazeres anos:
ainda não ganhaste nada,
nem o direito a outra vida.
De resto, estás sempre só,
mesmo quando segues,
em bicha de pirilau,
coberto de suor e pó,
com o teu pelotão,
às ordens de Bissau,
para montar segurança à TECNIL
que está a construir
a nova estrada de Bambadinca-Xime (3).

Enfim, mais um dia da tua condição,
triste e vil,
de poeta travestido de soldado
de uma guerra
a que sempre chamaste crime,
mas da qual és actor,
cúmplice,
quiçá testemunha sublime,
guerra que tem dor e tem horror,
mas de que os teus camaradas não falam,
por pudor.

Je m’en passe,
je m’en fous,
escrevias tu
no teu diário de um tuga.
Como quem diz:
aqui não há lugar para a fuga,
nem sequer te podes dar ao luxo
de um mísero voo raso
sobre a cerca de arame farpado
ou sobre o ninho de metralhadoras
que varre a pista de aviação,
como um vulgar jagudi
que é uma pássaro feio
mas é livre,
e tão ou mais importante do que tu
no seio da criação.

Senhores e senhoras,
respeitável público
do Circo de Imbecilburgo:
Simplesmente, neste caso,
este homem não é um homem
é um palhaço,
é um soldado,
fardado,
de camuflado,
verde oliva, desbotado,
um número mecanográfico,
uma peça da engrenagem,
que na sua essência
cumpre ordens,
às vezes com coragem,
outras com medo,
é isso que lhe dói,
neste cenário
que não é cinematográfico,
mas também pouco conforme
com o RDM:
não é um mercenário,
nem um caso psiquiátrico,
não é o homem-aranha
nem o super-homem,
não é nenhum deus do Olimpo,
nem nenhum herói
da resistência
nem muito menos do 10 de Junho:
saíu, de noite, (mal) armado,
com os pés descalços dos seus nharros,
para a impossível Missão do Sono,
em Bambadincazinha,
guardar as costas
dos senhores
de Bambadinca,
que dormem na cama,
em lençóis lavados,
fazendo p’la sua vidinha.

Os Cães Grandes,
como tu gostas
de chamar-lhes,
com o teu humor corrosivo
de dramaturgo
do teatro do absurdo,
aos oficiais superiores
de Imbecilburgo.
Escuta,
quer queiras quer não,
são eles os lídimos representantes
da tua Nação,
foi o que ouviste desde o primeiro dia
da tua recruta.

Vida de puta:
com raiva e impotência,
vês o tempo,
a areia da ampulheta,
escoar-se,
do cabo até ao fundo,
e tu aqui hipotecado
ao Estado,
a este Império de opereta,
dono da tua existência,
que te requisitou o corpo,
da cabeça aos pés,
e te comprou a alma
e a vendeu ao diabo,
aqui no cu do mundo.

Voaste há dias, ai!,
sob uma mina anticarro,
à saída do reordenamento de Nhabijões (3,
mas estás vivo, ó tuga,
graças talvez à mezinha
que te deu um nharro,
um mauro, um marabu,
em Sinchã Mamadjai
e melhor prenda de anos
desejar poderias,
meu grande safado ?

És um sortudo,
se acordares,
de manhãezinha,
com o dedo grande do pé
a mexer,
dizia o Marques,
que nesse dia treze,
que nem sequer era sexta-feira,
teve azar, coitado,
sentado na parte traseira,
da GMC,
não teve a mesma sorte que tu,
indo parar, em mau estado,
em estado de coma,
ao Hospital Militar.


Pobre tuga,
pobre nharro,
pobre turra:
na Guiné,
longe do Vietname,
em plena guerra fria,
há muito ano
que vos chupam o tutano.
Aqui faz-se poesia,
de barriga vazia,
o corpo exangue,
só com o cavername,
a pele e o osso,
a morte na alma.

Resta-te a consolação da escrita
e da leitura,
além do teu uísque
com água de Perrier.
Eis o poema,
que te ofereço,
com ternura,
como prenda de aniversário,
O Tempo que Faz em Imbecilburgo:

Ah! como o tempo (não) passa
enquanto um gajo ajusta contas
com o tempo que já passou,
vinte e quatro,
contados em anos
do calendário gregoriano,
no ano da graça
de mil novecentos setenta e um.
Mas é o presente que importa
ou que importava
porque já não é mais presente
mas passado
o tempo transcorrido,
por estas terras e águas do Geba,
como furriel miliciano.

Insistes no presente do indicativo
porque é o presente minuto
que import-export
para a gente ainda ter tempo
de ganhar um lugar (cativo)
no futuro próximo
(se o houver).

Tu até podias acreditar
numa Guiné Melhor,
no Herr Spínola,
nos teus nharros,
nos patriotas dos guinéus
que lutam a teu lado,
ou até na derrota do Cabral,
teu herói e teu inimigo,
o líder revolucionário,
ou no Nino,
teu turra de estimação,
vestido à cow-boy
e armado de RPG
no nosso imaginário;
podias mesmo acreditar
na transmigração
das almas mortas em combate,
para o Panteão Nacional,
se não fora essa ideia (fixa)
do passado,
glorioso,
perdido,
sabendo-se que o dinheiro e as armas
compram tudo
menos o direito à eternidade,
e nem talvez à liberdade.

Se te portares bem,
meu velho,
aos vinte e um meses de Guiné,
na recta final da tua comissão,
enquanto esperas a tua rendição
individual,
ainda corres o risco de apanhar um louvor
do comandante do batalhão,
sob proposta do teu capitão,
à beira de ser promovido a major,
não por façanhas e valentia,
mas por seres o cronista-mor
da estória oficiosa da tua companhia
.

Post scriptum:
Alá
não passou por aqui,
disse-me uma vez um homem-grande
da tabanca de Saré Ganá (4).
__________

Notas de L.G.

(1) Furriel Sousa, da CCAÇ 12, madeirense: Vd post de 8 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P945: 'Gente feliz com lágrimas': o Zé da Ilha, o furriel Sousa, madeirense, da CCAÇ 12

(2) Empresa que em finais de 1970/princípios de 1971 estava a construir a nova estrada alcatroada Bambadinca-Xime. A CCAÇ 12 faria regularmente a segurança destes trabalhos, já no final da sua comissão.

(3) Vd. postes de

2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)

23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)

(4) Zona leste, Regulado de Joladu, carta de Bambadinca, 1/50.000

Vd. post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

Guiné > Zona leste > Subsector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2405 > 1970 > Construção de abrigos. À esquerda, o Al Mil Paulo Raposo. Foto: © Paulo Raposo (2006)


Guiné > 1968 > Mansoa > CCAÇ 2405 > Os Alf Mil Raposo e Felício, dois dos futuros baixinhos de Dulombi. Foto: © Paulo Raposo (2006)


Texto do Rui Felício, enviado por e-mail de 29 de Agosto de 2006:


Meu Caro Luis Graça,

Há longo tempo que não intervinha no teu blogue. Mas tenho lido com alguma frequência o que por lá vai aparecendo.

Aí vai mais uma estória engraçada (1) que publicarás se assim o entenderes.

Espero que o encontro sugerido pelo Paulo Raposo [no próximo mês de Outubro, em Montemor-O-Novo] se concretize. Vale a pena estar umas horas no agradável Hotel que ele possui em Montemor-O-Novo.

Um abraço

Rui Felício
Alf Mil, CCAÇ 2405 (1968/70),
Dulombi, Junho de 1970 (2)

_______


TRANSFERÊNCIA DE CARGA (ou a arte do desenrascanço que a tropa afinal nos ensinou)...


Daí a poucos dias íamos finalmente embarcar em Bissau no Carvalho Araújo para o ansiado regresso…

Tinhamos acabado de receber no Dulombi a Companhia de atónitos periquitos que, durante uma semana, iam ficar em sobreposição connosco.

Acolhemo-los com o aquele ar superior de guerreiros invencíveis, calejados pelos combates, a pele tisnada dos sóis tropicais, e além das costumadas praxes, meio inofensivas, que exercemos sobre eles, dedicámos-lhes, com a proverbial simpatia característica dos Baixinhos do Dulombi, um hino de recepção ao periquito que ainda hoje cantamos em todos os almoços anuais de comemoração que realizamos.

Fui eu o autor da letra (perdoem-me o orgulho ) que, em versos decassilábicos, procurava transmitir aos novatos o que era o dia a dia que os esperava nos confins do mato onde iriam passar dois anos.

O Alf Mil Rijo sacou dos seus dotes musicais até aí ocultos e plagiou uma música que se adaptasse à versalhada que em momento de suprema inspiração eu tinha produzido. É ele que hoje guarda religiosamente essa letra que eu, embora seu autor, não sou já capaz de reproduzir na íntegra (3).

...Mas urgia transferir o espólio da Companhia aos novos... Formou-se então uma equipa para conferir e entregar aos novos as cargas que oficialmente estavam a cargo da Companhia. E por parte dos periquitos procedeu-se de igual modo para as receber, assinando os respectivos recibos de quitação.

A mim e ao furriel Veiga coube-nos a tarefa, entre algumas outras mais simples, de entregar aos periquitos os materiais de construção que a nossa Companhia tinha (ou devia ter…) em armazém e que recebera com a exclusiva finalidade de serem usados na edificação de casas para a população que foi deslocada no âmbito do programa de reordenamentos.

No essencial, os materiais de construção a que me refiro eram constituídos por sacos de cimento, chapas de zinco, barrotes de madeira, pregos, ferramentas diversas, etc.

O problema é que os mapas de existências e de movimentação de stocks exibiam quantidades muito superiores (!!!) às que efectivamente existiam…

E eram mapas assinados pelo Capitão, pelo Sargento Silvano e por mim próprio, regularmente enviados superiormente para os Serviços de Adminsitração Militar em Bissau e, quiçá, em Lisboa.

Estava portanto fora de questão a sua falsificação!

A verdade é que, se os não entregássemos à nova Companhia e esta, como seria natural, se recusasse a ignorar as diferenças, isso redundaria por certo num demorado e complicado processo de inquérito para apuramento de responsbilidades, seguido de um outro de cariz disciplinar para punição dos responsáveis.

Resumindo: Uma grandessissima chatice a meia dúzia de dias do embarque!

Sei que vos baila no pensamento a natural pergunta:
- E como foram gastas tão significativas quantidades de materiais de construção, se não foram aplicadas na totalidade nos tais reordenamentos?

Os meu queridos amigos Vitor David e Paulo Raposo, ambos alferes dos Baixinhos do Dulombi, se estiverem a ler isto, são dos poucos que não fazem essa pergunta. O primeiro porque sabe o destino dos tais materiais em falta. O segundo porque foi ele mesmo quem lhes deu o (in)devido destino…

Fez ele bem, comento eu!

O Raposo, como já tive ocasião de dizer noutros escritos semelhantes a este, era uma pessoa desenrascada, que não abdicava do mínimo de conforto que as circunstâncias lhe permitissem.

Combater sim, mas confortavelmente, se possível…

Quando começámos a receber o cimento e as chapas de zinco em apreciáveis quantidades, destinadas ao reordenamento da população e também à construção de um heliporto, o Raposo, indiferente aos reparos do Capitão Jerónimo, mobilizou os seus soldados para cimentarem o seu abrigo e para revestirem o respectivo tecto, por baixo da terra que o cobria, com chapas de zinco na tentativa de o impermeabilizar às águas da chuvas que nos restantes abrigos inundavam por completo o interior.

Não seria, porém, na altura da transferência das cargas que iriamos falar disso. Era assunto tabu!

Importante era descortinar uma forma de entregar sem falhas os materiais que constavam dos papéis. Embora sabendo-se que já só existiam em pequena parte…

A noite é boa conselheira e em África acho que ainda mais. E por isso, quando acordei no dia seguinte já tinha mentalmente encontrado a solução.

Contando obviamente com a inexperiência do alferes periquito ( seja me desculpado tratá-lo assim, mas o seu nome já se me varreu…), que me iria assinar os recibos de quitação da entrega, libertando-me de responsabilidades.

Chamei o Veiga, furriel de transmissões e matosinhense muito vivo e desenrascado, e segredei-lhe:
- Oh Veiga, eu vou chamar o alferes periquito e começarei por lhe dizer que os materias de construção que lhe vamos entregar estão dispersos por variados lugares da tabanca.

E continuei:
- Depois digo-lhe que temos que ir anotando num caderno as quantidades que contarmos em cada um desses locais, somando tudo no final e conferindo com os mapas oficiais da Companhia.

Prossegui, perante o olhar atento do Veiga, que ia abanando a cabeça em sinal de assentimento:
- Para que as coisas resultem como eu quero, é necessário iniciarmos este trabalho à hora de maior calor, digamos que por volta da uma da tarde, a seguir ao almoço.

De sobrolho franzido, o Veiga interrompeu-me:
- Porquê? Não entendo o motivo…

Retorqui-lhe, sorrindo:
- Mais adiante você vai compreender!

E continuei, descrevendo o plano:
- Agora você pega em meia dúzia de soldados e manda carregar em cima de um Unimog os poucos sacos de cimento e chapas de zinco que temos fechadas na tabanca que serve de armazém improvisado.

Sem perder o folego, acrescentei:
- De seguida manda-os descarregar num sítio qualquer, de preferência meio escondidos entre as tabancas, por forma a não serem visíveis de longe, e depois vem me chamar à messe onde estarei com ele, para nos deslocarmos ao sítio onde você despejou os materiais.

E porsseguindo:
- Depois de anotarmos no tal caderno as quantidades que tivermos contado, e perante o insuportável calor que estaremos sentindo, eu convido-o a si e ao alferes a virem beber uma cerveja. Você inventará um desculpa e recusará o convite. Logo que eu e ele nos afastarmos, você volta a carregar os materiais e colocá-los-á noutro sítio da tabanca afastado daquele, enquanto o alferes periquito se encharca em cerveja para vencer o tórrido calor da uma da tarde…

O Veiga sorriu e interrompeu-me de novo:
- Agora entendo porque é que o meu alferes disse que mais adiante eu ia perceber a razão da hora do calor para se fazer este trabalho! O homem a cada caminhada que fizer não vai querer outra coisa senão abrigar-se do calor e matar a sede…

- Para mais, periquito transpira como o caraças!...

- ... Enquanto me dá tempo para eu mudar os materiais de um sitio para outro - concluiu o furriel com uma sonora gargalhada.

Epílogo

O alferes periquito sucumbiu ao truque. E encharcou-se com alguns litros de cerveja que eu magnanimamente lhe fui oferecendo ao longo daquela tarde.

Acho que nas últimas duas contagens ele já via tudo a dobrar, o que, se assim foi, acabou por me beneficiar nos cálculos finais…

Lamento dizê-lo mas há uma regra básica que o próprio exército nos ensinou: A tropa manda desenrascar…

Tenho a certeza que ele acabou por fazer algo parecido quando acabou a comissão.. e isso alivia-me os remorsos…

Sim, porque tenho muitas dúvidas que as existências das Companhias do mato alguma vez conferissem com os papéis que constavam das secretarias.

O resultado das contagens acabou por dar no seguinte:

(i) Os mesmos sacos de cimento foram contados 4 vezes;
(ii) As mesmas chapas de zinco, 5 vezes
(iii) Os mesmos pregos, 2 vezes


Tudo somado deu um total praticamente igual ao que constava nos papéis oficiais do Sargento Silvano.

E tudo acabou em bem!

Se isto fosse um romance côr de rosa e se em vez do alferes periquito eu estivesse a transferir as cargas para a enfermeira paraquedista Rosa, podia terminá-lo à laia dos filmes da década de 50:

... e casaram, foram muito felizes e procriaram belos e rechonchudos rebentos…

The End



Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
CCAÇ 2405 (1968/70)
___________

Notas de L.G.

(1) Estórias anteriores: vd posts de

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

Vd. também post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)

(2) Vd. post de 7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(3) Meu caro Rui: Ficamos à espera desses famosos versos...para que não se perca o Cancioneiro de Dulombi.