quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1050: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (7): O espectro de Kafka nas guerras do Cuor



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Missirá > s/d > O Alf Mil Beja Santos, de óculos escuros e lenço azul ao pescoço, com uma secção do seu Pel Caç Nat 52, em cima de um burrinho (Unimog), na estrada Missirá-Finete.

Foto: © Beja Santos (2006)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento de Missirá > s/d > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, de óculos escuros, ao lado do condutor e, na frente da viatura, o furriel Saiegh, na picada da bolanha de Finete

Foto: © Beja Santos (2006)


Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos, com data de 22 de Agosto de 2006:


Caro Luis, aqui te deixo um texto que fica a aguardar o teu regresso. Tu tens sido exímio na ilustração e nos comentários aos materiais que te dei. Vais encontrar o teu computador inflacionado com os meus mails que subitamente se reproduziram. Espero que tudo já esteja consertado em termos informáticos. Continuação de férias retemperadoras e recebe um abração do Tigre de Missirá.



O espectro de Franz Kafka nas guerras do Cuor

por Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)


A 6 de Agosto [de 1968], de manhã, o rádio fez chegar a mensagem de que iam passar três barcos civis em Mato do Cão, pelas 3 horas da tarde. Constitui-se uma coluna de 25 homens, bazuca, morteiro 60 e três dilagramas. Como era a minha estreia, pedi ao Saiegh (1) que percorréssemos a estrada no seu troço a Missirá/Cancumba, Morocunda, Gambana, Mato do Cão. Consigo ainda visualizar um céu azul eléctrico, uma estrada bem pronunciada (se bem que o capim fosse tomando conta das bermas), o voo das aves de rapina, os poilões... E eu ia fazendo perguntas:
- Saiegh, que elevação é aquela?
Ele explicou:
- Chama-se baga-baga, e é uma formação de terra feita por térmitas.

Se bem que tivéssemos flanqueado a estrada, foi uma viagem muito boa e só senti a opressão de um silêncio da falta de vida humana. Para quem nunca lá foi, quero que se saiba que o passeio abaixo da bolanha de Chicri (2) até ao pontão apodrecido de Mato de Cão é de uma rara beleza. Farei este percurso vezes sem conta, a todos os segundos de todos os dias durante 17 meses, com sol tórrido, com árvores a dançar no meio dos céus, em plena época seca e com a garganta encortiçada, no meio de trombas de água como se um cortejo de cegos divagasse por entre oceanos de lama e trovões.

Não será ainda nesse dia que vou conhecer o macaréu, só dois meses depois. Mas foi uma viagem fascinante, ver passar barcos iguais àqueles em que viajei dias antes, igualmente para Bambadinca, o último porto navegável do Leste, acenar e ser calorosamente correspondido pelos djilas e outros passageiros.

Quando chegámos a Missirá, o Teixeira das transmissões já decifrara outra mensagem: amanhã devia apresentar-me em Bambadinca, na secretaria. Aqui, a 7, entregaram-me o processo de uma granada incendiária abandonada num reboque em Finete, que vitimara uma criança, Abudu Cassamá. Li rapidamente que em Fevereiro de 1964, numa altura em que um pelotão de uma companhia sediada no Enxalé estava instalada em Finete, formando milícias e criando um dispositivo de defesa com abrigos e arame farpado, uma criança subiu para um atrelado e accionou uma granada.

A palavra incendiária lembrou-me fósforo e napalm. Na ocasião, não fiquei inquieto, o que eu queria era perceber o que ia fazer. O Tenente da Secretaria foi claro:
- O nosso alferes tem que fazer deprecadas a toda a gente envolvida, pedindo-lhes esclarecimentos sobre a razão de ser do acidente e apurando responsabilidades, a criança está viva, sofre muito e tem direito a uma compensação.

Aprendi que uma deprecada era uma deligência em que por entreposta entidade um militar iria ser questionado sobre uma determinada matéria. Muni-me de papel e legislação, voltei para Missirá e desatei a escrever para quartéis e destacamentos da GNR de todo o país, entre Vila Nova de Cerveira e Angra do Heroísmo, num universo onde couberam um capitão, dois alferes, um sargento ajudante e quatro furriéis.

A primeira leva de respostas chegou aproximadamente um mês e meio depois. Houve protestos ("Não aceito ser ofendido pelo conteúdo da pergunta, exigo decoro pela minha patente"), houve esquecimentos absolutos ("Não só não sei como nunca ouvi falar"), houve menção de eventuais outros responsáveis ("Quem respondia pela segurança do parque de viaturas era o Cabo X..."). Entretanto, ouvi os familiares de Abudu e, claro está, conheci Abudu. Era uma criança de 7 anos de lindos olhos e as costas pregueadas e sulcadas pela destruição. Sobrevivera milagrosamente e os pais só se lembravam das circunstâncias do sinistro.

Eu levara na minha carga de livros O Processo , de Kafka. Para quem não leu ou não recorde, o genial autor checo aborda a inacessibilidade da autoridade e os contornos e ínvios da Justiça. Joseph K. é preso e não sabe porquê. Ao longo de toda a obra procura defender-se e é constantemente acusado com argumentos e linguagem que não pôde rebater nem compreender o vigor lógico. É condenado à morte e aceita a sentença com maior indiferença possível.

Kafka ajudou-me imenso neste processo: aquela granada aparecera num atrelado num acaso divino, nenhum ser humano dela se apercebera; o verdadeiro culpado fora a criança que não devia ter subido a uma viatura militar; quando se dera o acidente todos tinham feito o possível para mitigar o sofrimento daquela explosão. Como há limites para Kafka, a vida encarregou-se de tornar tudo ainda mais complexo. Ia o processo já bem gordinho, na segunda volta das deprecadas, tudo cada vez mais ilógico e torvado quando a flagelação de 19 de Março de 1969 consumiu tudo quando estava dentro da minha morança, com excepção dos ferros da cama do Prof. Armando Cortesão.

Recomecei o processo mas meses mais tarde foi arquivado por falta de provas. Em 1991, durante os cerca de 5 meses que fui cooperante na Guiné-Bissau procurei avidamente rever a criança Abudu Cassamá. Nessa altura eu vivia nas instalações da Cicer, a companhia de cerveja que, penso eu, estava semifalida. Uma noite batem-me à porta e quando abri deparou-se-me um homem franzino com cabelo hirsuto com um tamanho de uma juba que me gritou com todos os dentes à mostra:
- Sou Abudu Cassamá e quero um rádio, um relógio e dinheiro para comprar um saco de arroz!

Não houvera justiça para Abudu Cassamá, só aquele processo gerara um afecto e uma memórias perduráveis. Agora uma confissão. O Alferes de Missirá e Finete e depois pau para toda a colher em Bambadinca teimava, discreta mas obstinadamente, contra ventos e marés da criatividade literária, em poetar, quando devia fazer outras coisas. O produto é no seu todo intragável e desconchavado, mas hoje e noutras ocasiões a ele se fará referência, tal a sua sinceridade e o peso do seu testemunho. Aqui fica a

Canção para Abudu

Quem me espera às portas de Finete
quando venho cansado?
Quem me espera com incêndio nos braços,
corpo de velho nos olhos de carvão?
Quem me tira a arma do ombro
e me leva um copo à boca?
Abudu! Como é bom ter um menino
que nos espera! Abudu!


Quem me esquece a mina e emboscada,
quem me ensombreia os nervos do sol
no choro dos pássaros, no vértice das picadas?
Sim, quem me sufoca de beijos retalhados?
Abudu! Que estrela ou fio de música
te priva de olhares rancoroso
para teu corpinho de escaras,
para longe, tão longe, da explosão
que não te adormeceu


Abudu, és febre ou uma flor?
Ou és o coral de uma missa no deserto?
Quem éstu, beleza de anjo emudecido?
Mais que Abudu, és rei de um presépio?
Abudu, coração de marfim!
Mil vezes Abudu!


Como é bom ter um menino que nos espera,
que me espera às portas de Finete!
Dia após dias, quem grita os pulmões da vida
no seu limiar em arame farpado?
E, dia após dia, sempre:
grandeza de bissilão, obrigado!


Entretanto, com o apoio do Teixeira das transmissões, que se ofereceu para trolha, planeou-se cimentar a nossa sala de convívio, uma espelunca permanentemente empoeirada e aspecto sórdido; com a malta da engenharia em Bambadinca, procurou-se uma solução para tomar banho e levámos sanitários para Missirá e Finete. Aprendi a escrita dos abastecimentos e subitamente fui envolvido por acontecimentos amorosos no meio militar e civil. Mais tarde explico.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de

19 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1038: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (6): Entre o Geba e o Oio, falando do Saiegh e dos meus livros

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1021: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (4): A minha paixão pelo Cuor


(2)Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

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