Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 6 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3576: Controvérsias (15): A ganância e o modo como se geriam as finanças nas Unidades (Jorge Picado)
1. Mensagem de Jorge Picado (*), ex-Cap Mil da CCAÇ 2589/BCAÇ 2885, Mansoa, CART 2732, Mansabá e CAOP 1, Teixeira Pinto, com data de 30 de Novembro de 2008, com um exaustivo, mas interessante trabalho sobre a ganância (?) de que teria sido (quase) vítima.
Camaradas e Amigos
Envio uma parte duns acontecimentos que se julgarem de interesse darei a respectiva continuação.
Abraços
Jorge Picado
A Ganância
Acabo de ler o P3528 do José Manuel Dias (**) onde analisa muito sinteticamente (gostava de ter igualmente esse poder de síntese), e no meu ponto de vista muito bem, 3 aspectos ou melhor, temas, que o levam a concluir que, para ele, a guerra estava perdida.
Analisa assim a: ganância (de alguns intervenientes); incompetência (de muitos) e relações internacionais.
Por sua vez, num dos 2 comentários (até ao momento) não assinado (talvez por esquecimento) diz-se : - O José coloca o dedo num dos sítios que mais nos doeu e ainda nos dói. Não sabemos, não temos provas que camaradas nossos se aproveitaram da metralha que nos empobrecia para enriquecer.
Apenas quero focar o tema da ganância, tal como o do comentário que transcrevi.
Não sejamos ingénuos. É evidente que sobre isso não será possível reunir provas. Mas pelo menos não haverá quem tenha indícios?
Há muito que me apetecia contar a vivência que me surpreendeu no 4.º ou 5.º dia depois de me apresentar na CArt do meu caro amigo Carlos Vinhal, mas tendo andado a vasculhar (claro que aleatoriamente, pois são já tantos) os escritos anteriores e não encontrando nada semelhante tenho-me retraído e, para ser sincero, com receio de alguns camaradas (especialmente os da Intendência) julgarem que os queria ofender.
Longe de mim tal propósito.
Creio que ao explicitar muito resumidamente como se fabricavam os Capitães Milicianos de proveta, sublinhei o cuidado de certo instrutor, que já tinha passado pelo TO de Angola, de nos alertar para aquilo que eu classifico de a guerra administrativa.
O tema que eu queria levantar para discussão, com a tal vivência que me apetecia escrever, era precisamente o anedótico, para mim, de no meio da guerra que aqui se tem vindo a concretizar com testemunhos reais, de não se mencionar essa outra guerra administrativa que até podia conduzir aos tais actos de ganância e que era real.
Isto, talvez, porque a quase totalidade dos testemunhos são de camaradas que não tinha de se preocupar com esses assuntos. Mas eu tinha algumas dessas responsabilidades e alguém, voluntária ou involuntariamente, quis-me fazer a cama, o que me ofendeu bastante.
Por isso aí vai o meu testemunho sobre esses acontecimentos e que para conhecimento futuro dos meus descendentes tinha intitulado como uma alínea do chamado, pomposamente, capítulo "DE REGRESSO AO MATO OU EM TERRAS DE MANDINGAS".
A ESTÓRIA DA INTENDÊNCIA MILITAR.
Sábado, 13 ou sexta-feira, 12 (?). [Reporta-se a MAR71].
Com grande estupefacção fui surpreendido por um aerograma enviado de BISSAU em 11MAR pelo Alf Almeida, o oficial que representava a minha ex-CCaç na Comissão Liquidatária. Informava-me da existência dum buraco, ultrapassando os 42 mil escudos, nas contas do rancho!
Assim era-me transmitido que:
a) na Intendência… descobriram agora que faltavam lá 2 facturas, uma de Julho e outra de Outubro,… não incluídas nos mapas desses meses ou dos seguintes;
b) o total era de quarenta e dois contos e picos;
c) foram eles que deram pela falta… o assunto foi comunicado superiormente e possivelmente irá dar em averiguações;
d) é mais uma das consequências do zelo e competência do Vagomestre…";
e) o assunto não vai empatar a CL e se assim for na 6.ª feira dia 19 tencionamos ir embora;
f) com certeza que vão começar a chatear o meu capitão e por isso não quis deixar de o avisar…de tal maneira que possa vir aqui pois gostaria de lhe contar isto tudo pessoalmente e inclusivamente para o meu capitão se inteirar realmente do problema.
Mais alarmado fiquei porque os elementos da CL não iriam ficar empatados, já que eu – futuro bode expiatório – continuava no TO! A juntar a toda a minha má disposição, pela colocação, ainda aparecia agora mais esta bronca.
Tinha já muito pouco tempo para me encontrar com os meus ex-camaradas da Unidade anterior, era necessário despachar-me e arranjar autorização para ir a BISSAU. Já que dependia dum comando hierarquicamente superior – COP 6 em FARIM – solicitei essa autorização urgente via rádio, expondo-lhe sucintamente a situação, que foi concedida.
(Continua)
2. Nova mensagem do camarada Jorge Picado com data de 3 de Dezembro de 2008:
Caro Carlos
Aí vai o resto, ainda que um pouco extenso.
Julgo que não há nada no que escrevi que possa ofender alguém, mas visiona tudo melhor com o teu olho clínico nestas matérias e se for caso de suprimir ou modificar qualquer pormenor, tens toda a liberdade para o fazer.
Comecei de facto na segunda-feira, mas imprevistos surgidos só hoje permitiram concluí-lo.
Acabo de tomar conhecimento do mail enviado ontem (domingo) por José Manuel Dias sobre este tema tão “explosivo”.
Claro que no caso passado comigo não estou a acusar, verdadeiramente, alguém, limitando-me a dar conhecimento dum facto real e faço-o publicamente pela 1.ª vez. Aliás, nem sequer com aqueles camaradas da 2589 com quem já estive em 2005 e com quem falei ultimamente, tinha ainda abordado esta questão.
Antes de prosseguir com a descrição dos passos seguintes dados no TO e porque julgo que devo explicar ainda que não exaustivamente o assunto, apresento o ponto da situação até ter “embarcado” para novos (mas por demais conhecidos) rumos.
Um abraço
Jorge
A ganância
(Continuação)
1. A Comissão Liquidatária (CL) do BCaç 2885 era constituída por: 2.º Cmdt do BCaç (Maj Inf Valentino Dinis Tavares Galhardo, casado com uma minha colega Agrónoma e que não sei se ainda é vivo); Cmdt da CCS (Cap SG Aníbal do Nascimento Castro um Bom Homem já de idade e que me deu muitos conselhos administrativos, aliás como o 2.º Cmdt); não recordo os representantes das CCaç 2587 e 2588 (da 2588 não foi o Cmdt, que já era o 3.º - o 2.º tinha sido o Cap Inf Luís da Piedade Faria que passou para Cmdt da CCaç 15 em 15DEZ70 e talvez o camarada Mexia Alves ainda o tivesse encontrado - chegado em rendição individual ao TO apenas em DEZ70); Alf Mil José Alberto Guedes de Almeida da 2589 (julgo que não era o mais antigo dos Alf, mas admito que tenha sido nomeado por ter sido ele quem me substituiu em MANSOA – onde estava a sede administrativa da CCaç - no termo da comissão, enquanto estive colocado em CUTIA).
2. Acerca da Conta Corrente com a Manutenção Militar (MM) a situação era a seguinte:
2.1) desde que tinha assumido a responsabilidade da CCaç remeti os primeiros Mapas m/1 (JAN assinado pelo Alf Martinez e FEV já por mim assinado) em 13ABR70 e depois todos os mapas até OUT70 (3 dos quais assinados pelo Alf Amorim), mapas esses que tinham sido dados como conferidos pela MM;
2.2) os 2 últimos desse ano tinham sido remetidos em 2 e 12 FEV, ainda de MANSOA (recorde-se que desde NOV estive colocado em CUTIA afastado pois da sede);
2.3) o de JAN71 entregue já pela CL, em 19FEV pelo Vagomestre e o referente aos dias de FEV (apenas 10) pouco depois deste, mas já depois de termos os resultados da conferência do de JAN;
2.4) a CL tinha iniciado a sua tarefa logo no dia imediato à sua colocação no CUMURÉ, para aproveitar ao máximo a presença dos diversos elementos que tinham sido incumbidos no início da comissão por certas tarefas. No caso da 2589 (pelo primitivo Cmdt e que eu não alterei) por exemplo: o 1.º Sarg (secretaria – cofre); um 2.º Sarg (material de aquartelamento, equipamentos e outros); Vagomestre (logicamente alimentação – mapas m/1);
2.5) enquanto permaneci em BISSAU ia tomando conhecimento do andamento dos trabalhos e acompanhando-os sempre que possível, já que era o mais interessado;
2.6) à data do embarque do BCaç (o apontamento na minha agenda refere no dia 24FEV71, quarta-feira, muito sucintamente [Embarque BCaç 2885 para Metrópole Uíge]), o último mapa conferido pela MM era o de JAN71, sem que fosse levantado qualquer problema sobre faltas.
Por isso tinha partido, 10 dias depois…, para MANSABÁ muito tranquilo…
GUERRA ENTRE CCAÇ 2589 E SIM
Segunda-feira, 15MAR
Segui para a Capital em meio aéreo – DO - onde me encontrei, não só com o Alf Almeida, mas também com o 2.º Cmdt e o Cmdt da CCS, que me deram conta da situação.
Tratava-se da única falha do BCaç.
Ainda por cima… pensei.
A CL tinha todos os assuntos resolvidos, com esta excepção, mas como este tinha sido exposto superiormente, iria demorar a resolver, até porque não era muito linear e, como eu permanecia no TO, eles (os da CL subentenda-se) ficariam livres para regressar à Metrópole. O mexilhão – neste caso eu – que se lixasse.
Entregaram-me as pastas dos arquivos referentes aos víveres (é das poucas relíquias que mantenho e as quais não alienei) e, face a tal documentação, tendo em conta a actividade da CL ainda com a ajuda do pessoal até ao seu embarque (em que o Vagomestre tinha acompanhado o Alf), analisou-se a situação que sucintamente se traduzia:
a) as 2 facturas em causa tinham sido recebidas na CCaç em 29AGO e 30NOV e devolvidas à MM, após conferência (esta era feita pelo Vagomestre), em 1SET e 2DEZ respectivamente;
b) não tinham sido referidas nos respectivos ou posteriores célebres Mapas m/1 (elaborados pelo mesmo);
c) na pasta de arquivo dos duplicados desses mapas (arquivo este manuseado pelo Vagomestre) ou da correspondência com os SI (manuseado pelo 1.º Sarg), onde deveriam encontrar-se, não apareciam (no verão de 2003 quando finalmente resolvi limpar o pó àquelas pastas amarelecidas que descobri no sótão da casa, relembrei o porquê de as ter em meu poder e resolvi fazer uma nota sobre este acontecimento e então descobri 2 exemplares duma das facturas – a n.º 4810/v referente às Rações de Substituição – que estavam agarradas com clipe a um m/1 relativo a uma data muito anterior à da factura).
Perante estas evidências, o mais experiente nestes assuntos (Cap Castro) aconselhou-me a enviar imediatamente um telegrama dirigido ao Vagomestre, responsabilizando-o e mandando-o contactar, já na Metrópole, esse referido Cap que o elucidaria sobre o problema e a melhor forma de o resolver
Entretanto segui com o Alf para os SI onde argumentei com base nos factos descritos e manuseando os documentos em arquivo, insinuando junto dos superiores, mas sugerindo mesmo aos escriturários que conferiam os mapas, que deveria ter havido cumplicidades no caso (face ao descrito no ponto 2.6 e ao intervalo de tempo passado até à conferência do último m/1 que se reportava apenas a 10 dias).
Pedi ao 2.º Cmdt do SI que suspendesse o envio da participação para o QG, até receber resposta ao telegrama que iria remeter ao Vagomestre, intimando-o a repor a verba em questão. Foi aceite este meu pedido, com a indicação de que a participação ficaria sem efeito, logo que a importância em falta desse entrada nos cofres do SI, mesmo em Lisboa.
No dia seguinte enviei o telegrama e segui na coluna para MANSOA, onde pernoitei, para a 17 me apresentar novamente em MANSABÁ, enquanto os elementos da CL abandonaram o TO na data prevista, 19MAR.
Mas o problema não acabou aqui… foi-se enrolando… enrolando… e só me libertei dele em JAN72, quando fiz as últimas diligências no Serviço de Justiça (SJ) do QG/CTIG, uma vez que o fim da comissão estava à porta e os Superiores do CAOP 1 me aconselharam a resolver o assunto, porque por eles, no fim de JAN ficava livre.
De facto o Vagomestre recebeu o meu telegrama, falou com o Cap Castro, trocámos correspondência até finais de Maio. Como tardou a responder ao telegrama, pedi para darem seguimento à participação e, por coincidência, a 1.ª carta dele recebi-a precisamente no dia em que tinha regressado de BISSAU onde tinha ido tratar do assunto e efectuar tal pedido. Depois fui ouvido em declarações, já em TEIXEIRA PINTO. Ele respondeu a uma 1.ª deprecada no Tribunal em Santarém, não encerrando o problema, pelo que voltei a responder novamente a quesitos em BISSAU, mostrando a correspondência trocada. Houve nova deprecada para Santarém e, como disse no parágrafo anterior, em 8 ou 25JAN nos SJ fui finalmente ilibado, ficando assim desligado do processo e sem saber como foi resolvido o assunto.
Devo sublinhar que, na dúvida, nunca acusei o militar em questão de desvio dos víveres, mas sim de negligência nas suas funções, por isso responsável por essa falta, mas afirmando-lhe, por escrito, que tinha ficado muito sentido com a sua atitude e lamentando a sua atitude para comigo.
E afinal que géneros não tinham sido justificados como consumidos ou passados à CCaç que nos rendeu?
Rações de Substituição n.º 30, no valor de 8.292$50. E a verdade é que quando da entrega dos géneros à nova CCaç havia uma quantidade destas rações a mais…
Bidons de vinho (quantos litros?) – 7; Garrafões de vinagre – 5 e Géneros diversos, tudo no valor de 34.077$00.
CONCLUSÃO
De forma alguma este meu exemplo serve para justificar qualquer acto de ganância daquelas que tenha havido. Quando muito pequenos desenrascansos, que possam ter ocorrido.
A minha intenção porém era mais a de levantar a questão em si. Provocar talvez o debate, sobre esta faceta da Parte Administrativa (ou não seria melhor chamar-lhe antes Burocrática) da Guerra.
Reparem.
Naquelas condições que os camaradas tão bem conheceram, a maior parte em locais bem piores do que aqueles que frequentei, ter de se manter toda uma secretaria tão cheia de papeladas… julgo que era um exagero.
E eram essas papeladas que evitavam os desvios?
Vejamos por exemplo o caso dos víveres.
a) Requisição dos Géneros, em impresso modelo apropriado, devidamente assinada e autenticada;
b) Fornecimentos desses géneros, assinando o levantador um dos exemplares das Guias de Fornecimento;
c) Entrada no Depósito da Unidade com as Guias, conferência e registo nos m/1;
d) Recebimento posterior (muitas vezes demorado), das Facturas remetidas pela MM (original e 4! Duplicados), respectiva conferência e devolução (com respectivo ofício) à MM do original, quadruplicado e quintuplicado. Quando as Facturas vinham trocadas (vezes demais…), sua devolução (com ofício) para a correspondente creditação da Conta Corrente;
e) Havia, pelo menos nos casos como o nosso que estávamos sediados no mesmo quartel do BCaç, as Guias de transferência do fornecimento diário de pelo menos pão e gelo pela CCS;
f) Havia as aquisições feitas directamente às Casas Comerciais (pagas directamente em dinheiro, contra recibo autenticado), quer de BISSAU, quer locais, que tinham igualmente de ser controladas;
g) Aquisições a autóctones ou caçadores que tinham de ficar registadas com documentação, na maioria dos casos autenticadas com a assinatura de 3 testemunhas (em regra militares), além do pagador que era o 1.º Sarg, sempre que os fornecedores não soubessem assinar.
Bem, depois havia que prestar muito naturalmente contas mensais, com prazos a cumprir (até ao dia 15 do mês seguinte), que não passavam de meras intenções teóricas, já que os próprios Serviços Centrais eram os primeiros a atrasarem-se no envio das Facturas (em média cerca de 1 mês, com a agravante dos últimos 6 meses da comissão terem passado a ser desde 67 a 95 dias e, pasme-se, uma última comunicação de acerto de contas referente a uma Factura do início de NOV70 só ter sido feita com ofício de 27FEV71 recebido já no CUMURÉ pela CL, uma vez que a unidade já levava 3 dias de viagem em pleno Atlântico!), preenchendo esses mapas m/1, onde se descriminavam todos os factores entrados, quantidades consumidas, montantes (monetários) dispendidos e respectivos saldos que transitavam para o mês seguinte. Tudo isto devidamente justificado com os correspondentes documentos comprovativos.
E, como digo, em MANSOA até éramos uns privilegiados. Colunas à Capital todos os dias da semana, com excepção dos domingos. Facilidade portanto de frequentes contactos com os Serviços Centrais. A CCaç estava sob a asa do BCaç, permitindo ao 2.º Cmdt, a quem competiam essas funções, inspecções administrativas frequentes (a que estava sediada no JUGUDUL também tinha essas visitas regulares, enquanto a de PORTO GOLE estava entregue a si própria). Como este Oficial não queria prolongar o seu tempo de permanência na CL, não se cansava de puxar por nós para termos tudo em ordem…
Mas se analisarmos bem esta questão de todo este teórico esquema burocrático da Administração Militar, facilmente chegamos à conclusão de que não salvaguardava as falcatruas que se quisessem cometer, nas unidades do mato, ainda que sem dúvida as maiores, seriam feitas nas grandes aquisições.
Quer queiramos quer não apenas a honestidade das pessoas era a pedra basilar da estrutura montada. Quem tinha responsabilidades nestas unidades, isto é, quem respondia por quê, na chamada cadeia de comando, o que queria era os mapas devidamente conferidos atempadamente.
Quem tivesse propensão para o gamanço tinha muitas oportunidades para o fazer:
a) Tantos ataques aos aquartelamentos, às colunas de reabastecimento, para justificar com autos de abate…
b) Deficientes condições de armazenamento que, quer na época seca, mas principalmente na época das chuvas estragava tanta coisa…
Daí que, se não houvesse honestidade, não fosse fácil deixarem-se apanhar…
Por isso é que a burrice, que por incompetência ou premeditação de quem estava responsável por apresentar ao seu superior a papelada para assinar, que me ia enxovalhando, me deixou desgostoso com tal elemento.
Jorge Picado
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Notas de CV:
(*) Vd. último poste de Jorge Picado de 4 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3402: Acção psicológica a funcionar... O Desporto em Chão Manjaco (Jorge Picado)
(**) Vd. poste de 27 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3528: A guerra estava militarmente perdida (31)? Perdida pela ganância, incompetência e nas relações internacionais. José Manuel Dinis
Vd. último poste da série de 22 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3499: Controvérsias (10): Vi em 1961 chegarem, a Bissau, as primeiras tropas equipadas com a espingarda automática G3 (Mário Dias)
Guiné 63/74 - P3575: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (3): A minha mensagem para todos os que passaram pela Guiné (Valentim Oliveira)
O Valentim Oliveira e Camaradas no Natal de 1963, na Amura, Bissau. Em Janeiro de 1964 seguiu-se a op "Tridente" no Como e o Natal de 1964 foi passado em Farim, sector em que o BCav 490 estacionou até ao regresso.
Amigos e Camaradas da Guiné,
Hoje consegui tirar um pouquinho do meu tempo para me dirigir á Tabanca Grande, visto que já há muito tempo tenho estado em silêncio.
Como todos nós sabemos está a apróximar-se a época Natalícia.
É uma época que todos nós festejamos, uns duma maneira outros de outra, mas no sentido da palavra, tudo se cruza no mesmo caminho.
E é neste caminho, meu caros amigos, que eu me dirigo a todos, com a minha mensagem de Natal; desejando a todos que passaram pelos caminhos da Guiné, um Natal cheio de alegria e um 2009 com prosperidade para uma vida melhor.
São estes os votos do vosso camarada e amigo, ex-Soldado Condutor Auto 784/63 da Companhia de Cavalaria 489 do Batalhão 490.
São estes os votos do vosso camarada e amigo, ex-Soldado Condutor Auto 784/63 da Companhia de Cavalaria 489 do Batalhão 490.
Para o nosso Comandante Luís Graça e Co-Editores Virgínio Briote e Carlos Vinhal um faterno Abraço!
Tenho estado com o Tertuliano Alferes Rui Alexandrino Ferreira, hoje Tenente Coronel, Autor do livro "Rumo a Fulacunda", do qual tenho um exemplar oferecido por ele.
Está de boa saúde e é um Ser Humano digno de todo o respeito, pelo humanismo que transmite às pessoas. E aqui deixo um grande abraço e um obrigado sentido para o Rui!
Valentim Oliveira
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Notas de vb:
1. Artigo do Valentim Oliveira em
16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3064: Os nossos regressos (10): Uma ida atribulada, um regresso tranquilo...(Valentim Oliveira)
2. Artigos relacionados em
5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3571: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (2): Onde pára o espírito do Natal? (António Matos)
Guiné 63/74 - P3574: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria ) (4): Conhecer a realidade de Bula
Luís Faria
ex-Fur Mil Inf MA
CCAÇ 2791
Bula e Teixeira Pinto
1970/72
1. Mensagem de Luís Faria, com data de 2 de Dezembro de 2008:
Carlos e Luís
Um abraço e mais uma vez, PARABÉNS
Em anexo segue mais um capítulo que coloca a CCaç 2791 e a mim num contexto de final de viagem, digamos assim, e no começo de uma fase mais intensa, física e psicologicamente.
Outro abraço
Luis S Faria
2. BULA – Sector 01-A
Feita a recepção pela velhice e depois de uma noite dormida (?) em sobressalto, há que experimentar o duche à nharro, tomar o pequeno-almoço e conhecer os cantos à casa.
Lá estavam os obuses (14?), que nos tinham pregado um susto do caraças, a Capela, a prisão e restantes instalações já vistas. Fora deste perímetro havia a pista, as instalações do Esquadrão de Cavalaria com as suas Panhard e o seu bar espectacular, em nada a ver com o nosso.
Conhecida a realidade do perímetro militar, havia que o fazer na povoação. Na rua principal, relativamente larga, frente à Porta de Armas eram as casas para Oficiais e famílias. Ao longo da rua apareciam as de comes e bebes, comércio, o cinema coberto, mas com paredes a meia altura gradeadas em cimento (uma vez fui a uma sessão e às tantas deixaram de se ver as imagens! As formigas voadoras atraídas pela luz eram tantas que virtualmente taparam o ecrã !!) a loja do fotógrafo lá no largo, de um casal português muito simpático. E que me lembre, pouco mais havia de interesse.
Bula (Vila) era a povoação mais importante do sector e sede de Posto Administrativo.
Fazendo parte do chão Mancanho, a grande maioria da população (pouco colaborante) era no entanto de etnia Balanta que se misturava com a Mancanha e outras, cabo-verdianos, libaneses e alguns portugueses. O comércio era dos três últimos. (Ao que me lembro, ainda não havia por lá chineses!).
Era atravessada no sentido Norte/Sul pela estrada João Landim – Bula - S. Vicente (alcatroada) e no sentido Este/Oeste pela via Có – Bula - Binar. Todo o sector era plano (os únicos montes que havia chamavam-se baga–baga!), rodeado de bolanhas a vegetação, fora os cajueiros, laranjais, palmares e cabaceiras (poilões?) e outras, era por norma rasteira e pouco densa, com excepção nas zonas de Choquemone e P. Matar que era luxuriante, tão densa e intrincada que em muito sitio era quase impenetrável - (Oh Faria ,Faria …os cabrões estão a apanhar-me…!! Corri e deparo-me com o Fur . Almeida imobilizado pelo emaranhado de arbustos…! estávamos a ser emboscados à saída de um acampamento temporário IN, em P.Matar.)
Era um sector de passagem e de permanência (Ponta Matar e Choquemone) do IN que, ao que julgo saber, também se quedava pela povoação onde tinha muitos apoios. Assim e sendo João Landim o acesso principal a/de Bissau naquele sector, um dos trabalhos da nossa tropa era zelar pela segurança no eixo João Landim - Bula - S Vicente, por onde todos os dias transitavam colunas de viaturas civis, acompanhadas por escolta militar.
Para além do patrulhamento e estacionamento de tropas ao longo da estrada Bula – S. Vicente, também havia, como já foi referido neste Blogue pelo António Matos, um extenso campo de milhares de minas e algumas armadilhas ao longo de vários quilómetros que ladeavam pelo sul a estrada, visando condicionar o trânsito IN entre Norte e Sul, e que foi acrescido em mais 1 ou 2 quilómetros. (Todo este imenso campo de minas viria a ser levantado por uma dúzia de Alferes e Furriéis de minas e armadilhas. As minhas mãos levantaram 1032!! perdi anos de vida e felizmente, pela Graça a Deus, também por autodomínio e não facilitar, fiquei no grupo dos 3 ou 4 que não ficaram estropiados! Tantos que ajudei a tirar, meu Deus! Malditas minas!)
Para fazer esta segurança, ficaram estacionadas em Bula, para além do Esquadrão Panhard e Pelotão de Obuses, as Companhias Independentes, CCaç 2789; 2790 (Açorianas) e 2791 (Metropolitana) a que eu pertencia e que formaram o BCaç 2928, comandado por um Tenente Coronel (posteriormente promovido a Coronel) e 2 Majores – que rendeu o BCav 2868. Havia também a milícia nativa disseminada pelas tabancas, que nos prestou uma ou duas vezes apoio.
A vida no quartel foi pacata nos primeiros 3 ou 4 dias: arranjei lavadeira, a Isabel, bonita balanta, mulher do nosso guia Inchalá Guancane que nos levaria a sítios que ainda não conhecíamos (oh Inchalá, ainda falta muito para o objectivo f…? Na me Furié, é já li... - e andávamos mais uma hora!) De princípio houve alturas em que pensei: - cuidado que o f. p. está com eles e andamos aqui às voltas para nos f…! - mas não. O Inchalá foi um Guia em que passei a confiar, competente, seguro e valente. Ao que ouvi, não sobreviveu à Independência. Espero que não seja verdade.
Uns toques de viola, umas bazucas no bar, uma escrita para a família e noiva, uma ou outra incursão à povoação acompanhado de uma Walter que requisitei e da minha faca de mato (comprada na Casa Barral - Porto) minha companheira quase permanente, que ainda hoje tenho e conta algumas estórias/histórias!
E foram assim esses poucos dias iniciais em Bula. A breve trecho ia começar o trabalho!
Um abraço à Tertúlia
Luís S Faria
O meu equipamento base
Bula > Ecrã e palco – Atrás os nossos quartos
Bula > Luís Faria junto à Porta de Armas
Bula > Beleza feminina local
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3508: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (3): Chegada a Bula
Guiné 63/74 - P3573: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (1): Os elefantes voltam ao Cantanhez
Guiné-Bissau > AD - Acção para o Desenvolvimento > Foto da semana > 30 de Novembro de 2008
"Este ano os orizicultores da Guiné-Bissau estão felizes. A campanha agrícola foi boa, mesmo nas zonas mais problemáticas como a região norte junto à fronteira com o Senegal onde as precipitações anuais são das mais fracas.
"Em Djufunco os campos de arroz apresentam-se com este aspecto encorajador, sobretudo se nos lembrarmos que no ano passado a colheita chegou a ser nula na maior parte do chão felupe.
"Adivinham-se já grandes manifestações culturais durante a próxima época seca, especialmente os famosos torneios de lutu, uma espécie de luta greco-romana, onde diversas tabancas rivalizam desportivamente através de competições de rara beleza e significado, que se vão alternando em várias localidades".
Foto e legenda: Cortesia de © AD - Acção para o Desenvolvimento (2008)
1. Há dias o Pepito pediu-me as moradas de três camaradas nossos. Presumi que fosse para ele lhes mandar, pessoalmente, as prendas do Pai Natal da Guiné... Pedi-lhes, a esses três camaradas, que fizessem essa gentileza, directamente, através do mail da AD... Estávamos num desses dias de frio de rachar, a lembrar o pior frio da Guiné, nas noites de Dezembro (para mim, emboscado à noite, pior que o calor e a humidade do dia)... E ao Pepito, perguntou-lhe em post-scriptum: "Meu querido amigo e irmão, andas muito triste e calado... Ou é já do stresse natalício ?"...
Já agora refiro que, há umas semanas atrás, o Pepito veio a Portugal, numa viagem relâmpago, fazer uma operação às cataratas, operação essa que correu bem, felizmente. Sei que ele me telefonou para o nº de telemóvel antigo... Acabei por não estar com ele. LG.
2. Aqui está a resposta dele, que transcrevo, censurada, e que tem a data de 3 de Dezembro:
Luís:
Obrigado pelo apoio. Ando é sem tempo para me coçar. Tem havido boas notícias (mesmo se contarmos com as inventonas...), lá por baixo:
(i) ontem passaram para Cantanhez no corredor de Balana 3 elefantes (o casal e o filhote);
(ii) a atribuição à AD do terreno do quartel de Guiledje avança bem;
(iii) já por lá anda a equipa para o levantamento de minas e obuses;
(iv) vamos começar na próxima semana a distribuição dos cerca de 50 cartões com roupas e prendas dadas pelo Zé Carioca e Diamantino.
Um abração amigo
pepito
"Este ano os orizicultores da Guiné-Bissau estão felizes. A campanha agrícola foi boa, mesmo nas zonas mais problemáticas como a região norte junto à fronteira com o Senegal onde as precipitações anuais são das mais fracas.
"Em Djufunco os campos de arroz apresentam-se com este aspecto encorajador, sobretudo se nos lembrarmos que no ano passado a colheita chegou a ser nula na maior parte do chão felupe.
"Adivinham-se já grandes manifestações culturais durante a próxima época seca, especialmente os famosos torneios de lutu, uma espécie de luta greco-romana, onde diversas tabancas rivalizam desportivamente através de competições de rara beleza e significado, que se vão alternando em várias localidades".
Foto e legenda: Cortesia de © AD - Acção para o Desenvolvimento (2008)
1. Há dias o Pepito pediu-me as moradas de três camaradas nossos. Presumi que fosse para ele lhes mandar, pessoalmente, as prendas do Pai Natal da Guiné... Pedi-lhes, a esses três camaradas, que fizessem essa gentileza, directamente, através do mail da AD... Estávamos num desses dias de frio de rachar, a lembrar o pior frio da Guiné, nas noites de Dezembro (para mim, emboscado à noite, pior que o calor e a humidade do dia)... E ao Pepito, perguntou-lhe em post-scriptum: "Meu querido amigo e irmão, andas muito triste e calado... Ou é já do stresse natalício ?"...
Já agora refiro que, há umas semanas atrás, o Pepito veio a Portugal, numa viagem relâmpago, fazer uma operação às cataratas, operação essa que correu bem, felizmente. Sei que ele me telefonou para o nº de telemóvel antigo... Acabei por não estar com ele. LG.
2. Aqui está a resposta dele, que transcrevo, censurada, e que tem a data de 3 de Dezembro:
Luís:
Obrigado pelo apoio. Ando é sem tempo para me coçar. Tem havido boas notícias (mesmo se contarmos com as inventonas...), lá por baixo:
(i) ontem passaram para Cantanhez no corredor de Balana 3 elefantes (o casal e o filhote);
(ii) a atribuição à AD do terreno do quartel de Guiledje avança bem;
(iii) já por lá anda a equipa para o levantamento de minas e obuses;
(iv) vamos começar na próxima semana a distribuição dos cerca de 50 cartões com roupas e prendas dadas pelo Zé Carioca e Diamantino.
Um abração amigo
pepito
Guiné 63/74 - P3572: Estórias cabralianas (43): O super-periquito e as vacas sagradas (Jorge Cabral)
1. Mensagem de Jorge Cabral (*):
Querido Amigo!
Sem tempo nem oportunidade para voltar à Guiné, veio a Guiné ter comigo. Só numa Turma [, da Universidade Lusófona,] tenho seis guineenses. Elas, papel, manjaca, mandinga, fula e mancanha, ele balanta.
Adoram que eu fale este crioulo de tuga e afianço-lhes que sou meio fula, meio mandinga e que ainda aprecio uma bela bajuda.
A fula, que é mulher grande, pergunta-me malandra se quero casar com a filha.
- Quantas vacas? - Brinco. Conto-lhe estórias...e relato-lhe normas dos ancestrais direitos étnicos.
O roubo entre os balantas, o infanticídio ritual, a estrutura familiar dos Bijagós... Vão depois perguntar às mães e às avós......e ficam admiradas.
- Mas quantos anos viveu o professor na Guiné?
- Poucos, mas muitos - explico-lhes...
Ah! A Guiné! Que pena termos lá estado, durante a Guerra.
Mando estória, esta sim cabraliana.
Abraço Grande
Jorge Cabral
2. Estórias cabralianas (43) > Uma Tragédia: O Super-Periquito e as Vacas Sagradas
por Jorge Cabral
Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:
-Duas vacas, Alfero, duas vacas!
Troco um olhar com o Branquinho, e pensamos os dois exactamente o mesmo:
– Porra, o gajo chora é pelas vacas que pagou pela compra da mulher.
A morta fica mas o Maunde volta... Só amanha se fará o funeral. No regresso e no resto da noite continuará o pranto:
- Duas vacas! Duas vacas!
Precisamente nesse dia apresentara-se o Cabo Freitas, mais um super-periquito, como todos os brancos do Pelotão, vindo directamente da Metrópole.
Aprenderemos depois que o Freitas tem um herói – o tio que esteve na Índia. A propósito ou a despropósito, há-de citá-lo sempre:
- Contou-me o meu tio...
Ao jantar nesse dia, claro que o assunto seria a morte da Cumbá. O Freitas porém antecipou-se na conversa:
- Coitadas das vacas? Já escrevi ao meu tio. Vai gostar de saber que aqui também as vacas são sagradas!
Jorge Cabral
__________
Notas de L.G.:
(*) Ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71. Actualmente, jurista e professor universitário, especialista em direito criminal. Nasceu, trabalha e vive em Lisboa. O seu sonho, modesto, era voltar a ser chefe da tabanca de Fá Mandinga, junto ao Rio Geba... Ainda recentemente me perguntou se não queria comprar uma morança em Finete...
(**) Vd. último poste da série > 26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)
Querido Amigo!
Sem tempo nem oportunidade para voltar à Guiné, veio a Guiné ter comigo. Só numa Turma [, da Universidade Lusófona,] tenho seis guineenses. Elas, papel, manjaca, mandinga, fula e mancanha, ele balanta.
Adoram que eu fale este crioulo de tuga e afianço-lhes que sou meio fula, meio mandinga e que ainda aprecio uma bela bajuda.
A fula, que é mulher grande, pergunta-me malandra se quero casar com a filha.
- Quantas vacas? - Brinco. Conto-lhe estórias...e relato-lhe normas dos ancestrais direitos étnicos.
O roubo entre os balantas, o infanticídio ritual, a estrutura familiar dos Bijagós... Vão depois perguntar às mães e às avós......e ficam admiradas.
- Mas quantos anos viveu o professor na Guiné?
- Poucos, mas muitos - explico-lhes...
Ah! A Guiné! Que pena termos lá estado, durante a Guerra.
Mando estória, esta sim cabraliana.
Abraço Grande
Jorge Cabral
2. Estórias cabralianas (43) > Uma Tragédia: O Super-Periquito e as Vacas Sagradas
por Jorge Cabral
Cumbá, a terceira mulher do Maunde, ainda uma menina, sentiu as dores de parto, ao princípio da noite. Às duas da manhã sou lá chamado. Está muito mal e as velhas não sabem o que fazer. Eu também não. Vamos para Bambadinca. Chegamos, mas Cumbá morre e com ela a criança não nascida. Amparo o Maunde, que chora e grita:
-Duas vacas, Alfero, duas vacas!
Troco um olhar com o Branquinho, e pensamos os dois exactamente o mesmo:
– Porra, o gajo chora é pelas vacas que pagou pela compra da mulher.
A morta fica mas o Maunde volta... Só amanha se fará o funeral. No regresso e no resto da noite continuará o pranto:
- Duas vacas! Duas vacas!
Precisamente nesse dia apresentara-se o Cabo Freitas, mais um super-periquito, como todos os brancos do Pelotão, vindo directamente da Metrópole.
Aprenderemos depois que o Freitas tem um herói – o tio que esteve na Índia. A propósito ou a despropósito, há-de citá-lo sempre:
- Contou-me o meu tio...
Ao jantar nesse dia, claro que o assunto seria a morte da Cumbá. O Freitas porém antecipou-se na conversa:
- Coitadas das vacas? Já escrevi ao meu tio. Vai gostar de saber que aqui também as vacas são sagradas!
Jorge Cabral
__________
Notas de L.G.:
(*) Ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71. Actualmente, jurista e professor universitário, especialista em direito criminal. Nasceu, trabalha e vive em Lisboa. O seu sonho, modesto, era voltar a ser chefe da tabanca de Fá Mandinga, junto ao Rio Geba... Ainda recentemente me perguntou se não queria comprar uma morança em Finete...
(**) Vd. último poste da série > 26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3571: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (2): Onde pára o espírito do Natal? (António Matos)
1. Estamos a publicar o comentário que o nosso camarada Antonio Matos deixou no poste Guiné 63/74 - P3558: As Boas-Festas da Nossa Tabanca Grande (1): Está na hora (Santos Oliveira) (*), pela sua abordagem ao carácter mercantil da festividade, em detrimento do antigo conceito de época em que todos os Homens se sentiam mais próximos, mais solidários e quando até era possível uma pausa na guerra.
Assim disse António Matos:
Cada vez mais se desvirtua o espírito de Natal, quer transformando-o num verdadeiro poço de consumismo desmedido, quer mesmo pela antecipação das compras as quais, pasme-se, são feitas de mãos dadas com as crianças para que sejam elas mesmas a escolher as respectivas "surpresas"!
Longe vão os tempos em que, já depois, e ainda assim, desenganados pelo Pai Natal, nos reuníamos naquele misto de fraternidade familiar, e suspense pelas dádivas no sapatinho que miraculosamente apareciam aquando do regresso da missa do galo….
É o sinal dos tempos no seu pior onde, após o desembrulhar de toda aquela quinquilharia, ficamos perplexos ao questioná-las no confronto com as desigualdades…
É o sinal dos tempos ao mandarmos um email substituto do telefonema pessoal, caloroso, amigo, cúmplice, solidário…
É o sinal dos tempos esta competitividade que não permite que sejamos considerados reactivos à iniciativa dos outros e queiramos demonstrar a nossa pró-actividade em tomar a dianteira…
É por tudo isso que aqui estou, desde já, a desejar-vos as Boas Festas Natalícias!
Aproveito para estender os votos a 2009 no sentido de que esse ano possa vir a ser diferente do que se lhe augura!
Abraços do,
António Matos
_________________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3558: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (1): Está na Hora (Santos Oliveira)
Assim disse António Matos:
Cada vez mais se desvirtua o espírito de Natal, quer transformando-o num verdadeiro poço de consumismo desmedido, quer mesmo pela antecipação das compras as quais, pasme-se, são feitas de mãos dadas com as crianças para que sejam elas mesmas a escolher as respectivas "surpresas"!
Longe vão os tempos em que, já depois, e ainda assim, desenganados pelo Pai Natal, nos reuníamos naquele misto de fraternidade familiar, e suspense pelas dádivas no sapatinho que miraculosamente apareciam aquando do regresso da missa do galo….
É o sinal dos tempos no seu pior onde, após o desembrulhar de toda aquela quinquilharia, ficamos perplexos ao questioná-las no confronto com as desigualdades…
É o sinal dos tempos ao mandarmos um email substituto do telefonema pessoal, caloroso, amigo, cúmplice, solidário…
É o sinal dos tempos esta competitividade que não permite que sejamos considerados reactivos à iniciativa dos outros e queiramos demonstrar a nossa pró-actividade em tomar a dianteira…
É por tudo isso que aqui estou, desde já, a desejar-vos as Boas Festas Natalícias!
Aproveito para estender os votos a 2009 no sentido de que esse ano possa vir a ser diferente do que se lhe augura!
Abraços do,
António Matos
_________________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3558: As Boas Festas da Nossa Tabanca Grande (1): Está na Hora (Santos Oliveira)
Guiné 63/74 - P3570: Tabanca Grande (102): Vasco da Gama, ex-Cap Mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74
Vasco da Gama
Ex-Cap Mil
CCAV 8351
Cumbijã
1972/74
1. Publicamos hoje as fotos do nosso novo camarada Vasco da Gama, recebidas ontem, dia 4 de Dezembro.
Recordemos parte da sua mensagem de 9 de Novembro de 2008, publicada no poste 3436 (*):
Camaradas
Recebi hoje um mail de um camarada da Companhia de Cavalaria 8351, Os Tigres do Cumbijã, que faz parte da Tabanca e cujo nome é João Melo e me fez reavivar sentimentos tão contraditórios como o sentimento da revolta perante a obrigação do cumprimento do serviço militar, e o sentimento da ternura com que os camaradas da minha Companhia, e porventura de tantas outras, partilham nos encontros que vamos promovendo anualmente.
Muito brevemente irei aderir à Tabanca, pois tive a honra de comandar a Companhia de Cavalaria 8351, como Capitão Miliciano, Miliciano obviamente, pois aqueles locais por onde fomos obrigados a deambular destinavam-se aos não profissionais, e ao aderir, vou tentar preencher algumas imprecisões que, por exemplo, ainda hoje li acerca do Cumbijã e de Nhacobá e relembrar alguns dos meus queridos camaradas que morreram em combate, bem como os que ultimamente vão desaparecendo a uma velocidade vertiginosa, ceifados pela doença e pelo suicídio… Será o durante e o após…
Hoje limito-me ao antes e porquê ao antes? Ao consultar a lista dos camaradas da Tabanca da Guiné deparei com o nome Mário Beja Santos! Curioso, como o mundo é pequeno… O Senhor Beja Santos foi meu comandante de pelotão em Mafra, onde assentei praça em Janeiro de 1971. É verdade, também ao recordar esta fase muito difícil da minha vida poderei afirmar peremptoriamente que tive a honra de ter sido comandado, ou melhor ensinado, pelo Dr. Beja Santos, suponho que na altura estudante universitário, quase finalista de um curso de Letras. Eu, estava então na faculdade de Economia da Universidade do Porto, onde terminei a licenciatura em 1975, após ter interrompido os estudos durante quarenta e cinco meses para cumprimento do serviço militar obrigatório, pois passei à disponibilidade em finais de 1974. [...]
2. Comentário de CV
Caro Vasco da Gama
O texto que enviaste, juntamente com as tuas fotos, será publicado noutro poste e noutra série.
Terás uma visão da guerra diferente da maioria de nós, pois na condição de Cap Mil e de CMDT de Companhia, tiveste concerteza situações bem difíceis de enfrentar. Esperamos os relatos destas e outras experiências para conhecimento da tertúlia.
Para já deixo-te uma saudação de boas-vindas em nome da tertúlia.
______________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3436: O Nosso Livro de Visitas (42): Vasco Augusto Rodrigues da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74
Vd. último poste da série de 29 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3540: Tabanca Grande (101): Joaquim Pinheiro da Silva, CCAÇ 3566 "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74)
Guiné 63/74 - P3569: Ao chegar à Guiné ainda pensei em safaris, leões, elefantes...(António Matos)
O bicho mais feroz que vi na Guiné foi, sem sombra de dúvida, um ovovivíparo, munido de probóscide ou tromba (mas não era elefante, que por sinal não é ovovivíparo) que lhe serve para a alimentação, esta à base de sangue dos vertebrados, pertencente à família dos culicidae, da ordem dos diptera e sub-ordem dos nematocera, cuja fêmea, também chamada de trompeteiro, pertence à classe dos insectos - o mosquito!
Dotado de um espírito conflituoso, ataca branco ou preto, homem ou mulher, adulto ou criança, de maneira indiscriminada.
Quando apanhava sangue fresco de periquito, enchia o papo dum néctar dos deuses, deixando a vítima a coçar-se desesperadamente, mas à medida que a comissão se prolongava no tempo, não raras eram as vezes em que caíam de bêbados depois de emborcarem o que nos corria nas veias, onde os glóbulos vermelhos tinham sido apaladados por doses extra de taninos ....
No destacamento de Augusto Barros, tive uma gazela que mais tarde, e na ausência de uma comissão de protecção dos animais, foi transformada em deliciosos bifes e substituída por um ganso fêmea.
Esta tinha como função pôr 2 ou 3 ovos por dia e à noite funcionava como detector de amigos do alheio.
Foi uma altura de suculentos pequenos almoços com monstruosos ovos estrelados, com elevados índices de colesterol, mas isso agora não interessa nada.
Ao chegar à Guiné ainda pensei em safaris, com leões, chimpanzés, elefantes, rinocerontes, mas nada!
Tínhamos mosquitos e já nos podíamos dar por satisfeitos!
Uma vez ou outra, eram reforçados por uns primos afastados de seu nome abelhas mas que se dedicavam mais a operações especiais.
Os mosquitos eram mais tropa fandanga...
Levei dentada de criar bicho, fui evacuado várias vezes tal a dimensão dos hematomas mas não cheguei a ter paludismo!
Aliás, felizmente, não estive nunca doente à excepção do agravar duma duodenite que já levava de cá mas que um tratamento no hospital militar em Bissau, em regime de taskforce à base de whisky, resolveu em três tempos.
António Matos
Dotado de um espírito conflituoso, ataca branco ou preto, homem ou mulher, adulto ou criança, de maneira indiscriminada.
Quando apanhava sangue fresco de periquito, enchia o papo dum néctar dos deuses, deixando a vítima a coçar-se desesperadamente, mas à medida que a comissão se prolongava no tempo, não raras eram as vezes em que caíam de bêbados depois de emborcarem o que nos corria nas veias, onde os glóbulos vermelhos tinham sido apaladados por doses extra de taninos ....
Um dos entreténs era deixá-los pousar nos braços, cravarem fundo o ferrão, deixá-los encher a pança e depois, ZÁS! Uma valente palmada que os esborrachava. Eram verdadeiras vítimas de autêntica roleta russa! E a quantidade de sangue desperdiçado era fantástica!
Coitados, que pena tenho deles....
Quando, por vezes, me empoleirava na arquitectura sofisticada que sustentava uma arejada latrina a céu aberto, tinha ocasião de, enquanto mirava lá para baixo e tentava fazer pontaria acertando naquele ou naqueloutro ponto de referência, detectar pequenas cobritas que me pareciam inofensivas ao pé do mosquito.
Coitados, que pena tenho deles....
Quando, por vezes, me empoleirava na arquitectura sofisticada que sustentava uma arejada latrina a céu aberto, tinha ocasião de, enquanto mirava lá para baixo e tentava fazer pontaria acertando naquele ou naqueloutro ponto de referência, detectar pequenas cobritas que me pareciam inofensivas ao pé do mosquito.
No destacamento de Augusto Barros, tive uma gazela que mais tarde, e na ausência de uma comissão de protecção dos animais, foi transformada em deliciosos bifes e substituída por um ganso fêmea.
Esta tinha como função pôr 2 ou 3 ovos por dia e à noite funcionava como detector de amigos do alheio.
Foi uma altura de suculentos pequenos almoços com monstruosos ovos estrelados, com elevados índices de colesterol, mas isso agora não interessa nada.
Ao chegar à Guiné ainda pensei em safaris, com leões, chimpanzés, elefantes, rinocerontes, mas nada!
Tínhamos mosquitos e já nos podíamos dar por satisfeitos!
Uma vez ou outra, eram reforçados por uns primos afastados de seu nome abelhas mas que se dedicavam mais a operações especiais.
Os mosquitos eram mais tropa fandanga...
Levei dentada de criar bicho, fui evacuado várias vezes tal a dimensão dos hematomas mas não cheguei a ter paludismo!
Aliás, felizmente, não estive nunca doente à excepção do agravar duma duodenite que já levava de cá mas que um tratamento no hospital militar em Bissau, em regime de taskforce à base de whisky, resolveu em três tempos.
António Matos
__________
Notas de vb:
1. António Matos foi Alf Mil da CCaç 2790.
2. Artigo do Autor em
2 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3555: Navio "Carvalho Araújo". (António Matos)
Notas de vb:
1. António Matos foi Alf Mil da CCaç 2790.
2. Artigo do Autor em
2 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3555: Navio "Carvalho Araújo". (António Matos)
Guiné 63/74 - P3568: Em 10 Setembro de 1974 nas bancas de Bissau, "A Voz da Guiné" com outros dizeres...(Eduardo Magalhães Ribeiro)
Voz da Guiné
Propriedade Sociedade Editora da Guiné, SARL
Ano III
Especial
Terça Feira, 10 de Setembro de 1974
1$00
Director: Duran Clemente
REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU
Ao mais jovem País Africano a homenagem do Povo Português
Dois Povos e um objectivo comum: VERDADEIRA LIBERTAÇÃO
Repetimos o que muitas vezes temos afirmado: nós queremos libertar a nossa terra para criar nela uma vida nova de trabalho, justiça, paz e progresso em colaboração com todos os povos do Mundo e muito particularmente com o povo português.
(Cartum, Janeiro de 1969)
AMÍLCAR CABRAL
Propriedade Sociedade Editora da Guiné, SARL
Ano III
Especial
Terça Feira, 10 de Setembro de 1974
1$00
Director: Duran Clemente
REPÚBLICA DA GUINÉ-BISSAU
Ao mais jovem País Africano a homenagem do Povo Português
Dois Povos e um objectivo comum: VERDADEIRA LIBERTAÇÃO
Repetimos o que muitas vezes temos afirmado: nós queremos libertar a nossa terra para criar nela uma vida nova de trabalho, justiça, paz e progresso em colaboração com todos os povos do Mundo e muito particularmente com o povo português.
(Cartum, Janeiro de 1969)
AMÍLCAR CABRAL
O CAMINHO DA VITÓRIA
A criação do PAIGC
(…)
“No quadro da evolução histórica dos nossos dias, o povo da Guiné e Cabo-Verde soube encontrar a forma necessária de forjar um instrumento poderoso que tornasse possível, no contexto de um conjunto de circunstâncias favoráveis no plano mundial, a sua marcha irreversível para a completa liberdade e independência.”
(…)
O PAIGC instrumento de luta de libertação nacional
(…)
“Depois de 8 anos de luta armada o PAIGC, de sucesso em sucesso, conseguiu libertar mais de 2/3 do território nacional na Guiné e fazer progredir grandemente a situação política em Cabo Verde por meio da mobilização e organização do povo cabo-verdiano, criando as condições para um próximo desencadeamento da luta armada. Nas regiões libertadas da Guiné, surgiu uma vida nova, onde o povo é soberano e é já senhor do seu destino, pois se governa a si mesmo, administra, organiza e decide livremente sobre os problemas da vida colectiva, sob a direcção do seu Partido de vanguarda – o PAIGC.”
(…)
O PAIGC na luta dos povos do mundo inteiro contra o imperialismo
(…)
“ O PAIGC apoia na África do Sul o ANC (African National Congress); no Zimbabwe, a ZAPU (Zimbabwe African People’s Union); na Namíbia a SWAPO (South West African People’s Organization); o PAIGC apoia o movimento da Costa da Somália ‘Francesa’ (Território dos Afares) e as reivindicações feitas pelos povos das Comores e da Reunião. Para o seu apoio o PAIGC põe uma outra condição: é que lutem também no interior do seu país.”
(…)
Os princípios revolucionários do PAIGC
(…)
“Quem são os aliados do PAIGC no mundo? Em primeiro lugar, os países socialistas. Nos países capitalistas, há gente que é contra o colonialismo português e que portanto é aliado do PAIGC e que forma mesmo organizações de apoio e solidariedade para com a luta dos movimentos de libertação das colónias portuguesas e, em particular do PAIGC.”
(…)
O CAMINHO DA VITÓRIA
(Cont. pág. 2)
(…)
“ De acordo com o seu programa que realiza progressivamente nas regiões já libertadas da Guiné, o PAIGC prossegue, alarga e desenvolve a sua acção vitoriosa contra os colonialistas portugueses. Para o PAIGC não há, nem poderá haver nunca qualquer diferença entre Guineenses e Caboverdianos, trata-se de um só, de um mesmo povo, que circunstâncias históricas, fora e além da sua vontade, obrigaram a viver, em geral, em dois territórios distantes um do outro.”
A organização Económica e Política nas regiões Libertadas
Proclamação da República da Guiné-Bissau
Reconhecimento pelo Estado Português
Reunidas em Argel, a 26 de Agosto de 1974, as representações do Governo Português e do PAIGC após negociações bilaterais que decorreram num clima de grande cordialidade, em Londres e em Argel, anunciaram terem chegado a um acordo total. Deste acordo, entre outros pontos fundamentais, destaca-se o reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau como Estado soberano pelo Estado português, hoje, dia 10 de Setembro de 1974.
A organização Económica e política nas regiões Libertadas
Conclusão da pág. 3. Citações da “História da Guiné e Cabo Verde, Edição do PAIGC).
__________
Notas de vb:
1. Documentos para a História da Guiné-Bissau. Cópia do Jornal "Voz da Guiné" (4 págs) enviado pelo Eduardo Magalhães Ribeiro (ex-furriel miliciano O. E. da CCS do BCAÇ 4612). Recordamos que, em 9 de Setembro de 1974, o então Furr Mil Magalhães Ribeiro arreou a última bandeira portuguesa, no quartel de Mansoa, na presença de representantes do PAIGC que, por sua vez, hastearam a bandeira da nova República da Guiné-Bissau.
2. Título do artigo da responsabilidade do editor. Quase todos os artigos são extractos da "História da Guiné e Cabo Verde", Edição do PAIGC.
3. artigo relacionado em
Guiné 63/74 - P3567: Humor de caserna (7): O Pastilhas e a bajuda (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71)
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector de Contuboel > Aquartelamento de Contuboel > Junho de 1969 > CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71) > Os 1ºs Cabos Cripto Gabriel da Silva Gonçalves (à esquerda) e José António Damas Murta (à direita), junto ao abrigo de transmissões. Em Junho e Julho de 1969, foi administrada aos futuros soldados (guineenses) da CCAÇ 12 a instrução de especialidade bem como a IAO (LG).
Fotos: © Gabriel Gonçalves (2008). Direitos reservados
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Natal de 1969 > Sargentos e furriéis da CCAÇ 2590/ CCAÇ 12 (1969/71) (quase todos) e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70) (dois). O Fur Enf Martins, mais afectuosamente conhecido como o Bolha d'Água, está na segunda fila, de pé, assinalado com um círculo a vermelho (**).
Legenda: (i) Da esquerda para a direita, na 1ª fila: o Jaime Soares Santos (Fur Mil SAM, vulgo vagomestre); o António Eugénio da Silva Levezinho (Fur Mil At Inf); o António M. M. Branquinho (Fur Mil At Inf); o Humberto Simões dos Reis (Fur Mil Op Esp); o Joaquim A. M. Fernandes, Fur Mil At Inf; (ii) da esquerda para a direita, 2ª fila, de pé: 2º Sargento Inf José Martins Rosado Piça; o Fur Mil Armas Pesadas Inf Luís Manuel da Graça Henriques; um 2º sargento, de cujo nome não me lembro (CCS do BCAÇ 2852); o 1º Sargento Cav Fernando Aires Fragata; o Fur Mil Enfermeiro João Carreiro Martins; e um outro 1º sargento de cujo nome também já não me lembro, da CCS do BCAÇ 2852... Os restantes pertenciam à CCAÇ 12 (na altura ainda, CCAÇ 2590) (LG)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
1. Mensagem do Gabriel Goncalves, ex-1.º Cabo Cripto da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71, enviada em 28 de Novembro de 2008
A estória do Bolha d'Água, ou Furriel Pastilhas, como nós lhe chamávamos, aqui vai (***):
Lembro-me muito bem do Furriel Pastilhas, a última vez que o vi foi num encontro que se realizou na herdade do Vacas de Carvalho [, em Montemor-O-Novo], já lá vão uns anitos e tenho realmente uma estória dele, bastante divertida, daquelas que só se poderiam passar na Guiné, então lá vai:
Uma ocasião passava eu à porta da enfermaria, ouvi uma algazarra do caraças; era o Pastilhas, de seringa na mão direita e de algodão embebido em desinfectante na outra, a gritar para uma bajuda:
- Tira o pano, tira o pano...- e a bajuda gritava:
- Nega, nega!!!...
Como ela não tirava o pano para levar a injecção, o bom do Pastilhas com a mão esquerda desinfectou o pano no sítio certo e zás... espetou a agulha, dando-lhe assim a injecção.
Aproveito a oportunidade para enviar uma foto, tirada em Contuboel, poucos dias após a nossa chegada, onde estou eu e o Murta, os criptos da CCAÇ 2590, à porta do abrigo das transmissões.
Um abraço
GG
2. Comentário de L.G.:
Obrigado, Arcanjo São Gabriel, por te lembrares desta história (divertida) passada com o querido Fur Mil Enf Martins, o nosso querido Pastilhas (talvez mais conhecido por Bolha d'Água e a quem fazíamos mil e uma patifarias) (**)... Ele foi um extraordinário enfermeiro ao serviço da população de Bambadinca. Se queres que te diga, ele é que merecia uma estátua. Ainda hije recordo as filas de dezenas e dezenas de civis (homens, mulheres e crianças, incluindo gente do PAIGC de Nhabijões, Mero, Santa Helena, Madina...), a aguardar mezinho à prota da tabancado Pastilha... Em contrapartida, nunca o conseguimos demover a dar um passeio connosco à Ponta do Inglês.... Não sei até se ele alguma vez saiu do arame farpado a não ser para voltar a casa.... Na enfermaria ele era, com os civis ou militares, competentíssimo e dedicado.
Volltei a vê-lo mais tarde, no início dos anos 90. Foi meu aluno, num curso de especialização em administração de serviços de enfermagem, na antiga Escola Superior de Enfermagem de Maria Fernanda Resende (hoje integrada na Escola Superior de Enfermagem de Lisboa). Reformou-se como Enfermeiro-Chefe no Hospital Curry Cabral. Falei com ele há tempos: é o pai, justamente orgulhoso, de dois médicos... Gostaria de voltar a vê-lo e de abraçá-lo. LG.
_________
Notas de L.G.:
(*) Vd. últimpo poste do Gabriel Gonçalves > 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3545: Memória dos lugares (14): Bambadinca, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, 1969/71 (Gabriel Gonçalves)
(**) Vd. poste de 13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1366: A galeria dos meus heróis (6): Por este rio acima, com o Bolha d'Água, o Furriel Enfermeiro Martins (Luís Graça)
(...) "Pobre Bolha d’Água, pobre Pastilhas!... A alcunha, as alcunhas, ficaram-lhe para sempre coladas à pele. Hoje, reconstituindo os acontecimentos em retrospectiva, penso que ele foi o meu primeiro herói, ou melhor, o meu primeiro anti-herói: nunca o vi a pegar uma arma, duvido até que fosse capaz de pôr a G-3 em posição de tiro; nunca alinhou connosco em operações, mesmo nas grandes operações; recordo-o sempre de bata branca, na palhota que servia de enfermaria, no posto médico de Bambadinca, e onde todos os dias uma interminável fila de mulheres, crianças e velhos aguardava a sua consulta de enfermagem...
"Como enfermeiro, era um tipo competente, despachado, lesto, e a quem de resto recorríamos, com frequência, para picar as nossas bolhas de água nos pés, curar os nossos esquentamentos, com umas valentes doses de penicilina, ou aliviar os febrões do nosso paludismo.. Ele foi o mais útil de todos nós, soube cuidar de nós e da população local...
"Em contrapartida, gostávamos de lhe pregar partidas, algumas de mau gosto e até perigosas: recordo-me de um dia - às tantas da noite, no regresso de uma emboscada - o termos acordado, com uma pistola Walther apontada à cabeça; ou de o termos obrigado, com a cumplicidade do comandante da CCAÇ 12, já na parte final da comissão, a vestir no camuflado, a pegar na G-3 e a pôr ao ombro a mochila dos primeiros socorros... Simulámos uma ida ao mato, soprando-lhe ao ouvido um temível nome como Ponta Varela, Poindão ou Ponta do Inglês... Dissemos-lhe que ele não nunca poderia voltar connosco a Lisboa, virgem, sem o baptismo de fogo...
"Cinquenta metros depois de termos passado a porta de armas a caminho do objectivo, o Martins teve um colapso, um ataque de pânico, vomitou por cima e por baixo, acabou por ser ele a pregar-nos um grande susto... Levámo-lhe de urgência ao posto médico... No dia seguinte lá estava ele a servir as suas pastilhas aos doentes africanos, de Bambadinca, Bambadincazinha e tabancas dos arredores... Era aí que ele se sentia gente, e sobretudo enfermeiro a tempo inteiro... Um homem absolutamente deslocado na tropa e na guerra...
"Voltei a encontrá-lo, muitos anos mais tarde - vinte anos depois - , numa situação algo insólita: era enfermeiro chefe no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e estava a agora a frequentar um curso de administração de serviços de enfermagem, na Escola Superior de Enfermagem Maria Resende. Os nossos papéis agora eram outros: ele, aluno; eu, professor...
"Sei que ele hoje está reformado... Voltei a encontrá-lo mais tarde e lembro-me de ele me ter falado, com muito orgulho, com um brilhozinho nos olhos, do seu filho, agora médico... Perdi-lhe depois o rasto, mas confesso que gostaria de voltar a encontrá-lo, em Lisboa, ou aqui na nossa tertúlia, para lhe dizer que ele agora faz parte da minha de galeria de heróis e também para lhe pedir desculpa de algumas das nossas brincadeiras mais estúpidas que o terão magoado...
"A guerra é cruel, e torna os homens estúpidos e cruéis. E o homem - primata social, territorial e predador - tem, além disso, a particularidade comportamental de ser o único animal do mundo que mata ou humilha as suas presas por mero prazer, usando a violência gratuitamente, sem necessidade...
"O Martins teve o azar de ter sido marcado, desde muito cedo, como alguém que parecia transmitir medo, fraqueza, vulnerabilidade, insegurança - sinais a que qualquer predador está atento, quando observa uma potencial presa. O Martins era um verdadeiro animal acossado nos primeiras semanas ou meses de Bambadinca: ainda antes do lusco-fusco era frequente vê-lo a rondar os abrigos como se estivessemos na iminência de um ataque... Ora no tempo dele, no nosso tempo, nunca houve felizmente uma ataque directo ao aquartelamento de Bambadinca..
"Por outro lado, ele cometera em Contuboel (onde estivemos um mês e meio, no início da comissão) um erro tático ao relacionar-se, de maneira preferencial, com o grupinho do 1º Sargento Fragata, com quem de resto tinha mais afinidades... Os milicianos, sobretudo os operacionais, marcaram-no e às vezes faziam-lhe a vida negra...
"Meu caro Martins: neste Natal desejo-te longa vida e muita saúde, contrariando o provérbio popular que garante Muita saúde, pouca vida, que Deus não dá tudo... Se leres esta mensagem, contacta-me por favor... Há uma conversa que começámos no Niassa e que ficou por terminar" (...).
(***) Vd. último poste desta série > 18 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3476: Humor de caserna (6): Paiama, Paunca, Natal de 1970: o lapso do Caco Baldé (Rogério Ferreira)
Guiné 63/74 - P3566: Blogoterapia (80): Um elogio vindo da Bélgica (Soldado Carvalho / Santos Oliveira)
1. Em 1 de Dezembro de 2008, Anónimo deixou um este comentário no poste Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos O...:
Senhores
Quando cheguei ao Cachil este era o furriel que já lá estava com um pequeno grupo de homens e três morteiros.
Foi o furriel que punha sempre os soldados à sua frente, conversava, falava, jogava, aconselhava e fazia a vigilância da mata, por eles.
Pareciam todos felizes quando os novos por lá ficavam tristes e sozinhos. Muitos de nós acabaram no jogo da lerpa e na cerveja.
Este furriel também tinha sempre um conselho para nós. Poucas vezes o vi festejar ou a beber com os outros furriéis e alferes da minha Companhia.
Este era o furriel que depois de cada ataque vinha saber de posto em posto, como estávamos e dizia-nos que já tinha terminado tudo, que esta já se tinha passado e outras coisas. Tinha sempre uma palavra que nunca ouvimos dos nossos alferes ou furriéis.
Para mim é um grande homem como um pai, porque me ajudou e aos meus companheiros. É o furriel que não dava ordens. Explicava e ensinava e os soldados faziam tudo sem serem precisas ordens.
Este furriel, se quisesse alguém para o seguir numa patrulha para morrer, tinha sempre mais voluntários do que se fosse para um rancho melhorado. Quando se foi embora nunca mais nos sentimos seguros. Só éramos mais experientes.
Estou a morar na Bélgica, não tenho internete, mas há uns portugueses companheiros mais novos do trabalho que têm e vão deixando ver essas coisas da tropa do meu tempo.
Desejo que o senhor Oliveira seja muito feliz, porque também me fez feliz.
Soldado Carvalho
2. Luís Graça deixava também um comentário dirigido a Santos Oliveira, nestes termos:
Aqui está um depoimento de um antigo soldado teu que te vai encher de orgulho. Como português e como homem.
Luís
3. Por sua vez, o visado, camarada Santos Oliveira deixou, ainda neste dia o seguinte comentário no mesmo poste, dirigido a Luis Graça:
Conseguiste pôr-me a chorar.
Inseri este desabafo de muita saudade por quantos "passaram" ou por quem "passei".
Não era um Soldado do Pel Mort 912; presumo seja duma das CCaç que desfilaram pelo Cômo.
Nunca me senti tão pequenino.
Abraços
Santos Oliveira
4. Outro comentário de Santos Oliveira, este dirigido ao ex-Soldado Carvalho
Camarada Carvalho
Se tens vindo a ler as nossas Histórias, certamente já reparaste que todos nos tratamos por tu; portanto será desse modo que te escrevo. As Patentes (ou Postos) que tínhamos, aqui e agora, já não têm cabimento. Fomos Soldados, Cabos, Furriéis, Sargentos, Alferes ou Capitães, porque assim era. Mas agora apenas somos só Homens, Camaradas, Companheiros e Amigos.
Dos Homens ou da Pátria nunca recebi uma Honraria como a que acabas de me conceder. Foi o maior Louvor, a mais alta Medalha ou o mais sublime Colar que, embora aparentemente invisíveis, guardarei no meu peito. A comoção aperta-me o coração, porque acho que passei por tantos camaradas que não lembro mais, mas que a cada dia se vão revelando. Isso traz-me imenso orgulho, mas também alguma frustração por me sentir impotente e incapaz de corresponder ao que ainda vão esperando de mim.
Como dizes, Ordens não as dei como tal e não seria agora que as daria. Mas, dentro do que tão bem ajuizaste, percebes que gostaria de falar contigo frente a frente (nada me daria mais prazer), por telefone, por carta ou pela Internet. Se assim o entenderes podes consultar os Editores deste Blogue luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e ser-te-hão facultados todos os meus contactos.
Por mim, Amigo Carvalho, eu espero continuar por aqui mais uns tempos.
Para ti, por cá ou pela tua Bélgica de adopção, quero desejar-te as maiores venturas. Mais, pela época que se aproxima, votos que abranjam os teus familiares e teus solidários companheiros de trabalho, UM SANTO E FELIZ NATAL
Abraços, do
Santos Oliveira
Tite > Setembro de 1965 > Santos Oliveira
5. Comentário de CV:
Não pudemos deixar de publicar esta troca de comentários, cuja origem foi uma singela, mas sentida homenagem de um homem que não tem pejo em se assinar como Soldado Carvalho para se identificar. Trata-se de alguém que como tantos outros ex-combatentes, não tiveram outra alternativa que não a diáspora, para levarem uma vida mais confortável materialmente. Pelo modo como se dirige ao nosso camarada Santos Oliveira, denota uma sinceridade e uma humildade dignas de nota. Humildade no sentido de não ter vergonha de se expôr, e enobrecer alguém que ainda hoje é uma referência para ele.
Caro Santos Oliveira, aceita a minha inveja por não ter ninguém a quem tenha deixado a minha marca, naquele ambiente tensão, medos, incertezas, onde o espírito de camaradagem e solidariedade eram tão importantes, especialmente para quem, tendo uma patente inferior, era digno de respeito, como ser humano que era. Temos a certeza que honraste a farda e as divisas que trazias nos ombros.
Subscrevo a tua afirmação. Nenhum Louvor ou Condecoração vale tanto como este elogio vindo da Bélgica, de alguém que passados tantos anos, ficou contente por saber de ti.
Ao Soldado Carvalho, nosso velho camarada de armas, votos de muita saúde e uma boa vida na Bélgica. Que o afastamento da Pátria lhe tenha sido favorável, já que ela o não soube compensar.
____________
Notas de CV:
Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66
(*) Vd. poste de 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN
Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3525: Blogoterapia (72): Gabriel, Cruz de Guerra na Guiné, coveiro na freguesia...(V. Briote)
Senhores
Quando cheguei ao Cachil este era o furriel que já lá estava com um pequeno grupo de homens e três morteiros.
Foi o furriel que punha sempre os soldados à sua frente, conversava, falava, jogava, aconselhava e fazia a vigilância da mata, por eles.
Pareciam todos felizes quando os novos por lá ficavam tristes e sozinhos. Muitos de nós acabaram no jogo da lerpa e na cerveja.
Este furriel também tinha sempre um conselho para nós. Poucas vezes o vi festejar ou a beber com os outros furriéis e alferes da minha Companhia.
Este era o furriel que depois de cada ataque vinha saber de posto em posto, como estávamos e dizia-nos que já tinha terminado tudo, que esta já se tinha passado e outras coisas. Tinha sempre uma palavra que nunca ouvimos dos nossos alferes ou furriéis.
Para mim é um grande homem como um pai, porque me ajudou e aos meus companheiros. É o furriel que não dava ordens. Explicava e ensinava e os soldados faziam tudo sem serem precisas ordens.
Este furriel, se quisesse alguém para o seguir numa patrulha para morrer, tinha sempre mais voluntários do que se fosse para um rancho melhorado. Quando se foi embora nunca mais nos sentimos seguros. Só éramos mais experientes.
Estou a morar na Bélgica, não tenho internete, mas há uns portugueses companheiros mais novos do trabalho que têm e vão deixando ver essas coisas da tropa do meu tempo.
Desejo que o senhor Oliveira seja muito feliz, porque também me fez feliz.
Soldado Carvalho
2. Luís Graça deixava também um comentário dirigido a Santos Oliveira, nestes termos:
Aqui está um depoimento de um antigo soldado teu que te vai encher de orgulho. Como português e como homem.
Luís
3. Por sua vez, o visado, camarada Santos Oliveira deixou, ainda neste dia o seguinte comentário no mesmo poste, dirigido a Luis Graça:
Conseguiste pôr-me a chorar.
Inseri este desabafo de muita saudade por quantos "passaram" ou por quem "passei".
Não era um Soldado do Pel Mort 912; presumo seja duma das CCaç que desfilaram pelo Cômo.
Nunca me senti tão pequenino.
Abraços
Santos Oliveira
4. Outro comentário de Santos Oliveira, este dirigido ao ex-Soldado Carvalho
Camarada Carvalho
Se tens vindo a ler as nossas Histórias, certamente já reparaste que todos nos tratamos por tu; portanto será desse modo que te escrevo. As Patentes (ou Postos) que tínhamos, aqui e agora, já não têm cabimento. Fomos Soldados, Cabos, Furriéis, Sargentos, Alferes ou Capitães, porque assim era. Mas agora apenas somos só Homens, Camaradas, Companheiros e Amigos.
Dos Homens ou da Pátria nunca recebi uma Honraria como a que acabas de me conceder. Foi o maior Louvor, a mais alta Medalha ou o mais sublime Colar que, embora aparentemente invisíveis, guardarei no meu peito. A comoção aperta-me o coração, porque acho que passei por tantos camaradas que não lembro mais, mas que a cada dia se vão revelando. Isso traz-me imenso orgulho, mas também alguma frustração por me sentir impotente e incapaz de corresponder ao que ainda vão esperando de mim.
Como dizes, Ordens não as dei como tal e não seria agora que as daria. Mas, dentro do que tão bem ajuizaste, percebes que gostaria de falar contigo frente a frente (nada me daria mais prazer), por telefone, por carta ou pela Internet. Se assim o entenderes podes consultar os Editores deste Blogue luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com e ser-te-hão facultados todos os meus contactos.
Por mim, Amigo Carvalho, eu espero continuar por aqui mais uns tempos.
Para ti, por cá ou pela tua Bélgica de adopção, quero desejar-te as maiores venturas. Mais, pela época que se aproxima, votos que abranjam os teus familiares e teus solidários companheiros de trabalho, UM SANTO E FELIZ NATAL
Abraços, do
Santos Oliveira
Tite > Setembro de 1965 > Santos Oliveira
5. Comentário de CV:
Não pudemos deixar de publicar esta troca de comentários, cuja origem foi uma singela, mas sentida homenagem de um homem que não tem pejo em se assinar como Soldado Carvalho para se identificar. Trata-se de alguém que como tantos outros ex-combatentes, não tiveram outra alternativa que não a diáspora, para levarem uma vida mais confortável materialmente. Pelo modo como se dirige ao nosso camarada Santos Oliveira, denota uma sinceridade e uma humildade dignas de nota. Humildade no sentido de não ter vergonha de se expôr, e enobrecer alguém que ainda hoje é uma referência para ele.
Caro Santos Oliveira, aceita a minha inveja por não ter ninguém a quem tenha deixado a minha marca, naquele ambiente tensão, medos, incertezas, onde o espírito de camaradagem e solidariedade eram tão importantes, especialmente para quem, tendo uma patente inferior, era digno de respeito, como ser humano que era. Temos a certeza que honraste a farda e as divisas que trazias nos ombros.
Subscrevo a tua afirmação. Nenhum Louvor ou Condecoração vale tanto como este elogio vindo da Bélgica, de alguém que passados tantos anos, ficou contente por saber de ti.
Ao Soldado Carvalho, nosso velho camarada de armas, votos de muita saúde e uma boa vida na Bélgica. Que o afastamento da Pátria lhe tenha sido favorável, já que ela o não soube compensar.
____________
Notas de CV:
Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66
(*) Vd. poste de 30 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3544: O segredo de... (2): Santos Oliveira: Encontros imediatos de III grau com o IN
Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3525: Blogoterapia (72): Gabriel, Cruz de Guerra na Guiné, coveiro na freguesia...(V. Briote)
Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)
Duas das ilustrações de Ofélia Marques que enriquecem o livro de Fernanda de Castro (1900-1994), Mariazinha em África (Lisboa: Ed. Empresa Literária Fulminense, 1925).
Imagens: © Beja Santos / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados
Fernanda de Castro e a Guiné
por Beja Santos
Leopoldo Amado, nosso confrade, chamou a atenção num importante ensaio intitulado “A literatura Colonial Guineense” (Revista ICALP, vol. 20 e 21, Julho - Outubro de 1990) (*) para o legado de Fernanda de Castro na literatura colonial que se afirmou na primeira metade do séc. XX.
Em 1870, a presença portuguesa na Guiné aparecia moralizada pela sentença arbitral do Presidente Ulisses Grant, considerando-se a data como marco histórico para a autonomização da Guiné face a Cabo Verde. Iniciava-se um período de relativa prosperidade, com a intensificação de trocas comerciais, Bolama enche-se de uma classe administrativa e comerciantes, os negociantes estrangeiros cirandam entre Bissau e Bolama, entre Bolama e Buba, entre Bissau e Cacheu. Aparecem publicações, uma pequena elite manifesta-se como gente “civilizada face” aos “indígenas”.
É dentro deste processo de colonização, aculturação e pacificação que desponta a literatura local. Leopoldo Amado destaca o papel de Fernanda de Castro que viveu na sua juventude em Bolama e que escreveu um best seller que encantou várias gerações: “Mariazinha em África” que surgiu em 1925, a que se seguiram outras obras que tem a Guiné como palco: “O Veneno do Sol” (1928), “Aventuras de Mariazinha em África” (1929); “Exílio” (1952) e “África Raiz” (1966) (**).
Fernanda de Castro é a mulher de António Ferro [1895-1956], é uma escritora modernista, terá tido uma infância feliz na Guiné, todos estes livros acabam por ser memórias e confidências desse tempo. Leopoldo Amado destaca Fernanda de Castro nas sucessivas edições de “Mariazinha em África” foi adoçando a visão colonialista do negro, aliviando cargas de preconceitos, se bem que mantendo o entusiasmo dos seus relatos que seguramente apaixonaram leitores de várias idades sobre um exótico praticamente desconhecido ou ignorado.
“Mariazinha em África” é apresentado como um romance infantil. Estou a seguir uma edição da Ática, 1959, com ilustrações belíssimas de uma grande artista do modernismo, Ofélia Marques, uma ilustradora que se impôs no panorama nacional ao lado do seu marido, Bernardo Marques [1898-1962], este dotado de um risco de grande talento, um visionário do desenho, um mestre de aguarela.
Mariazinha, a mãe e o irmão mais novo vão se encontrar com o pai, capitão do porto de Bolama, é uma fascinante viagem de barco, passaram ao largo da Madeira, avistaram as Canárias, Mariazinha viu os peixes voadores, estiveram em São Vicente e partiram para Bissau e daqui para Bolama. É uma criança que se fascina com aquele admirável mundo novo, onde há tubarões, crocodilos, quando Mariazinha chega a Bolama tem à sua espera um lindo quarto pintado de azul, uma cama de metal amarelo, uma secretária com um tinteiro, livros de aventuras, um dicionário Larousse ilustrado.
O pai apresenta os criados que falam numa língua incompreensível, uma algaraviada: Lanhano é o criado de mesa, tem uma risca muito bem feita na carapinha, Adolfo que não percebe nada e que diz sempre si, sinhô, o jardineiro Undôko que tem uma dentuça feroz mas que não é capaz de fazer mal a uma mosca, há o príncipe Mamadi que veio aprender português lá em casa e entreter o Afonso e por último o cozinheiro Vicente que ás vezes faz belos petiscos.
A Guiné de Fernanda de Castro é um pouco à imagem das ilustrações de Ofélia Marques: é um mundo tirado da Europa, onde os indígenas estão abertos, regra geral, a aceitar uma civilização superior. Há florestas, passeios de canoa, festas de bajudas, Mariazinha conhece Ana Maria a filha do governador, falam de jagudis, experimentam o tornado, assistem a uma caçada no Oio, saciam a fome e a cede com cocos, vêm gazelas, ouvem falar de onças.
A vida das meninas é apresentada através de descobertas muito curiosas: a criação de um autêntico jardim zoológico, a chegada de um navio que exige a preparação rápida de uma refeição, é sempre a cultura ocidental – europeia a sobrepor-se à África inculta. Viajam até Buba, levam um gramofone que é oferecido ao príncipe Mamadi. Mariazinha pergunta e os outros respondem: fala-se dos Bijagós, há um pretendente que quer casar com Mariazinha, o pretinho Mamadi adoece cheio de febres, chegou a hora de regressar a Portugal, o pai adquiriu uma bela colecção de armas mandingas, o Vicente vai também, no cais todos os negros se despedem cheios de tristeza dos brancos que vão regressar a Portugal. Percebe-se o fascínio por esta trama, Mariazinha transmite a todos e a tudo uma alegria sincera, deslumbra-se com o exótico, transmite essa África exótica ao leitor, assim se veicula a mensagem colonizadora.
Quero só lembrar a todos que as obras completas de Fernanda de Castro foram editadas pelo Círculo de Leitores, em 2007. Quem quer conhecer os seus romances guineenses tem esta oportunidade.
A seguir a Fernanda de Castro veio o caso mais sério da literatura colonial guineense, Fausto Duarte, um mestiço que introduziu a temática da aculturação numa época em que a Guiné conhecia mudanças com o consulado de Sarmento Rodrigues que trouxe consigo Avelino Teixeira da Mota que irá ter um papel cultural incontornável.
A obra-prima de Fausto Duarte é “Auá”, um romance de 1934 que merece ser relembrado. Iremos aqui falar de “Auá”, é o grande romance guineense da guerra colonial (***).
___________
Notas de L.G.:
(*) Disponível em formato pdf, 18 pp., no sítio do Instituto Camões:
Amado, L. - A Literatura Colonial Guineense. Revista ICALP [Instituto de Cultura e Língua Portuguesa], 20-21 (Julho-Outubro de 1990): 160-178.
(**) Vd. poste de 7 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro
(**) Recensão bibliográfica, por Beja Santos, a inserir brevemente no nosso blogue.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
Guiné 63/74 - P3564: História de Vida (19): Meninos Soldados (Juvenal Amado)
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (1), Ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74, com data de 30 de Novembro de 2008, com um texto destinado à série História de Vida (2).
Mais um retrato dos tempos da guerra colonial, quando a ditadura mais se fazia sentir.
Assunto: Meninos Soldados
Caro Carlos
Depois da troca de correspondência havida entre nós dois e posteriormente com o Luis e conhecimento do Virgínio Briote sobre a anterior estória, cheguei à conclusão que relatar um pouco do que foram as lutas passadas dos senhores Loureiros, merecia uma segunda oportunidade.
Se entenderes que há interesse na estória, agradeço que me digas pois eu tenho alguma documentação eleitoral daquele tempo que poderá ser adicionada à estória.
O titulo é recuperado de um escrito do Torcato Mendonça, nome que é mencionado no decorrer da estória.
Um abraço
Juvenal Amado
Juvenal Afonso no dia de embarque para a Guiné, 18 de Dezembro de 1972
Juvenal com o amigo de Alcobaça, António, da Companhia de Transportes.
Aljustrel, Juvenal, Confraria e o periquito Lourenço, no Restaurante da Morte Lenta
2. MENINOS SOLDADOS
(Em memória dos senhores Loureiros, combatentes pela paz e liberdade)
O bairro Hipólito, em Alcobaça, serve de alojamento na sua grande maioria, a operários da Crisal e Raúl da Bernarda.
Tinha talvez uns 10 anos, morava mais os meus pais e irmãos provisoriamente na casa da minha tia, após termos ficado sem sitio para vivermos, por motivos que não interessam agora.
Filho de operário vidreiro, aí comecei a moldar o meu sentimento político.
Uma madrugada ouvi bater as portas de carro, mesmo debaixo da janela do quarto, onde dormia mais o meu irmão.
Em 1960 os carros eram raros e, que eu me lembre, no bairro não havia nenhum.
As visitas não eram para nós, mas sim para a casa ao lado.
Ouvi vozes graves, alguma turbulência, o choro de uma mulher, palavras nervosamente balbuciadas, várias pessoas entram no carro e este parte.
No dia a seguir apercebo-me, entre as meias palavras da minha tia e da minha mãe, que o senhor Loureiro tinha sido preso. Deixava a esposa e filhos num total desespero.
O senhor Loureiro era operário vidreiro na Crisal.
Era por demais reconhecido por toda a gente, que os vidreiros eram firmes opositores ao regime de Salazar. A Pide prendeu muitos militantes anti-salazaristas nessa altura e o senhor Loureiro foi um deles.
A partir daí passei a viver com o terror, de que viessem buscar o meu pai também, não que percebesse o porquê, mas na minha ingenuidade, pensei que prendessem todos os que fossem vidreiros.
Mais tarde também eu fui vidreiro e rapidamente fui apanhado pela contestação que grassava no nosso ambiente de trabalho.
Em 1969 fui aos primeiros comícios, onde os candidatos da oposição (*) discursavam, num ambiente carregado de ameaças por parte da polícia politica. Quando saíamos das sessões, trazíamos panfletos, que distribuíamos pelas povoações por onde passávamos.
Assim cheguei à idade do serviço militar e ai, sabendo o que devia fazer, faltou-me a coragem. Faltou-me a coragem para fugir, não ver mais os meus pais, irmãos, amigos e os locais nos quais eu tinha crescido. O medo do desconhecido e clandestino toldou-me os pensamentos.
Embora consciente da injustiça da guerra, fui mais um para engrossar a enorme legião de jovens, atirados para a mesma.
Fomos porventura os melhores soldados do Mundo, atendendo às condições em que éramos mal treinados, armados e enviados durante dois anos para combater soldados, que não cumpriam comissões de serviço, mas sim lutavam na sua terra e só acabavam o serviço militar quando morriam, ficavam feridos, ou no caso de vitória dos seus ideais.
Nós pelo o contrário sem razão e sem ideais, éramos carne para canhão. Na esmagadora maioria éramos milicianos.
Nós. os soldados, éramos em grande parte quase analfabetos, oriundos de zonas do nosso pais que competiam em atraso com as próprias colónias. Não tínhamos qualquer noção do nosso isolamento como País no crédito das Nações.
A Guiné foi em tempos apelidada pelos Ingleses, que estiveram na região de Bolama, (**) como cemitério de brancos. Devido ao seu clima foram-se embora. Só nós oriundos de um país atrasado aguentámos.
A chegada à Guiné
MENINOS SOLDADOS, retrato superiormente traçado pelo Torcato Mendonça, fomos recebidos ao largo de Bissau para nosso espanto e desconfiança pelos pilotos da barra porque eram negros.
Olhando para as águas barrentas pensava, que nada era como havía imaginado antes. O calor era insuportável às 11 horas da noite, quando amanhecesse não sei como seria.
Sufocava dentro do camuflado, novo em folha e por isso mesmo mais desconfortável. A sede que sentíamos, seria nossa companheira durante os 27 meses de comissão.
As horas foram passando até que amanhece, as Companhias desembarcam. Os pius pius e os periquito salta, salta, são as minhas memórias daqueles primeiros momentos. Os garotos faziam o gesto de quem nos degolava. Naquela atmosfera de festa para eles, era visível a nossa atrapalhação e receio, face ao nosso destino.
Eram camionetas civis, subimos para elas com as nossa malas e sacos. Chegamos ao Cumeré já noite, véspera de Natal.
As antiaéreas fizeram fogo de batimento de zona seriam talvez 22 horas pois o IN tinha atacado alguns destacamentos próximos.
Como não sabíamos para que lado estávamos virados, pensámos que estávamos a ser atacados. Foi o nosso primeiro cagaço se assim poderei chamar-lhe.
Conclusão
Também fizeram a guerra milhares de jovens que já naquele tempo estavam conscientemente contra o regime. Não deixaram de cumprir a sua obrigação de defender-se a si e aos seus camaradas. Nesses também houve coragem, abnegação, sofrimento suor e lágrimas. Choraram os nossos mortos e maldisseram o inimigo, mas não festejaram os seus mortos. Envelhecemos rapidamente.
Hoje estou divido entre a enorme honra de me encontrar no seio dos ex-combatentes, (consciente que não passei por metade do que muitos passaram), é muito o prazer que me trazem a maioria das recordações, mas também a certeza que combati numa guerra que nunca devia ter acontecido.
O senhor Loureiro passou pelas mais diversas torturas às mãos da Pide e esteve preso muito tempo. Quando foi solto vinha doente, desnutrido e pálido. Quando recuperou, retomou o seu lugar no seu local de trabalho. Reformou-se já depois do 25 de Abril de 1974, tinha começado a trabalhar com 5 anos no vidro, numa fábrica da Marinha Grande.
Vendia ainda há pouco tempo, junto ao Mosteiro de Alcobaça, miniaturas de vidro soprado para aumentar a pouca reforma. Não ganhou nada para ele e foi a pensar em nós todos que foi preso. Num combate desigual pela liberdade e igualdade, lutou com as únicas armas que tinha, a sua razão.
Não teve direito a medalhas, mas foi sempre com orgulho e humildade que ostentou a valentia dos que souberam dizer não.
Juvenal Amado
(*) Eram candidatos das forças Democráticas entre outros, os Drs. Vasco da Gama Fernandes e José Henriques Vareda. Também se candidatava pela primeira vez o jovem estudante Alberto Bernardes Costa, hoje Ministro da Justiça.
No comício o Dr. Vareda, a certa altura do seu discurso, apontou para as filas da frente e chamou assassinos aos esbirros que aí estavam. O Teatro José Lúcio da Silva, penso que já se chamava assim, quase vinha abaixo com a enorme ovação da sala, cheia até à porta.
(**) Bolama era o sítio para onde iam os nossos camaradas descansar nas férias. Eu nunca lá estive, mas diziam que era bom. Para os Ingleses não se lá aguentarem, como se aguentariam nas outras zonas?
Periquito vai no mato, olé lé lé lé
Que a velhice vai no Bissau, olari lo lé.
Juvenal Amado
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Notas de CV:
(1) Vd. último poste da série Estórias de Juvenal Amado de 2 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3162: Estórias do Juvenal Amado (15): Adeus, até ao meu regresso
(2) Vd. último poste da série de 25 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (19): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra)
Guiné 63/74 - P3563: Bibliografia de uma guerra (40): Venturas e Aventuras em África, de Cristina Malhão-Pereira (Beja Santos)
As Mulheres na Guerra
Um olhar feminino sobre a cratera do vulcão
por Beja Santos
A literatura sobre a guerra de África é predominantemente masculina, invoca-se a experiência, dela se desfia a memória, as mulheres eram pára-quedistas, estavam excepcionalmente nos hospitais. No entanto, ficaram-nos alguns relatos de mulheres que acompanharam os seus maridos nas comissões. Duas escritoras, Lídia Jorge (“A costa dos murmúrios”) e Wanda Ramos (“Percursos”) deixaram-nos relatos de grande densidade sobre o que viveram em Moçambique e Angola, respectivamente.
A LDG Alfange no Cumbijã. Foto de que não recordo o Autor, a quem peço desculpas. Com a devida vénia.
Mas na Guiné esteve a mulher de um oficial da Armada (Comandante José Manuel Malhão-Pereira), ao serviço da LDG Alfange, que nos deixou impressões pessoais da sua vida em 1969 e 1970 ("Venturas e Aventuras em África, Bissau, Guiné 1969 – 1970", por Cristina Malhão-Pereira, Civilização Editora, 2007).
Cristina é uma jovem esposa e mãe, tem 23 anos, fala de todas a dificuldades que viveu com muita simpatia, considera que a sua geração estava inicialmente muito mobilizada para a defesa do Ultramar, todas as classes participavam sem um queixume. Chega a Bissau, a grande preocupação era arranjar uma casa, lá se conseguiu, bem como dois jovens ajudantes africanos, isto enquanto o marido se ausentava frequentemente para missões de combate.
A casa alugada estava um nojo, com a ajuda da tropa tudo se arranjou, improvisaram-se móveis, levava-se uma vida pacata, quando havia possibilidade a Cristina acompanhava o marido nas caçadas nos arredores de Bissau. Superaram os problemas de saúde, deram umas escapadelas até aos Bijagós e mais tarde a Teixeira Pinto e a Cacine.
É um relato significativo para descrever Bissau e o estado de espírito da população branca e autóctone: os medos, os tiroteios perto e ao longe, a pancadaria entre soldados, a atmosfera das lojas, os encontros sociais, as longas incertezas e esperas quando a Alfange andava nos rios.
É um relato ligeiro, nostálgico, onde há memórias divertidas e tormentosas. Depois, o casal seguiu para Moçambique, onde permaneceu de 1971 a 1975.
__________
Notas de vb:
1. O Mário Beja Santos continua a "juntar todas as peças, todos os testemunhos. (...) agora ando a escrever as memórias de uma mulher fascinante, estou a sair do Gabu, em 1958, já houve as eleições do Delgado e do Tomás, em 1961 vai haver tiroteio em São Domingos. Tenho ainda trabalho para largos meses. Mas estarei sempre convosco. Do Mário Beja Santos".
2. Vd. último poste da série Bibliografia de uma Guerra
28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3536: Bibliografia de uma guerra (39): Nó Cego, de C. Vale Ferraz. (Cor Matos Gomes)
Um olhar feminino sobre a cratera do vulcão
por Beja Santos
A literatura sobre a guerra de África é predominantemente masculina, invoca-se a experiência, dela se desfia a memória, as mulheres eram pára-quedistas, estavam excepcionalmente nos hospitais. No entanto, ficaram-nos alguns relatos de mulheres que acompanharam os seus maridos nas comissões. Duas escritoras, Lídia Jorge (“A costa dos murmúrios”) e Wanda Ramos (“Percursos”) deixaram-nos relatos de grande densidade sobre o que viveram em Moçambique e Angola, respectivamente.
A LDG Alfange no Cumbijã. Foto de que não recordo o Autor, a quem peço desculpas. Com a devida vénia.
Mas na Guiné esteve a mulher de um oficial da Armada (Comandante José Manuel Malhão-Pereira), ao serviço da LDG Alfange, que nos deixou impressões pessoais da sua vida em 1969 e 1970 ("Venturas e Aventuras em África, Bissau, Guiné 1969 – 1970", por Cristina Malhão-Pereira, Civilização Editora, 2007).
Cristina é uma jovem esposa e mãe, tem 23 anos, fala de todas a dificuldades que viveu com muita simpatia, considera que a sua geração estava inicialmente muito mobilizada para a defesa do Ultramar, todas as classes participavam sem um queixume. Chega a Bissau, a grande preocupação era arranjar uma casa, lá se conseguiu, bem como dois jovens ajudantes africanos, isto enquanto o marido se ausentava frequentemente para missões de combate.
A casa alugada estava um nojo, com a ajuda da tropa tudo se arranjou, improvisaram-se móveis, levava-se uma vida pacata, quando havia possibilidade a Cristina acompanhava o marido nas caçadas nos arredores de Bissau. Superaram os problemas de saúde, deram umas escapadelas até aos Bijagós e mais tarde a Teixeira Pinto e a Cacine.
É um relato significativo para descrever Bissau e o estado de espírito da população branca e autóctone: os medos, os tiroteios perto e ao longe, a pancadaria entre soldados, a atmosfera das lojas, os encontros sociais, as longas incertezas e esperas quando a Alfange andava nos rios.
É um relato ligeiro, nostálgico, onde há memórias divertidas e tormentosas. Depois, o casal seguiu para Moçambique, onde permaneceu de 1971 a 1975.
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Notas de vb:
1. O Mário Beja Santos continua a "juntar todas as peças, todos os testemunhos. (...) agora ando a escrever as memórias de uma mulher fascinante, estou a sair do Gabu, em 1958, já houve as eleições do Delgado e do Tomás, em 1961 vai haver tiroteio em São Domingos. Tenho ainda trabalho para largos meses. Mas estarei sempre convosco. Do Mário Beja Santos".
2. Vd. último poste da série Bibliografia de uma Guerra
28 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3536: Bibliografia de uma guerra (39): Nó Cego, de C. Vale Ferraz. (Cor Matos Gomes)
Guiné 63/74 - P3562: Banco do Afecto contra a Solidão (1): A última comissão do Coronel (Jorge Cabral)
1. Mensagem do Jorge Cabral:
Hoje mando uma estória diferente.Nem triste nem alegre. Real sim.
Convém lembrar que nem só do pão vive o Homem. Apetece-me fundar o Banco do Afecto contra a Solidão.
Jorge Cabral
2. Um Abraço para o Coronel na sua última Comissão
por Jorge Cabral
O Coronel já passou os oitenta. Tremem-lhe muito as mãos e às vezes parece ausente. Visito-o, mas confunde-me. Refere Nampula e a mulher do Capitão... Que mulher! Nunca fui a Nampula... mas concordo.
Aqui no Lar é bem tratado. Médico, enfermeira, dietista, hidromassagem, animação, cinema... Tem tudo, quase tudo...
Pelo Natal, recebe muitas prendas, roupões, pijamas, pantufas, luvas... deixam na portaria ou mandam pelo correio.
Os filhos, os netos, os amigos, não o visitam. E convidá-lo nem pensar... Baba-se, entorna a sopa, não diz coisa com coisa...
Fala-me de África e das suas quatro Comissões. À despedida, troca-me o nome.
Desejo-lhe Felicidades. E sei, estou certo, que entendeu, o Grande Abraço que lhe dei.
Jorge Cabral
__________
Notas de vb:
1. Este belo texto do Jorge, na sua singeleza, fez-me recordar a visita que fiz este ano ao outrora famoso atleta olímpico, Cor Cavaleiro. Um homem grande, robusto, que, em 1965, em Farim, quase nos 50, fazia o pino na piscina antes de se mandar para a água e, que no intervalo das marchas que forçava para Canjambari, marchava para Bissau, para a Associação Comercial esfolar uns patos ao bridge.
Ele, que era um Mestre, repousa agora, num Lar em Oeiras... Na altura em que o visitei escrevi para mim:
Num dia de Março de 2008 localizei-o num lar das Forças Armadas, em Oeiras. Vivo, o Coronel Cavaleiro? Ó meu amigo, o Senhor Coronel está aqui para as curvas, respondeu-lhe do outro lado do fio, o bem disposto telefonista. Quer falar com ele? Aguente aí um pouco. Sou um ex-alferes do BCav 490, estive em Cuntima. Uma voz de senhora do outro lado, o meu marido deve estar no 1º piso, sentado a ler um livro numa mesa com as cartas, à espera que apareçam parceiros para o bridge. É sempre assim, no fim do almoço.
E no dia seguinte em Oeiras, no IASFA (Instituto Acção Social das Forças Armadas), ainda não eram 14 horas, lá estávamos nós, o Miranda e o Raimundo do Como (os dois da Op Tridente) e eu às voltas, a subirmos e descermos escadas, o senhor Coronel esteve agora aqui, procurem-no no 1º piso.
Uma sala, numa mesa ao fundo, de costas para a janela (talvez para melhor ver as cartas e as caras dos parceiros), um senhor baixo, aspecto franzino, é ele. Nada que se parecesse com o Ten Coronel que eu conhecera em 1965. Mas era mesmo ele, o Coronel F. Cavaleiro, mais baixo uns bons centímetros e mais leve do que naqueles tempos. Sorriso gentil nuns olhos marcados de manchas, ar débil, o Coronel de pé à frente de jovens de 60 e poucos.
Sou o Miranda, meu Coronel, o Como, Farim, Comandos. Eu sou o Raimundo, o tipo do foto-cine do Como, as imagens que o Joaquim Furtado passou na Televisão fui eu que as fiz. Briote, meu Coronel, trabalhei poucos meses consigo, estive em Cuntima, na CCav 489 do Cap Pato Anselmo.
Pois, vocês têm que falar mais alto, o dedo apontado para o ouvido direito. A Guiné, bom, a Guiné foi uma doença que se entranhou em nós, Cor Cavaleiro.
Quarenta e tal anos depois voltámo-nos a descobrir uns aos outros, almoçamos uma vez por mês, falamos da vida que levámos naquelas terras.
O Coronel, que naqueles anos media para aí um metro e oitenta e pesava seguramente mais de oitenta quilos, à frente de nós era o mais pequeno e mais magro. Estou com 60 e poucos quilos, eu que pesava 80 e tal, também estou com 91 anos, é altura de ter um pouco de cuidado. Leio, jogo bridge, ando um pouco a pé, olhem, ando aqui a ver os dias escorrer. Netos? Oito filhos, netos, bisnetos, não me perguntem quantos. Sim, vi na TV a Guerra do Furtado, só não entendi porque é que não transcreveu integralmente a carta, aliás muito pequena, que nós apanhámos a um mensageiro, aquela em que o Nino dizia que já não tinha nem gente nem população para aguentar a guerra no Como...
2. Vd. último poste do Jorge Cabral em:
26 de Novembro de 2008 >Guiné 63/74 - P3519: Estórias cabralianas (42): As noites do Alfero em Missirá e uma estranhíssima ementa (Jorge Cabral)
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