No passado sábado, dia 8 de Agosto, a Freguesia de Lavra, do Concelho de Matosinhos, prestou homenagem aos mortos em campanha na Guerra Colonial que estão sepultados no cemitério local, e ao descerramento de um memorial no jardim em frente ao edifício da Junta de Freguesia, lembrando todos os Lavrenses que participaram naquela guerra.
Presidiram a estes actos, o Presidente da Junta de Freguesia de Lavra, senhor Rodolfo Maia Mesquita; Presidente da APVG (Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra), Prof. Doutor Augusto Jesus Oliveira Lopes Freitas e em representação do Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, o Dr. António Fernando Correia Pinto.
No cemitério local, no Panteão ali existente, foi descerrada um lápide com os nomes dos militares ali sepultados e depositada uma coroa de flores.
Nomes inscritos na lápide:
Fernando de Jesus Nogueira
José Gonçalves dos Santos
Albino Dias de Sousa
Manuel Azevedo Carvalho
Januário Joaquim Silva Santos
Sebastião Gomes de Matos
O sacerdote que se ocupou da parte religiosa da cerimónia, terminou com uma alocução onde salientou os malefícios da guerra, lembrando que acabada esta, os políticos bebem champanhe, enquanto os ex-combatentes são relegados ao esquecimento.
Viveram-se momentos tocantes quando se procedeu à chamada dos camaradas falecidos, ali evocados, com a assistência a responder PRESENTE. Um Bombeiro Voluntário, ali presente, interpretou o Toque de Silêncio, seguido do momento de recolhimento que a ocasião impunha.
Falaram seguidamente o Presidente da Junta de Freguesia e o Presidente da APVG, lembrando ambos o esforço que a guerra exigiu a uma geração, quase em fim de vida, a quem nunca foi feita justiça.
No jardim frontal ao edifício da Junta de Freguesia, foi descerrado e benzido um Memorial lembrando o esforço de todos os Lavrenses que participaram na Guerra Colonial. Como Memorial, convenhamos que é muito discreto, mas fica registada a iniciativa.
Seguiu-se uma cerimónia mais formal no Salão Nobre da Junta de Freguesia, sendo a Mesa da Presidência ocupada pelas mesmas entidades.
Começou por falar o Presidente da APVG que numa longa intervenção fez um historial da acção dos militares desde o princípio da guerra colonial até ao 25 de Abril, terminando, batendo na mesma tecla do esquecimento a que os ex-combatentes foram votados.
Falou das iniciativas da APVG em prol dos ex-combatentes que atravessam momentos menos bons da vida, e que são muitos. Atacados pela doença, alcoolismo, stress pós-traumático, abandono por parte da família e consequente vivência na rua, há imensos ex-combatentes muito carenciados. Tudo se faz para colmatar estas necessidades a alguém que já não sabe o rumo, nem consegue viver com normalidade.
Seguiu-se a intervenção do senhor Presidente da Junta de Lavra, que também na qualidade de ex-combatente em Angola, falou das cerimónias realizadas naquele dia e dos combatentes em geral. Retive uma frase relacionada com o esquecimento a que nos remeteram - "Se o povo anda distraído, os combatentes não". Atrevo-me a perguntar se o nosso camarada, permita-se-me este tratamento, se se referia ao Povo propriamente dito ou aos seus legítimos representantes.
Lembrou Rodolfo Mesquita os nossos camaradas sepultados por tudo quanto foi teatro de operações, em cemitérios abandonados, e cujo regresso ao chão pátrio é da mais elementar justiça.
Propôs que o dia 8 de Agosto, em Lavra, fosse doravante dedicado aos ex-combatentes Lavrenses.
Por último, o Dr. António Fernando Correia Pinto, em representação do Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, tomou a palavra, começando por dizer que não sendo ex-combatente, sentiu de perto, tragicamente, os efeitos da guerra colonial, na pessoa de um familiar muito chegado, que veio a falecer em resultado de sequelas contraídas como militar.
Mantendo a tónica dos oradores anteriores, salientou o esquecimento e o abandono a que os ex-combatentes foram sujeitos pela sociedade.
Seguir-se-ia uma palestra versando o tema stress pós-traumático a que já não assisti pelo aproximar da hora de almoço.
O Panteão. Do lado esquerdo, a placa com os nomes dos militares mortos em campanha e a coroa de flores depositada momentos antes.
O Presidente da APVG no uso da palavra após o descerramento do pequeno Memorial a todos os Lavrenses ex-combatentes da Guerra Colonial
Fotos: © Ribeiro Agostinho e Carlos Vinhal (2009). Direitos reservados.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 13 de agosto de 2009
Guiné 63/74 - P4817: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (10): Operação "Diamante Azul"
1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá", Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71, tem um blogue com estórias e missões da sua companhia, do qual nos cedeu, pronta e incondicionalmente, a extracção de algumas das mais importantes e significativas passagens, para publicarmos neste nosso blogue, no seguimento da sua série: Estórias do Mário Pinto. O endereço do blogue é: http://www.cart2519osmorcegosdemampata.blogspot.com/
2. Neste poste publicamos as ocorrências da operação “Diamante Azul”, que se realizou entre os dias 13 e 16 de Outubro de 1970, com a colaboração operacional de 2 Grupos de Combate da sua CART 2519:
Operação "DIAMANTE AZUL"
Dois grupos de combate da Cart. 2519 participaram na operação "Diamante Azul", integrando uma Companhia de Intervenção que, por sua vez, ia colaborar com uma Comp.ª de Pára-quedistas na Zona de UNAL, a Sul da Província.
A Companhia de Intervenção, foi então constituída por dois grupos de combate da Cart. 2519 de MAMPATÁ, um grupo de combate da Cart. 2521 estacionada em ALDEIA FORMOSA e um grupo de combate da C.Caç. 2615 do B.Caç. 2892. Tinha como Comandante de Companhia, o Cap. Marques da Cart. 2873 aquartelada em EMPADA.
OBJECTIVO PRINCIPAL - Tentar impedir a fuga do IN enquanto em SAMBASÓ a Comp.ª de Pára-quedistas, fazia uma batida no intuito de capturar elementos IN e o respectivo material que, segundo notícia, tentava passar para o QUIMARA.
Dia 13 - Cerca das 12h00 foi formada a companhia em ALDEIA FORMOSA, ficando à ordem do Batalhão, a fim de, em qualquer momento, ser helitransportada para o local da operação.
Dia 14 - Cerca das 07h00 foi transmitida pelo Comandante da Comp.ª aos Comandantes dos Grupos de Combate, a missão a cumprir.
Cerca das 08h00, do Aeródromo de ALDEIA FORMOSA, foram helitransportados para a região de SAMBASÓ onde, até cerca das 15h00 estiveram emboscados, enquanto a Comp.ª de Pára-quedistas procedia à batida. Após ter sido feita a batida, a Comp.ª de Intervenção deslocou-se para SAMBASÓ a fim de ser evacuada.
Em SAMBASÓ as tropas Pára-quedistas durante a batida, verificaram que o IN deixara vestígios de presença e passagem no local, dois dias antes.Em SAMBASÓ, as forças da Comp.ª de Intervenção capturaram um elemento IN armado com espingarda "SIMONOV", que confirmou ter passado ali dois dias antes em direcção a BUBA, sempre a corta-mato, numa coluna de cerca de 40 elementos.
Não devia tratar-se de coluna de reabastecimento mas sim de um grupo armado.
Em SAMBASÓ as nossas forças capturaram ao IN, 4 granadas de Morteiro 82, 10 granadas de Canhão s/recuo, 1 mina A/C (Anti-Carro), outro material diverso e documentos.
Cerca das 17h00 o Comandante da Comp.ª recebeu nova missão.
Visitar, no dia seguinte, as povoações controladas pelo IN de LENGUEL e NHACOBÁ.
Pelas 18h00, as NT foram helitransportadas para perto de LENGUEL onde pernoitaram.
Dia 15 - As NT, em progressão pela mata no Sul da Província, entraram nas povoações de LENGUEL e NHACOBÁ.
A população ao pressentir as NT pôs-se em fuga. Entretanto em NHACOBÁ as NT capturaram 7 elementos do IN.
Recebeu, também, a visita do General ANTÓNIO SPÍNOLA que na qualidade de COM-CHEFE das FORÇAS ARMADAS da GUINÉ ali se deslocou helitransportado, para pessoalmente se inteirar da operação.
O Comandante da Comp.ª recebeu então nova missão.
Emboscar num trilho IN na Zona de SALANQUEL, para onde foi helitransportada a Comp.ª cerca das 17h00. Nesta Zona se pernoitou e no dia seguinte emboscou-se sobre o trilho, enquanto as tropas Pára-quedistas procediam a uma batida. Não se registou aqui qualquer contacto com o IN, tendo cessado a operação no dia 16 pelas 17hoo, hora que as NT foram evacuadas para BUBA.
É de realçar o entusiasmo e boa vontade com que todos os elementos das NT se empenharam nesta operação, em que a falta de água obrigou as NT a um sofrimento quase insuportável.
Nota: Este resumo biográfico foi retirado da nossa História da Unidade.
Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
Mário Pinto
Fur Mil At Art
Fotos: © Mário Pinto (2009). Direitos reservados.
_____________
Notas de M.R.:
Vd. último poste da série em:
10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4807: Estórias do Mário Pinto (9): O stress pós-traumático de guerra nos ex-combatentes, sem-abrigo, da zona de Lisboa
Notas de M.R.:
Vd. último poste da série em:
10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4807: Estórias do Mário Pinto (9): O stress pós-traumático de guerra nos ex-combatentes, sem-abrigo, da zona de Lisboa
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?
1. Continuação da publicação das memórias do Cherno Baldé, menino e moço em Fajonquito (1970/75), hoje quadro superior da administração pública da República da Guiné-Bissau (*):
Ambientes e ambiguidades > Algássimo, o visionário
Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando.
O Algássimo queria viver como uma criança normal da sua idade mas vivia quase numa clausura. Nao podia frequentar nem a escola, nem o quartel, nem os locais de festa, de baile, de futebol, nada, nada. Ele podia, sim, procurar lenha seca nos arredores da aldeia para a fogueira da noite onde passavam, ele e mais outros rapazes da mesma comunidade, horas a fio, a repetir alguns sons escritos em árabe arcaico numa tábua de madeira cujos significados nem o próprio mestre sabia. Era esta a faceta da religião que alguns religiosos, sobretudo Futa-fulas, nos queriam ensinar. Tempo perdido (**).
Mais tarde o Algássimo, por iniciativa própria, acabaria por entrar no quartel e também frequentar a escola mas com meios próprios pois o pai, na impossibilidade de o impedir, tinha sido peromptório:
- Queres ir para a escola dos brancos, então, vai!..Mas nãoe peças nada e nãso me contes nada porque não te dou nada e não quero saber de nada pois o seitan será o teu companheiro no inferno.
O Algássimo foi e ficou, do satanás não viu nem os rastos. O pai, este, acabaria mais tarde, por falecer, doidinho da Silva.
Pela idade, experiência e ansiedade que ele tinha acumulado, rapidamente galgou os escalões do ensino e por pouco não me ultrapassava de classe. Foi nessa altura que, também eu, animal livre, resolvi encarar com alguma seriedade a escola, e consegui, finalmente, aguentar-me na sala, sentado, aquelas duas horas que me pareciam uma eternidade.
Mais tarde ele tirava conclusões interessantes das suas observações sobre aquela época, em Fajonquito, a sua entrada no quartel, os soldados portugueses, o ambiente do refeitório geral e a escola onde curiosamente o professor era um Sanhá que queria dizer mandinga ou um beafada islamizado. Disse-me uma vez:
- O melhor e o pior que aprendi com estes brancos, durante a minha permanência entre eles, e que depois continuou em diferentes lugares e circunstâncias, foi o espírito sempre presente da irreverência e da insubmissão, o sentido da busca, da insatisfação permanente, do questionamento sobre o que parece evidente, da insaciável curiosidade e coragem de ultrapassar limites, da revolta, da reviravolta... Com eles nenhuma situação é imutável e a mudança é uma constante. Enquanto continuarem a liderar, o mundo nao terá sossego.
Este espírito irreverente e mutante, este paradigma filosófico de mudança em permanência, se quiserem, é, na opinião do Algássimo, "a maior força e quiçá, também, a maior fraqueza do Homem branco, europeu, que está constantemente a pôr em questão as suas próprias verdades ainda agora conquistadas e reconhecidas mas insuficientemente amadurecidas".
Continuando ainda sobre o mesmo assunto, dizia que, na sua opinião, "o tumulto materialista e a incongruência lógica do mundo em que vivemos hoje nasceram desse posicionamento ambíguo do homem europeu que prolonga a vida mas também a sua agonia nas incertezas que engendra sobre o amanhã que está por vir mas cujo porvir já está hipotecado nas bolsas de valor de Londres e Nova Iorque".
O meu amigo Algássimo, temeroso ou grande visiánario, não conseguiu aguentar o período após independência, nãoo, ainda aguentou uns seis anos, até 1980, altura em que, tendo emigrado para Portugal, com o falecimento do pai, voltou e decidiu mudar-se para o Senegal.
Antes de partir, estando eu nessa altura em Bissau a terminar o liceu, disse-me claramente que não podia continuar na Guiné-Bissau porque, segundo ele, esta seria, durante muito tempo, a terra dos outros. Perguntou-me ele:
- Você não ouviu as cantigas deles ?...
Ele referia-se a uma cantiga em crioulo que dizia assim: Kim ki tem terra? Anós ki tem terra. kim ki na labráá...? kim ki na furtáá...? etc. E a sonoridade da música nao colocava quaisquer margens de duvidas sobre as suas origens étnicas.
Na sua opinião, a Guiné-Bissau tinha poucas probabilidades de sucesso porque em vez do bom pastor o gado tinha sido entreque aos lobos, vestidos com pele de ovelhas. Em vez de pessoas instruídas e com experiência na administração do Estado eram pessoas iletradas, quase analfabetas, que dirigiam e controlavam a vida económica e política do pais.
- Assim não vamos a sítio nenhum - arrematava.
Verdade ou mentira a opinião é dele e no que me concerne, sem capacidade de visionar o futuro, e tendo acreditado e abraçado firmemente a visão e os ideais de Amilcar Cabral sobre a necessidade da luta pela afirmação do homem africano, do terceiro mundo, de um mundo mais justo, de progresso, paz e fraternidade, voltei alegremente dos estudos e estou ainda aqui na esperança de ver se aparece a luz ao fundo do túnel.
Mas a questão é, de algum tempo para cá, recorrente e.... inevitável:
- E se o Algássimo tinha razão?...
___________
Notas de L.G.:
(*) Vd. último poste da série > 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho
(**) Vd. poste de 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)
Ambientes e ambiguidades > Algássimo, o visionário
Quando finalmente saía do quartel, a noite, encontrava o Algássimo Djaló à minha espera, ele gostava da sopa (entenda-se comida do quartel) que trazia metida em latas de conservas de tomate. Não podia entrar dentro do quartel, por ordens do seu pai, de princípios rígidos e ortodoxos como todos os seus conterraneos de Futa-Djalon que em tudo se comportavam como perpétuos emigrantes e nunca se integravam nas comunidades locais consideradas de nível inferior, religiosamente falando.
O Algássimo queria viver como uma criança normal da sua idade mas vivia quase numa clausura. Nao podia frequentar nem a escola, nem o quartel, nem os locais de festa, de baile, de futebol, nada, nada. Ele podia, sim, procurar lenha seca nos arredores da aldeia para a fogueira da noite onde passavam, ele e mais outros rapazes da mesma comunidade, horas a fio, a repetir alguns sons escritos em árabe arcaico numa tábua de madeira cujos significados nem o próprio mestre sabia. Era esta a faceta da religião que alguns religiosos, sobretudo Futa-fulas, nos queriam ensinar. Tempo perdido (**).
Mais tarde o Algássimo, por iniciativa própria, acabaria por entrar no quartel e também frequentar a escola mas com meios próprios pois o pai, na impossibilidade de o impedir, tinha sido peromptório:
- Queres ir para a escola dos brancos, então, vai!..Mas nãoe peças nada e nãso me contes nada porque não te dou nada e não quero saber de nada pois o seitan será o teu companheiro no inferno.
O Algássimo foi e ficou, do satanás não viu nem os rastos. O pai, este, acabaria mais tarde, por falecer, doidinho da Silva.
Pela idade, experiência e ansiedade que ele tinha acumulado, rapidamente galgou os escalões do ensino e por pouco não me ultrapassava de classe. Foi nessa altura que, também eu, animal livre, resolvi encarar com alguma seriedade a escola, e consegui, finalmente, aguentar-me na sala, sentado, aquelas duas horas que me pareciam uma eternidade.
Mais tarde ele tirava conclusões interessantes das suas observações sobre aquela época, em Fajonquito, a sua entrada no quartel, os soldados portugueses, o ambiente do refeitório geral e a escola onde curiosamente o professor era um Sanhá que queria dizer mandinga ou um beafada islamizado. Disse-me uma vez:
- O melhor e o pior que aprendi com estes brancos, durante a minha permanência entre eles, e que depois continuou em diferentes lugares e circunstâncias, foi o espírito sempre presente da irreverência e da insubmissão, o sentido da busca, da insatisfação permanente, do questionamento sobre o que parece evidente, da insaciável curiosidade e coragem de ultrapassar limites, da revolta, da reviravolta... Com eles nenhuma situação é imutável e a mudança é uma constante. Enquanto continuarem a liderar, o mundo nao terá sossego.
Este espírito irreverente e mutante, este paradigma filosófico de mudança em permanência, se quiserem, é, na opinião do Algássimo, "a maior força e quiçá, também, a maior fraqueza do Homem branco, europeu, que está constantemente a pôr em questão as suas próprias verdades ainda agora conquistadas e reconhecidas mas insuficientemente amadurecidas".
Continuando ainda sobre o mesmo assunto, dizia que, na sua opinião, "o tumulto materialista e a incongruência lógica do mundo em que vivemos hoje nasceram desse posicionamento ambíguo do homem europeu que prolonga a vida mas também a sua agonia nas incertezas que engendra sobre o amanhã que está por vir mas cujo porvir já está hipotecado nas bolsas de valor de Londres e Nova Iorque".
O meu amigo Algássimo, temeroso ou grande visiánario, não conseguiu aguentar o período após independência, nãoo, ainda aguentou uns seis anos, até 1980, altura em que, tendo emigrado para Portugal, com o falecimento do pai, voltou e decidiu mudar-se para o Senegal.
Antes de partir, estando eu nessa altura em Bissau a terminar o liceu, disse-me claramente que não podia continuar na Guiné-Bissau porque, segundo ele, esta seria, durante muito tempo, a terra dos outros. Perguntou-me ele:
- Você não ouviu as cantigas deles ?...
Ele referia-se a uma cantiga em crioulo que dizia assim: Kim ki tem terra? Anós ki tem terra. kim ki na labráá...? kim ki na furtáá...? etc. E a sonoridade da música nao colocava quaisquer margens de duvidas sobre as suas origens étnicas.
Na sua opinião, a Guiné-Bissau tinha poucas probabilidades de sucesso porque em vez do bom pastor o gado tinha sido entreque aos lobos, vestidos com pele de ovelhas. Em vez de pessoas instruídas e com experiência na administração do Estado eram pessoas iletradas, quase analfabetas, que dirigiam e controlavam a vida económica e política do pais.
- Assim não vamos a sítio nenhum - arrematava.
Verdade ou mentira a opinião é dele e no que me concerne, sem capacidade de visionar o futuro, e tendo acreditado e abraçado firmemente a visão e os ideais de Amilcar Cabral sobre a necessidade da luta pela afirmação do homem africano, do terceiro mundo, de um mundo mais justo, de progresso, paz e fraternidade, voltei alegremente dos estudos e estou ainda aqui na esperança de ver se aparece a luz ao fundo do túnel.
Mas a questão é, de algum tempo para cá, recorrente e.... inevitável:
- E se o Algássimo tinha razão?...
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Notas de L.G.:
(*) Vd. último poste da série > 10 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho
(**) Vd. poste de 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)
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Guiné 63/74 - P4815: Notas de leitura (14): As memórias do inferno de Abel Rei (Parte I) (Luís Graça)
Contra capa do livro, com selos da Guiné da época colonial...
Guiné > Região do Oio > Porto Gole > CART 1661 1967/68) > Desembarque de tropas, na praia de Porto Gole.
Foto: © Abel Rei (2002). Direitos reservados
Abel de Jesus Carreira Rei – Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968. Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. (Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002).
Notas de leitura > I Parte (*)
por Luís Graça
“Esta é a história verdadeira que eu escrevi; não a história que eu gostaria de escrever”, alerta-nos o autor à guisa de preâmbulo.
Pessoalmente, confidenciou-me que foi também a história possível. Conheci o autor por ocasião do nosso IV Encontro Nacional, na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, no passado dia 20 de Junho.
O livro é a transposição do seu diário, ou das notas que diariamente ia passando para o papel, durante a sua comissão de serviço na Guiné. Diz-me que é o livro possível porque, pelo meio, havia a figura da PIDE, que ele nunca cita, e de cuja existência nem sequer se suspeita, mas que se sabia ser poderosa e omnipresente, levando à autocensura (tanto dos aerogramas como dos próprios diários que alguns de nós, secretamente, iam escrevinhando)…
Por outro lado, há notas de rodapé, retiradas da História da Unidade, a CART 1661, a que o autor só teve acesso em 1995, através de um exemplar que lhe foi facultado por um camarada açoriano.
E quem é o autor ?
Abel Rei nasceu ainda durante a II Guerra Mundial, em 30 de Março de 1945, na freguesia de Maceira, concelho de Leiria. O pai era operário vidreiro. A família mudou-se para o concelho da Marinha Grande, O Abel começou a trabalhar bem cedo numa mercearia local, mal acabada a escola primária, aos dez anos. Aos quinze era serralheiro civil.
É bem possível que, ainda antes da tropa, o Abel Rei, nascido e criado em meio operário e, em princípio, politizado como o da Marinha Grande, tivesse já as suas dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da guerra do ultramar/guerra colonial. No seu diário, porém, em nenhuma ocasião o dá a entender, a não ser quando confessa que não se despediu de ninguém, da família e dos amigos, tendo querido “sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê” (p. 22).
Mobilizado para a Guiné, serviu na CART 1661, que passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de Fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. A companhia teve três comandantes: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa, Alf Mil Art Fernando António de Sá e Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo.
Depois da tropa, o Abel voltou a estudar, tendo completado o Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial.
Citando o prefácio do Ten Gen Ref Júlio Faria de Oliveira, presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, “ainda bem que o antigo combatente Abel Rei escreveu esta história verdadeira, a qual, em minha opinião, é extremamente interessante e duvido que aquela, que ele gostaria de ter escrito, fosse ainda melhor” (p. 17).
Em geral, são notas diárias, de um, dois ou três parágrafos, que o Abel Rei foi redigindo num caderninho que sempre o acompanhava. A primeira tem a data de 1/2/67 (partida do T/T Uíge, do cais da Rocha Conde de Óbidos) e a última data de 19/11/68 (regresso à Metrópole, também no mesmo navio).
Ao todo, são 178 registos diários, em pouco mais de 21 meses de comissão, mais de metade das quais (53,4%) correspondem aos quatro primeiros meses (de Fevereiro a Maio de 1967). De Junho até ao final do ano, escreveu apenas, em média, 4 vezes por mês… No segundo ano (Jan-Nov 1968), o ritmo da escrita, certamente por cansaço, saturação ou quebra de disciplina, baixou ainda mais: um pouco mais de 3 registos por mês, embora mais extensos, ocupando 4 dezenas de páginas (de 126 a 166) (Vd. Gráfico a seguir).
A escrita é simples, chã, cingida aos factos do quotidiano ao autor, Abel Rei, 1º Cabo da CART 1661, 3º Grupo de Combate. O autor procura ser objectivo e assertivo. As notas de rodopé confirmam, a posteriori, a veracidade e a precisão dos seus apontamentos. Em geral, procura não emitir opiniões ou falar dos seus sentimentos. Há algumas excepções quando, por exemplo, explica a razão por que decidiu escrever um diário secreto:
(…) “Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal, donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo: até breve!
“Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê ?
“ Espero apagar a minha solidão, escrevendo o meu dia a dia enquanto Deus me der forças e saúde para tal” (4/5/1967 – Navio Uíge, pp. 21/22).
É pena a edição do livro não ter tido revisão de texto. Para além de alguns erros de ortografia e gramática, a pontuação poderia e deveria ser corrigida e melhorada.
Um título enganador
O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).
A 7 de Fevereiro de 1967 o autor segue com os seus camaradas da CART 1661, a caminho de Fá (Mandinga), em LDG, rio Geba acima… até Bambadinca. Chegados na véspera a Bissau, os militares foram directamente transbordados para a LDG, sem terem posto um pé em terra firme.
O autor escreve que se levantaram às 3 da manhã. Chegaram a Bambadinca às 13h. Dali seguiram em coluna auto para Fá (Mandinga). Comeram a primeira refeição quente às 10h das noite. Parece, pois, poder concluir-se que a viagem da LGD, até Bambadinca, terá levado no mínimo 6 a 7 horas. No meu tempo (1969/71), já não tenho ideia das LDG subirem o Geba Estreito até Bambadinca. Em geral, ficavam no Xime, donde se seguia em coluna auto para as todas as principais localidades da zona leste (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche, Contuboel, Galomaro, etc.).
Em Fá (que tem "a melhor água da província") não se vê a guerra (de perto), mas “sonha-se com ela” (12/2/67).
Chega, entretanto, o primeiro correio da família e os primeiros jornais da terra (16/2/67). A 18, começa o treino operacional da CART 1661 cujos grupos de combate seguem para o Xime, onde está sediada a CCAÇ 1550 (subunidade que esteve em Farim e Xime, de 20/4/66 a 17/1/68).
Sobre a estrada Xime-Bambadinca, escreve o autor:
“O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do quartel, contando-se já vários mortos e viaturas destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o percurso e todos os dias” (20/2/67, p. 30). Aqui, no hall de entrada da Zona Leste, eis a guerra que já se sente ou pressente…
A 23/2/67, o Abel Rei tem o seu primeiro contacto com a guerra. A tabanca fula, em autodefesa, de Dembataco (minha velha conhecida…) tinha sido atacada e incendiadas algumas moranças. Há dois mortos entre a população: uma mulher e uma bajuda. O ataque foi repelido, apenas com mausers, que estavam distribuídas à população civil e às milícias (23/2/67).
A 24/2/67, o 3º Gr Comb, do Abel Rei, segue para a Enxalé, de LDM (Lancha de Desembarque Média). Está aqui aquartelada a CCAÇ 1439, madeirense (que passará por Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá, durante a sua comissão, de 2/8/65 a 18/4/67). No dia seguinte, vai até Porto Gole, buscar “homens vindos de uma operação, que tinha começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é povoada de forte terrorismo” (sic)…
(É curioso, o autor nunca se refere explicitamente ao PAIGC, não usa sequer termos como guerrilha ou guerrilheiros, fala explicitamente em inimigo, elementos inimigos, turras, terroristas, de acordo com a designação da época, em que era comandante-chefe e governador geral da Guiné o Gen Arnaldo Schulz, um militar que não estava preparado para a guerra de guerrilha, dando primazia à reconquista e controlo do território em vez da luta político-militar e a acção psicossocial junto das populações, sob duplo controlo ou vivendo em áreas que o PAIGC considerava como “libertadas”).
Ficamos a saber que nesta mata [de Sará] foi capturado “um importante hospital militar” (…), “composto do mais moderno equipamemnto, e duma variedade extraordinária de medicamentos” (25/2/67, p. 34).
O baptismo de fogo
Um mês depois, temos as primeiras referências à comida que se come na guerra: ”Comemos uma mal confeccionada refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conversa, regada com o já célebre vinho baptizado” (Enxalé, 4/3/67)… Mas também à água, o precioso líquido que costuma ser bebido “com comprimidos e filtrado”… Desta vez, depois de uma duríssima operação de Porto Gole (partida às 3h da madrugada) a Bissá (chegada às 7h30) com a missão de comprar gado aos nativos, com regresso a Enxalé, às 16h:
“A água (…) bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!” (5/3/67, pp. 39/40).
De regresso a Fá (“a capital do sossego”), o 1º Cabo Abel Rei recebe o primeiro patacão, 613 pesos da Guiné, “menos cento e tal que o vencimento normal” (8/3/67, p. 42).
O dia 12 de Março de 1967 foi “histórico” para o Abel, dia “em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça”… (‘As’ são as balas do inimigo)… Foi o seu baptismo de fogo, na região do Poindon, no âmbito da Op Granada, operação conjunta com a CART 1550… “As NT foram emboscadas duas vezes pelo IN, sem consequências” (p. 46).
Poindon (ou Poidon) tornou-se, no Sector L1 (Bambadinca), um nome mítico, para as tropas portugueses: era inevitável haver contacto com o IN sempre que se lá ia… Na época, ainda havia o destacamento de Ponta do Inglês, na Foz do Corubal, posteriormente abandonado (creio que em Novembro de 1968, já sob o consulado de Spínola, que tomaria posse, em 2 de Maio desse ano, do cargo de Com-Chefe e Governador-Geral).
Ao fim de mês e meio de Guiné, o Abel começa a queixar-se dos primeiros problemas de saúde: é-lhe extraída uma matacanha da sola do pé, “tendo sofrido intensas dores, ao ponto de trincar a boina” (14/3/67, p. 47). Três dias depois queixava-se dos intestinos e dos dentes. Fica a aguardar vez para uma consulta externa no Hospital Militar de Bissau… “Assim éramos enganados e mantidos como operacionais (…). Estas consultas não chegaram jamais a ser efectivadas” (…) (17/3/67, pp. 48/49). O Abel já ter que aprender a viver com as mazelas do corpo e da alma…
Op Guindaste, uma atribulada ida ao Buruntoni (Xime)
De 19 a 21 de Março de 1967, há uma detalhada referência a uma operação ao Buruntoni (e não Burontoni), a sul do Xime (pp. 49-53).
Eis o que diz, em resumo, a história da unidade: A 19, a companhia realiza, em conjunto com a CCAÇ 1550, a Op Guindaste na zona do Buruntoni. “Destruída uma casa de mato, feitos 8 mortos confirmados e capturado o seguinte armamento: 1 pistola-metralhadora PPHS, 1 pistola COSKA, 3 carregores vários, centenas de munições e outros materiais”… Regresso a Fá em 21…
Vejamos o que escreveu o 1º Cabo Abel Rei, no seu diário:
Era domingo de Ramos, o 19 de Março de 1967. O pessoal levantou-se cedo, tomou um “ligeiro pequeno almoço”, seguindo depois em viatura auto para Bambadinca e estrada do Xitole. Alguns quilómetros depois, seguiram a pé, “durante mais de duas horas”, até Dembataco, a aldeia atacada em 23/2/67. “Lá almoçámos ração de combate (…). O apetite era pouco, começando desde esse momento a ser alimentado a água” (p. 50).
À uma da tarde, as NT partem para o objectivo, “por intermináveis picadas da mata, sob um calor escaldante, com a sede e o cansaço a apertar” (….). Fazem uma paragem às 6h30, já noite. Pernoitam no local. Retomam, ao nascer do dia, a marcha para o Buruntoni, aonde chegam por volta das 11h. A água já se tinha acabado no dia anterior…
Às 11 e picos, há um contacto com “elementos inimigos, numa casa de mato” (…), “causando-lhes mortos (oito confirmados), e fugindo os restantes apavorados pela nossa chegada inesperada”... Foi capturado diverso material (incluindo “uma pistola metralhadora pesada e uma ligeira”).
Segue-se a descrição da retirada, a 20 de Março de 1967:
“Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento.
“Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, aonde chegámos às sete da noite” (p. 51).
Nova corrida (“louca”) para o abastecimento de água e uma clara prova de solidariedade entre camaradas, para mais oriundos da mesma terra: “(…) eram sempre duas rações que tinha de arranjar, a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide [, freguesia de Monte Redondo, concelho de Leiria], que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo o seu equipamento” (p. 51).
Na estrada Xitole-Bambadinca (provavelmente próximo do sítio onde mais tarde, em Maio de 1968, a CART 2339 do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos irá erguer o campo fortificado de Mansambo, segundo a designaçºão do PAIGC), era esperado haver viaturas para levar o pessoal no regresso aos aquartelamentos, o que não aconteceu:
“Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite, e foram só os teimosos do meu grupo de combate, os outros lá ficaram a aguardar as viaturas”… Lá chegados, voltaram atrás, “a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas, que entretanto se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram” (p. 52). Chegaram por fim a Bambadinca, já no dia seguinte, 22, à 1 da manhã…
Comentário do autor:
“Esta foi sem dúvida uma prova de resistência, superior às minhas capacidades, de que aguentei bem, muito embora na parte final tivesse que acabar estourado fisicamente, pois foram mais de dezassete horas consecutivas, em andamento sob um escaldante clima tropical, no qual vi cair homens mais fortes do que eu” (p. 52)…
Segundo o Abel Rei, não houve apoio aéreo, devido a problemas de transmissões, tornando por isso a Op Guindaste ainda mais penosa para as NT.
Fá, o repouso do guerreiro
De novo em Fá, o autor saboreia o descanso do guerreiro:
“ (…) A ventoínha, mesmo por cima da minha cabeça, gira, dando voltas sem fim, refrescando o ambiente e alimentando-o de mosquitos. O tempo está fresco, lá fora o luar lembra, juntamente com o firmamento celeste, o nosso luar de Agosto: ah!, como saberia bem recordar uma chegada familiar, com as alfaias às costas, duma fresca e saudável campina” (23/3/67, p. 54).
Ficamos a saber que em Fá Mandinga há uma pequena biblioteca, e que o autor tem bons hábitos de leitura:
“Para melhor passar o tempo, levantei alguns livros da nossa pequena biblioteca – eu, além dum dicionário e um prontuário de Português, trouxe mais de uma dúzia de livros, os quais já devorei” (p. 54).
Durante a guerra, Fá Mandinga funcionou como uma espécie de Centro de Instrução Militar (foilá que se formou a 1ª Companhia de Comandos Africana, no meu tempo), a par de Contuboel e de Bolama, três localidades durante muito tempo poupadas pela guerra. Em Fá havia, antes do início guerra, uma estação de desenvolvimento agrário onde se dizia (ao que parece, erradamente) ter trabalhado o Eng. Agrónomo Amílcar Cabral.
Em Porto Gole, com saudades do mar
Dia 26 de Março de 1967, “domingo e Páscoa”, a CART 1661 parte para o Enxalé onde vai render a CCAÇ 1439 que terminava a sua comissão (2/8/65 – 18/4/67). Uma secção do 2º Gr Comb, a que pertence o Abel segue, por seu turno, para Porto Gole. Da guarnição faz parte também o Pel Caç Nat 54. O 3º Gr Comb ocupa, por sua vez, o destacamento de Missirá.
Em Porto Gole, o Abel tem a ilusão de reviver o mar da sua terra: “Pela noite, antes de me ir deitar, fui dar uma vista de olhos pela margem do Rio Geba, revivendo ilusoriamente o nosso já saudoso mar” (27/3/67, Porto Gole, p. 56). Um mês depois arranja coragem para tomar o seu primeiro banho no Rio Geba, matando “saudades do mar” (sic) (1/5/67, p. 78).
Há também pequenos apontamentos sobre o quotidiano da população local, balanta, que se dedica, com muita destreza, à recolha de crustáceos na margem do rio:
“As mulheres nativas, a poucos metros, apanham os chamados ‘cacres’ (espécie de caranguejos) (…), existentes nas margens lodosas. São aos milhares, e ao sentirem aproximar-se alguém, correm a refugiar-se , em buracos feitos por eles, e onde se abrigam das marés. As mulheres, de tanga, andam de um lado para o outro, enterradas em lama, quase até ao ventre, e enfiando as mãos no lodo até chegarem ao fundo dos buracos, agarrando-os, aos quais partem um membro e vão pondo em tigelas” (5/5/67, Porto Gole, pp. 80/81)…
Em Porto Gole, onde há alguma abundância de peixe, o autor terá ainda oportunidade de conhecer o fenómeno do macaréu no Rio Gebal, o qual “chega a virar pequenas embarcações de mercadorias, que os nativos movimentam ao longo do seu curso, e que, ao deslocar-se para a nascente, arrasta um enorme ruído das águas revoltas” (20/4/67, p. 75).
A 31 de Março, a CART 1661 actuou conjuntamente com a CCAÇ 1589, na Op Rorodes, na zona de Mantém. Houve contacto com o IN, mas não se registaram baixas. Regresso a 2 de Abril, também dramático, com homens esgotados e desidratados, transportados em maca…
“Desde que vou a operações, foi a primeira vez que eu fiquei exausto, sem forças nas pernas, e com a garganta seca! Como não podíamos mais, só nos restou esperar e aguardar, até que finalmente lá chegou uma viatura com água, que nos levou até Porto Gole, onde chegámos às duas da tarde” (p. 61)….
A CCAÇ 1589 pertencia ao BCAÇ 1894 (tendo passado, de 30/7/66 a 9/5/68, por Bissau, Fá, Nova Lamego, Fá, Madina do Boé, Bissau).
(Continua)
____________
Nota de L.G.:
(*) V d. último poste desta série > 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)
O livro é a transposição do seu diário, ou das notas que diariamente ia passando para o papel, durante a sua comissão de serviço na Guiné. Diz-me que é o livro possível porque, pelo meio, havia a figura da PIDE, que ele nunca cita, e de cuja existência nem sequer se suspeita, mas que se sabia ser poderosa e omnipresente, levando à autocensura (tanto dos aerogramas como dos próprios diários que alguns de nós, secretamente, iam escrevinhando)…
Por outro lado, há notas de rodapé, retiradas da História da Unidade, a CART 1661, a que o autor só teve acesso em 1995, através de um exemplar que lhe foi facultado por um camarada açoriano.
E quem é o autor ?
Abel Rei nasceu ainda durante a II Guerra Mundial, em 30 de Março de 1945, na freguesia de Maceira, concelho de Leiria. O pai era operário vidreiro. A família mudou-se para o concelho da Marinha Grande, O Abel começou a trabalhar bem cedo numa mercearia local, mal acabada a escola primária, aos dez anos. Aos quinze era serralheiro civil.
É bem possível que, ainda antes da tropa, o Abel Rei, nascido e criado em meio operário e, em princípio, politizado como o da Marinha Grande, tivesse já as suas dúvidas sobre a legitimidade e a viabilidade da guerra do ultramar/guerra colonial. No seu diário, porém, em nenhuma ocasião o dá a entender, a não ser quando confessa que não se despediu de ninguém, da família e dos amigos, tendo querido “sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê” (p. 22).
Mobilizado para a Guiné, serviu na CART 1661, que passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de Fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. A companhia teve três comandantes: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa, Alf Mil Art Fernando António de Sá e Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo.
Depois da tropa, o Abel voltou a estudar, tendo completado o Curso Geral de Mecânica da Escola Industrial.
Citando o prefácio do Ten Gen Ref Júlio Faria de Oliveira, presidente da Direcção Central da Liga dos Combatentes, “ainda bem que o antigo combatente Abel Rei escreveu esta história verdadeira, a qual, em minha opinião, é extremamente interessante e duvido que aquela, que ele gostaria de ter escrito, fosse ainda melhor” (p. 17).
Em geral, são notas diárias, de um, dois ou três parágrafos, que o Abel Rei foi redigindo num caderninho que sempre o acompanhava. A primeira tem a data de 1/2/67 (partida do T/T Uíge, do cais da Rocha Conde de Óbidos) e a última data de 19/11/68 (regresso à Metrópole, também no mesmo navio).
Ao todo, são 178 registos diários, em pouco mais de 21 meses de comissão, mais de metade das quais (53,4%) correspondem aos quatro primeiros meses (de Fevereiro a Maio de 1967). De Junho até ao final do ano, escreveu apenas, em média, 4 vezes por mês… No segundo ano (Jan-Nov 1968), o ritmo da escrita, certamente por cansaço, saturação ou quebra de disciplina, baixou ainda mais: um pouco mais de 3 registos por mês, embora mais extensos, ocupando 4 dezenas de páginas (de 126 a 166) (Vd. Gráfico a seguir).
A escrita é simples, chã, cingida aos factos do quotidiano ao autor, Abel Rei, 1º Cabo da CART 1661, 3º Grupo de Combate. O autor procura ser objectivo e assertivo. As notas de rodopé confirmam, a posteriori, a veracidade e a precisão dos seus apontamentos. Em geral, procura não emitir opiniões ou falar dos seus sentimentos. Há algumas excepções quando, por exemplo, explica a razão por que decidiu escrever um diário secreto:
(…) “Quando parti de casa, com a mochila às costas e uma mala vermelha com as minhas coisas, deslocando-me a pé para o comboio que me levaria a Lisboa, e ao passar o pinhal, donde ainda avistava o meu lugar onde cresci, olhei para trás e despedi-me do meu povoado, dizendo para comigo: até breve!
“Estas foram as despedidas possíveis, pois não tive coragem de dizer absolutamente nada a ninguém antes de partir. Quis sofrer sozinho: por não saber explicar o que vinha fazer, para onde, e porquê ?
“ Espero apagar a minha solidão, escrevendo o meu dia a dia enquanto Deus me der forças e saúde para tal” (4/5/1967 – Navio Uíge, pp. 21/22).
É pena a edição do livro não ter tido revisão de texto. Para além de alguns erros de ortografia e gramática, a pontuação poderia e deveria ser corrigida e melhorada.
Um título enganador
O inferno? Seguramente, para o Abel e os seus camaradas, o inferno foi Porto Gole, Bissá, Enxalé, pela dureza das condições de vida, nos dias de paz e nos dias de guerra… Paraíso ? Não sei se o autor se refere à breve estadia, no início da comissão, em Fá Mandinga, onde a guerra só se antevia ou pressentia, ao longe… Há também momentos, de alguma felicidade, passados em Porto Gole, à beira rio, ajudando a esquecer as praias atlânticas da infância e da adolescência do autor (Praia da Vieira, São Pedro de Moel…).
A 7 de Fevereiro de 1967 o autor segue com os seus camaradas da CART 1661, a caminho de Fá (Mandinga), em LDG, rio Geba acima… até Bambadinca. Chegados na véspera a Bissau, os militares foram directamente transbordados para a LDG, sem terem posto um pé em terra firme.
O autor escreve que se levantaram às 3 da manhã. Chegaram a Bambadinca às 13h. Dali seguiram em coluna auto para Fá (Mandinga). Comeram a primeira refeição quente às 10h das noite. Parece, pois, poder concluir-se que a viagem da LGD, até Bambadinca, terá levado no mínimo 6 a 7 horas. No meu tempo (1969/71), já não tenho ideia das LDG subirem o Geba Estreito até Bambadinca. Em geral, ficavam no Xime, donde se seguia em coluna auto para as todas as principais localidades da zona leste (Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego, Piche, Contuboel, Galomaro, etc.).
Em Fá (que tem "a melhor água da província") não se vê a guerra (de perto), mas “sonha-se com ela” (12/2/67).
Chega, entretanto, o primeiro correio da família e os primeiros jornais da terra (16/2/67). A 18, começa o treino operacional da CART 1661 cujos grupos de combate seguem para o Xime, onde está sediada a CCAÇ 1550 (subunidade que esteve em Farim e Xime, de 20/4/66 a 17/1/68).
Sobre a estrada Xime-Bambadinca, escreve o autor:
“O percurso é péssimo e perigoso. Costuma ser muitas vezes armadilhado com minas pelo inimigo, mesmo perto do quartel, contando-se já vários mortos e viaturas destruídas. O chão é picado cuidadosamente em todo o percurso e todos os dias” (20/2/67, p. 30). Aqui, no hall de entrada da Zona Leste, eis a guerra que já se sente ou pressente…
A 23/2/67, o Abel Rei tem o seu primeiro contacto com a guerra. A tabanca fula, em autodefesa, de Dembataco (minha velha conhecida…) tinha sido atacada e incendiadas algumas moranças. Há dois mortos entre a população: uma mulher e uma bajuda. O ataque foi repelido, apenas com mausers, que estavam distribuídas à população civil e às milícias (23/2/67).
A 24/2/67, o 3º Gr Comb, do Abel Rei, segue para a Enxalé, de LDM (Lancha de Desembarque Média). Está aqui aquartelada a CCAÇ 1439, madeirense (que passará por Xime, Bambadinca, Enxalé e Fá, durante a sua comissão, de 2/8/65 a 18/4/67). No dia seguinte, vai até Porto Gole, buscar “homens vindos de uma operação, que tinha começado oito dias antes, nas matas do Sará, e onde estiveram com mais companhias, batendo a zona, que é povoada de forte terrorismo” (sic)…
(É curioso, o autor nunca se refere explicitamente ao PAIGC, não usa sequer termos como guerrilha ou guerrilheiros, fala explicitamente em inimigo, elementos inimigos, turras, terroristas, de acordo com a designação da época, em que era comandante-chefe e governador geral da Guiné o Gen Arnaldo Schulz, um militar que não estava preparado para a guerra de guerrilha, dando primazia à reconquista e controlo do território em vez da luta político-militar e a acção psicossocial junto das populações, sob duplo controlo ou vivendo em áreas que o PAIGC considerava como “libertadas”).
Ficamos a saber que nesta mata [de Sará] foi capturado “um importante hospital militar” (…), “composto do mais moderno equipamemnto, e duma variedade extraordinária de medicamentos” (25/2/67, p. 34).
O baptismo de fogo
Um mês depois, temos as primeiras referências à comida que se come na guerra: ”Comemos uma mal confeccionada refeição, de arroz com ervilhas e sardinhas de conversa, regada com o já célebre vinho baptizado” (Enxalé, 4/3/67)… Mas também à água, o precioso líquido que costuma ser bebido “com comprimidos e filtrado”… Desta vez, depois de uma duríssima operação de Porto Gole (partida às 3h da madrugada) a Bissá (chegada às 7h30) com a missão de comprar gado aos nativos, com regresso a Enxalé, às 16h:
“A água (…) bebeu-se por todos, sofregamente, sem olhar a limpeza e origem. Bebia-se todo o líquido que nos aparecia, quer nas poças do terreno, ou nos poucos cursos de água, fosse ele da cor que fosse!” (5/3/67, pp. 39/40).
De regresso a Fá (“a capital do sossego”), o 1º Cabo Abel Rei recebe o primeiro patacão, 613 pesos da Guiné, “menos cento e tal que o vencimento normal” (8/3/67, p. 42).
O dia 12 de Março de 1967 foi “histórico” para o Abel, dia “em que as ouvi cantar por cima da minha cabeça”… (‘As’ são as balas do inimigo)… Foi o seu baptismo de fogo, na região do Poindon, no âmbito da Op Granada, operação conjunta com a CART 1550… “As NT foram emboscadas duas vezes pelo IN, sem consequências” (p. 46).
Poindon (ou Poidon) tornou-se, no Sector L1 (Bambadinca), um nome mítico, para as tropas portugueses: era inevitável haver contacto com o IN sempre que se lá ia… Na época, ainda havia o destacamento de Ponta do Inglês, na Foz do Corubal, posteriormente abandonado (creio que em Novembro de 1968, já sob o consulado de Spínola, que tomaria posse, em 2 de Maio desse ano, do cargo de Com-Chefe e Governador-Geral).
Ao fim de mês e meio de Guiné, o Abel começa a queixar-se dos primeiros problemas de saúde: é-lhe extraída uma matacanha da sola do pé, “tendo sofrido intensas dores, ao ponto de trincar a boina” (14/3/67, p. 47). Três dias depois queixava-se dos intestinos e dos dentes. Fica a aguardar vez para uma consulta externa no Hospital Militar de Bissau… “Assim éramos enganados e mantidos como operacionais (…). Estas consultas não chegaram jamais a ser efectivadas” (…) (17/3/67, pp. 48/49). O Abel já ter que aprender a viver com as mazelas do corpo e da alma…
Op Guindaste, uma atribulada ida ao Buruntoni (Xime)
De 19 a 21 de Março de 1967, há uma detalhada referência a uma operação ao Buruntoni (e não Burontoni), a sul do Xime (pp. 49-53).
Eis o que diz, em resumo, a história da unidade: A 19, a companhia realiza, em conjunto com a CCAÇ 1550, a Op Guindaste na zona do Buruntoni. “Destruída uma casa de mato, feitos 8 mortos confirmados e capturado o seguinte armamento: 1 pistola-metralhadora PPHS, 1 pistola COSKA, 3 carregores vários, centenas de munições e outros materiais”… Regresso a Fá em 21…
Vejamos o que escreveu o 1º Cabo Abel Rei, no seu diário:
Era domingo de Ramos, o 19 de Março de 1967. O pessoal levantou-se cedo, tomou um “ligeiro pequeno almoço”, seguindo depois em viatura auto para Bambadinca e estrada do Xitole. Alguns quilómetros depois, seguiram a pé, “durante mais de duas horas”, até Dembataco, a aldeia atacada em 23/2/67. “Lá almoçámos ração de combate (…). O apetite era pouco, começando desde esse momento a ser alimentado a água” (p. 50).
À uma da tarde, as NT partem para o objectivo, “por intermináveis picadas da mata, sob um calor escaldante, com a sede e o cansaço a apertar” (….). Fazem uma paragem às 6h30, já noite. Pernoitam no local. Retomam, ao nascer do dia, a marcha para o Buruntoni, aonde chegam por volta das 11h. A água já se tinha acabado no dia anterior…
Às 11 e picos, há um contacto com “elementos inimigos, numa casa de mato” (…), “causando-lhes mortos (oito confirmados), e fugindo os restantes apavorados pela nossa chegada inesperada”... Foi capturado diverso material (incluindo “uma pistola metralhadora pesada e uma ligeira”).
Segue-se a descrição da retirada, a 20 de Março de 1967:
“Retirámos, deixando tudo em chamas, em passo acelerado, tendo alguns desmaiado, em parte devido ao calor, mas também por falta de água, contando-se entre eles o nosso capitão e um sargento.
“Quando tornámos a passar pelo riacho, que sabíamos existir, parecíamos que estávamos loucos, procurando a água com ânsia, mesmo com ela quase preta, do calcar dos pés. Lá estivemos mais de uma hora, para abalarmos depois, bastante mais frescos, a caminho de Dembataco, aonde chegámos às sete da noite” (p. 51).
Nova corrida (“louca”) para o abastecimento de água e uma clara prova de solidariedade entre camaradas, para mais oriundos da mesma terra: “(…) eram sempre duas rações que tinha de arranjar, a minha e a do meu colega Saraiva, dos Moínhos de Carvide [, freguesia de Monte Redondo, concelho de Leiria], que vinha completamente abatido, e o qual ajudei nas últimas horas de marcha, amparando-o e trazendo o seu equipamento” (p. 51).
Na estrada Xitole-Bambadinca (provavelmente próximo do sítio onde mais tarde, em Maio de 1968, a CART 2339 do Torcato Mendonça e do Carlos Marques dos Santos irá erguer o campo fortificado de Mansambo, segundo a designaçºão do PAIGC), era esperado haver viaturas para levar o pessoal no regresso aos aquartelamentos, o que não aconteceu:
“Partimos aos tombos até Bambadinca, onde chegámos à meia-noite, e foram só os teimosos do meu grupo de combate, os outros lá ficaram a aguardar as viaturas”… Lá chegados, voltaram atrás, “a fazer segurança às viaturas, que iam buscar os nossos colegas, que entretanto se tinham posto a caminho por ser perigosa a sua permanência no local onde ficaram” (p. 52). Chegaram por fim a Bambadinca, já no dia seguinte, 22, à 1 da manhã…
Comentário do autor:
“Esta foi sem dúvida uma prova de resistência, superior às minhas capacidades, de que aguentei bem, muito embora na parte final tivesse que acabar estourado fisicamente, pois foram mais de dezassete horas consecutivas, em andamento sob um escaldante clima tropical, no qual vi cair homens mais fortes do que eu” (p. 52)…
Segundo o Abel Rei, não houve apoio aéreo, devido a problemas de transmissões, tornando por isso a Op Guindaste ainda mais penosa para as NT.
Fá, o repouso do guerreiro
De novo em Fá, o autor saboreia o descanso do guerreiro:
“ (…) A ventoínha, mesmo por cima da minha cabeça, gira, dando voltas sem fim, refrescando o ambiente e alimentando-o de mosquitos. O tempo está fresco, lá fora o luar lembra, juntamente com o firmamento celeste, o nosso luar de Agosto: ah!, como saberia bem recordar uma chegada familiar, com as alfaias às costas, duma fresca e saudável campina” (23/3/67, p. 54).
Ficamos a saber que em Fá Mandinga há uma pequena biblioteca, e que o autor tem bons hábitos de leitura:
“Para melhor passar o tempo, levantei alguns livros da nossa pequena biblioteca – eu, além dum dicionário e um prontuário de Português, trouxe mais de uma dúzia de livros, os quais já devorei” (p. 54).
Durante a guerra, Fá Mandinga funcionou como uma espécie de Centro de Instrução Militar (foilá que se formou a 1ª Companhia de Comandos Africana, no meu tempo), a par de Contuboel e de Bolama, três localidades durante muito tempo poupadas pela guerra. Em Fá havia, antes do início guerra, uma estação de desenvolvimento agrário onde se dizia (ao que parece, erradamente) ter trabalhado o Eng. Agrónomo Amílcar Cabral.
Em Porto Gole, com saudades do mar
Dia 26 de Março de 1967, “domingo e Páscoa”, a CART 1661 parte para o Enxalé onde vai render a CCAÇ 1439 que terminava a sua comissão (2/8/65 – 18/4/67). Uma secção do 2º Gr Comb, a que pertence o Abel segue, por seu turno, para Porto Gole. Da guarnição faz parte também o Pel Caç Nat 54. O 3º Gr Comb ocupa, por sua vez, o destacamento de Missirá.
Em Porto Gole, o Abel tem a ilusão de reviver o mar da sua terra: “Pela noite, antes de me ir deitar, fui dar uma vista de olhos pela margem do Rio Geba, revivendo ilusoriamente o nosso já saudoso mar” (27/3/67, Porto Gole, p. 56). Um mês depois arranja coragem para tomar o seu primeiro banho no Rio Geba, matando “saudades do mar” (sic) (1/5/67, p. 78).
Há também pequenos apontamentos sobre o quotidiano da população local, balanta, que se dedica, com muita destreza, à recolha de crustáceos na margem do rio:
“As mulheres nativas, a poucos metros, apanham os chamados ‘cacres’ (espécie de caranguejos) (…), existentes nas margens lodosas. São aos milhares, e ao sentirem aproximar-se alguém, correm a refugiar-se , em buracos feitos por eles, e onde se abrigam das marés. As mulheres, de tanga, andam de um lado para o outro, enterradas em lama, quase até ao ventre, e enfiando as mãos no lodo até chegarem ao fundo dos buracos, agarrando-os, aos quais partem um membro e vão pondo em tigelas” (5/5/67, Porto Gole, pp. 80/81)…
Em Porto Gole, onde há alguma abundância de peixe, o autor terá ainda oportunidade de conhecer o fenómeno do macaréu no Rio Gebal, o qual “chega a virar pequenas embarcações de mercadorias, que os nativos movimentam ao longo do seu curso, e que, ao deslocar-se para a nascente, arrasta um enorme ruído das águas revoltas” (20/4/67, p. 75).
A 31 de Março, a CART 1661 actuou conjuntamente com a CCAÇ 1589, na Op Rorodes, na zona de Mantém. Houve contacto com o IN, mas não se registaram baixas. Regresso a 2 de Abril, também dramático, com homens esgotados e desidratados, transportados em maca…
“Desde que vou a operações, foi a primeira vez que eu fiquei exausto, sem forças nas pernas, e com a garganta seca! Como não podíamos mais, só nos restou esperar e aguardar, até que finalmente lá chegou uma viatura com água, que nos levou até Porto Gole, onde chegámos às duas da tarde” (p. 61)….
A CCAÇ 1589 pertencia ao BCAÇ 1894 (tendo passado, de 30/7/66 a 9/5/68, por Bissau, Fá, Nova Lamego, Fá, Madina do Boé, Bissau).
(Continua)
____________
Nota de L.G.:
(*) V d. último poste desta série > 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)
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Guiné 63/74 - P4814: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (8): “O Padre eterno”
1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), enviou-nos a sua 8ª estória, que faz parte do seu livro "Golpes de Mao's - Memórias de Guerra", que muito agradecemos, com data de 06 de Agosto de 2009, a que deu o seguinte título:
O PADRE ETERNO
O PADRE ETERNO
O «Padre Eterno» não era alcunha. É apenas o apelido – algo invulgar – do Firmino, alentejano de corpo inteiro.
Nado e criado em Borba e de nome completo Firmino Carola Padre Eterno.
O Padre Eterno foi um militar “especial” na Companhia.
Até se poderá dizer “especial de corrida” porque foi condutor-auto.
Depois de ter andado de “cu tremido” e no “bem bom” uma boa temporada na Metrópole como condutor do Coronel Braancamp Sobral, em diversas unidades militares... um dia... acabou-se-lhe a “mama”. E foi mobilizado.
Foto do Padre Eterno à civil em Bissau
(Obviamente na “5ª.Rep.”)
Foi para a Guiné incorporado na C.Caç. 642, do Batalhão dos Águias Negras como 1º. Cabo Condutor-Auto e por causa de um “levantamento de rancho”... foi punido com 15 dias de prisão disciplinar agravada, despromoção a soldado raso e transferido para outra Unidade.
Calhou-lhe a “675”. Obviamente que na vida militar não é o melhor “cartão de visita” chegar a uma Companhia isolado e “sem para quedas” e com a fama de ter estado metido num "levantamento de rancho".
Teve a sorte de encontrar um Comandante de Companhia como o Capitão Tomé Pinto que lhe “leu” de imediato “a cartilha”...
– O que se passou anteriormente não me interessa. Interessa-me o teu comportamento na C.Caç. 675 a partir desta data. Se te portares bem não vais ter problemas... E recomendo-te que o faças.
O Padre Eterno nunca esqueceu “a recomendação” e entrou na família da “675” como "gente grande".
“Entrou” tão bem que parecia que nunca tinha estado noutro lado.
Bem disposto, brincalhão, mas atilado e excelente operacional.
Foi devido à sua “ratice” que localizou uma mina anti-carro no dia da operação de Sambuiá – 5 de Janeiro de 1965 – e evitou uma tragédia, que podia ter causado mortos e feridos.
A sua versão do levantamento de rancho (de que foi acusado) é anedótica mas na vida militar uma palavra a destempo pode ser... ”a morte do artista”...
O Padre Eterno chegou atrasado a uma formatura para o jantar, desconhecendo que estava iminente um levantamento de rancho, e “caiu” como um “pato” quando o Oficial de Dia chegou à formatura.
– Quem são aqui os “meninos finos”?
– Quem é que não quer comer?
O Firmino não conseguiu ficar calado, como convinha, armou-se em “engraçado” e “lixou-se”:
– Eu é que não janto. Recebi hoje uma encomenda de casa com um paio – daqueles de comer e chorar por mais – e tive um lanche daqueles à antiga. Eu é que não vou comer.
Efectivamente não comeu do rancho mas “comeu” um castigo que... lhe estragou a digestão.
Apesar da azia dos dias seguintes teve a “sorte grande” de ter ido parar à “675”.
Onde foi um militar estimado por toda a gente.
Tinha sempre uma “estória” da sua terra para contar e, mesmo repetidas, os seus ditos causavam sempre gargalhadas no aquartelamento.
Sem dúvida que o apelido – Padre Eterno – ajudava e, não sendo alcunha, passou à história da companhia como sendo o filho do principal sócio de um armazém de vinhos de Borba. O nome da firma em causa deixava sempre a rapaziada de boca aberta e convencida de que o Firmino estava “a regar”.
Mas não estava.
Mais tarde quando fomos ao seu casamento a Borba foi-nos confirmado que o Pai do Firmino tinha sido mesmo um dos sócios da firma “Padre Eterno & Salvador das Almas, Armazém de Vinhos !!!
E depois há aquela estória da “sandes de atum” que arranjou ao “Caldas”, quando ele estava no Hospital Militar de Bissau, cujo crédito já “chegou” ao Céu...
Firmino já um pouco longe do “estado novo” mas ainda em boa forma.
(Foto de Maio de 2009, em Évora).
Foto do autor
Firmino Carola Padre Eterno alentejano puro e membro ilustre da “Família 675”.
E quer se queira quer não dá sempre jeito ter por amigo um “Padre” que... ainda por cima é “Eterno”...
Um abraço,
JERO
Fur Mil Enf da CCAÇ 675
Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
9 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4803: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (7): O “Caldas” da CCAÇ 675, Binta - 1964/66
terça-feira, 11 de agosto de 2009
Guiné 63/74 - P4813: (Ex)citações (38): Resposta a J. Mexia Alves (António J. Pereira da Costa)
1. Resposta de A.J. Pereira da Costa (*), Coronel, comandante da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74, ao poste P4680 de J. Mexia Alves (**), enviada ao Blogue no dia 10 de Agosto de 2009:
Caro Camarada
Aqui vai a resposta:
Primeiro quero dizer que para além da guarda das memórias temos o dever de interpretar o que sucedeu. Temos o dever de o analisar fria e logicamente, mesmo que as conclusões não sejam aquelas que mais nos agradariam. Julgo que é isto que o blog pretende ao dizer que temos que falar antes que outros o façam por nós. Enquanto intervenientes, mesmo “a quente”, teremos uma perspectiva mais correcta do que os vindouros, mesmo bem intencionados, que só poderão especular sobre o que possa ter acontecido. Já hoje aparecem por aí umas teses de mestrado e doutoramento, escritas por amadores que terminam por conclusões absolutamente inaceitáveis. Podemos estar certos de que o tratamento de que seremos alvo vai ser muito mais boçal, insensível e injusto do hoje, quando, entre nós, uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez, outros que possa ter sido de outro modo ou nem tanto... Temos uma vantagem: mesmo com uma visão sempre parcial, quiçá imperfeita, anima-nos a experiência e essa não se transmite.
Começava por pedir que consultasses o POST 4801 (***) da autoria do Vitor Junqueira que trata dos que fugiram e explicita bem o que eu quis dizer no meu post.
Curiosamente, o número de desertores[1]é surpreendentemente baixo, quer se considerem os que o fizeram já nos TO, quer se considerem os que desertaram ainda nas unidades de Portugal (faço apelo à vossa memória para que se recordem quantos desertaram efectivamente nas unidades onde foram prestando serviço). Não estou a incluir nestes os que desertavam – especialmente praças – para trabalhar e ganhar algum dinheiro, para manterem as famílias no limiar da sobrevivência e que, depois se apresentavam. Tive casos destes. Os jovens – adolescentes, às vezes – que saíam do país antes ou depois de terem “dado o nome” (e foram bastantes, não sei quantos) não desertaram fugiram e, muitos deles talvez tenham saltado da frigideira para o fogo…
Por outro lado, quem se opõem a qualquer coisa pode optar por se afastar, simplesmente, ou hostilizar e lutar contra essa coisa de modo mais ou menos empenhado. Temos exemplos como do Ten. Veloso da FAP que desertou, em Moçambique, com avião, mecânico e tudo… É também uma forma de valentia. Não creio que a apresentação às autoridades e, com lealdade e valentia, informá-las de que se não faz isto ou aquilo tivesse sido uma solução. As “autoridades” eram desonestas e viciosas na sua acção e além de distorcerem o acto e de o apresentaram como algo de ignóbil, triturariam o idealista que se dispusesse a desafiá-las. Não tenho conhecimento de alguém que o tenha feito e se no no estrangeiro o fizeram alguma vez… aqui tal não era possível. Não nos esqueçamos dos tempos que então se viviam. Às vezes parece que as pessoas se esquecem. Os povos têm má memória, mas também não abusemos…
Quando analisamos o desfeche de uma guerra, temos de ser objectivos e aceitar o sucedido. Hipoteticamente podemos determinar causas. No nosso caso particular, estou convencido de que aquilo a que chamamos “guerra” foi um fenómeno sociológico que decorreu em Portugal e que terminou com a independência de várias fracções do país relativamente ao poder central. Talvez fosse boa ideia perguntarmo-nos porque é que havia um “poder central” e se este era parte da solução ou do problema? Qual a relação desse poder com as diferentes possessões? Porque é que mil escudos valiam mil e cem “pesos”/escudos e mil pesos valiam apenas 900 escudos? E outras questões que, na altura, começámos a levantar, uma vez em contacto coma realidade. Porque será que, ainda hoje, com o português como língua oficial, na Guiné, só 16% da população fala e escreve português (correctamente?)?.
Teremos que aceitar razões tácticas e todas as outras: estratégicas, económicas, políticas (seria a guerra possível na conjuntura mundial actual) sociológicas e até antropológicas. Estamos a analisar um fenómeno. Estamos no campo da História e não no campo da moral ou no divã do psiquiatra.
Tê-la-ão perdido os políticos, tê-la-ão perdido uns quantos militares… Claro camarada! Mas a “guerra” é um fenómeno total e os países funcionam com políticos que servem o poder económico e determinam a actuação dos dignitários do sistema (de todas as condições, tipos e níveis) que, à medida que se desce na hierarquia fazem, os trabalhos de cada vez mais maior pormenor, com tudo o que esta expressão possa significar de bom e de mau.
A História faz-se quando os factos começam a ficar frios e, por isso mais exactos e compreensíveis. Ainda agora andamos a re-estudar as Invasões Francesas, ocorridas há exactamente 200 anos, e temos chegado à conclusão que foram tudo menos um jogo Portugal – França a contar para a Taça dos Países com Guerra…
Claro que os opinadores não podem ser aceites, especialmente aqueles que, não tendo estado no terreno, vêm agora explicar como é que se devia ter feito. Como se os povos reagissem “na maior ordem” nas alturas de tensão e crise e as sociedades funcionassem de acordo com as “directivas superiores”… (Se assim fosse a vida dos sociólogos era uma monotonia…) Onde é que isso aconteceu? Não te esqueças que nos degladiávamos havia 13 anos e, por vezes de forma muito dura.
Ter estado e com grande entrega não é, por si só, uma vitória na guerra. É apenas a conduta própria dos homens jovens, por isso mais generosos. E a entrega é própria de quem tem certezas, não esqueças. Nós talvez as tivéssemos, pois nunca tínhamos tido tempo para as questionar, digo eu, claro…
Não creio que alguma vez tenhamos deixado de olhar para o inimigo como inimigo, nem vejo que a recíproca não seja verdadeira, nem havia razões para que assim não fosse. Suponhamos que o Inimigo não passava de um bando de terroristas criminosos. Ao serem capturados deveriam ter sido julgados e condenados, nem que fosse num julgamento imperfeito e tendencioso. E foram-no? Não. Eles eram soldados inimigos. Claro que há maneiras e “maneiras” de tratar o inimigo, mas isso não cabe aqui e agora… Não considero que tenhamos vencido porque hoje realmente não vemos aquele povo e aquela Nação como inimiga. Era imoral e irracional se assim fosse. Devemos vê-la como uma Nação e um povo que gostaríamos – e até gostamos – de ajudar a ser mais fraterna, mais solidária, mais coesa e sobretudo mais feliz. Mas isso não nos dá a vitória. Custa-nos, ver tantos mortos de um lado e de outro, e afinal não vemos um povo mais independente, um povo mais feliz. É o nosso comportamento de homens civilizados a funcionar e nada mais. Claro que a culpa não é só deles, mas também daqueles que não souberam fazer tudo o que estava ao seu alcance para que a Nação se construísse na paz e no progresso. Esta afirmação aplica-se a qualquer outro povo/país flagelado com lutas fratricidas e assolado pelas diferentes formas de miséria, mas convém não esquecer que quem ganha uma Bandeira e uma forma independente de estar no mundo é responsável a partir daí.
Já agora, camarada, lembro-te que as Bandeiras ganham-se contra alguém e é muito raro que essas vitórias não sejam acompanhadas de violência. A História prova-o. Daqui que eu não possa aceitar que nós ganhámos a guerra e que o PAIGC ganhou a guerra.
Só havia dois beligerantes: nós (Portugal) e a Guiné (representada pelo PAIGC). Não entendo como é que quem veio a perdeu total e completamente. Os poderes guineenses independentes só teriam que conquistar o respeito do seu povo – o que é o mais lógico – e os poderes portugueses não eram, e bem, chamados a intervir, para além da ajuda que lhes fosse pedida. Esta sim deveria, talvez, ter sido dada com o estatuto de Nação “mais favorecida”. Mas já passaram 35 anos…
Estou absolutamente de acordo quando afirmas que neste espaço, nos convívios, encontramos espaço para falar do que não falávamos e isso é a razão porque nos devemos manter unidos à volta deste mais que projecto, que nos une até nas divisões próprias do pensar de cada homem, mas que nos leva a fazer a história, feita das nossas histórias, que um dia poderá ser a verdadeira história da guerra da Guiné e não aquela que alguns que sobre ela escrevem querem que seja, por razões que apenas lhes assistem a eles, e com isto não me estou a referir a ninguém em particular, que fique bem expresso.
Também a mim me resta-me deixar-te o abraço de quem contigo viveu momentos que nunca esquecerá e a todos os que os viveram também por aquela Guiné dos nossos sonhos.
Um Abraço do
António Costa
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)
(**) Vd. poste de 13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)
(***) Vd. poste de 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)
Caro Camarada
Aqui vai a resposta:
Primeiro quero dizer que para além da guarda das memórias temos o dever de interpretar o que sucedeu. Temos o dever de o analisar fria e logicamente, mesmo que as conclusões não sejam aquelas que mais nos agradariam. Julgo que é isto que o blog pretende ao dizer que temos que falar antes que outros o façam por nós. Enquanto intervenientes, mesmo “a quente”, teremos uma perspectiva mais correcta do que os vindouros, mesmo bem intencionados, que só poderão especular sobre o que possa ter acontecido. Já hoje aparecem por aí umas teses de mestrado e doutoramento, escritas por amadores que terminam por conclusões absolutamente inaceitáveis. Podemos estar certos de que o tratamento de que seremos alvo vai ser muito mais boçal, insensível e injusto do hoje, quando, entre nós, uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez, outros que possa ter sido de outro modo ou nem tanto... Temos uma vantagem: mesmo com uma visão sempre parcial, quiçá imperfeita, anima-nos a experiência e essa não se transmite.
Começava por pedir que consultasses o POST 4801 (***) da autoria do Vitor Junqueira que trata dos que fugiram e explicita bem o que eu quis dizer no meu post.
Curiosamente, o número de desertores[1]é surpreendentemente baixo, quer se considerem os que o fizeram já nos TO, quer se considerem os que desertaram ainda nas unidades de Portugal (faço apelo à vossa memória para que se recordem quantos desertaram efectivamente nas unidades onde foram prestando serviço). Não estou a incluir nestes os que desertavam – especialmente praças – para trabalhar e ganhar algum dinheiro, para manterem as famílias no limiar da sobrevivência e que, depois se apresentavam. Tive casos destes. Os jovens – adolescentes, às vezes – que saíam do país antes ou depois de terem “dado o nome” (e foram bastantes, não sei quantos) não desertaram fugiram e, muitos deles talvez tenham saltado da frigideira para o fogo…
Por outro lado, quem se opõem a qualquer coisa pode optar por se afastar, simplesmente, ou hostilizar e lutar contra essa coisa de modo mais ou menos empenhado. Temos exemplos como do Ten. Veloso da FAP que desertou, em Moçambique, com avião, mecânico e tudo… É também uma forma de valentia. Não creio que a apresentação às autoridades e, com lealdade e valentia, informá-las de que se não faz isto ou aquilo tivesse sido uma solução. As “autoridades” eram desonestas e viciosas na sua acção e além de distorcerem o acto e de o apresentaram como algo de ignóbil, triturariam o idealista que se dispusesse a desafiá-las. Não tenho conhecimento de alguém que o tenha feito e se no no estrangeiro o fizeram alguma vez… aqui tal não era possível. Não nos esqueçamos dos tempos que então se viviam. Às vezes parece que as pessoas se esquecem. Os povos têm má memória, mas também não abusemos…
Quando analisamos o desfeche de uma guerra, temos de ser objectivos e aceitar o sucedido. Hipoteticamente podemos determinar causas. No nosso caso particular, estou convencido de que aquilo a que chamamos “guerra” foi um fenómeno sociológico que decorreu em Portugal e que terminou com a independência de várias fracções do país relativamente ao poder central. Talvez fosse boa ideia perguntarmo-nos porque é que havia um “poder central” e se este era parte da solução ou do problema? Qual a relação desse poder com as diferentes possessões? Porque é que mil escudos valiam mil e cem “pesos”/escudos e mil pesos valiam apenas 900 escudos? E outras questões que, na altura, começámos a levantar, uma vez em contacto coma realidade. Porque será que, ainda hoje, com o português como língua oficial, na Guiné, só 16% da população fala e escreve português (correctamente?)?.
Teremos que aceitar razões tácticas e todas as outras: estratégicas, económicas, políticas (seria a guerra possível na conjuntura mundial actual) sociológicas e até antropológicas. Estamos a analisar um fenómeno. Estamos no campo da História e não no campo da moral ou no divã do psiquiatra.
Tê-la-ão perdido os políticos, tê-la-ão perdido uns quantos militares… Claro camarada! Mas a “guerra” é um fenómeno total e os países funcionam com políticos que servem o poder económico e determinam a actuação dos dignitários do sistema (de todas as condições, tipos e níveis) que, à medida que se desce na hierarquia fazem, os trabalhos de cada vez mais maior pormenor, com tudo o que esta expressão possa significar de bom e de mau.
A História faz-se quando os factos começam a ficar frios e, por isso mais exactos e compreensíveis. Ainda agora andamos a re-estudar as Invasões Francesas, ocorridas há exactamente 200 anos, e temos chegado à conclusão que foram tudo menos um jogo Portugal – França a contar para a Taça dos Países com Guerra…
Claro que os opinadores não podem ser aceites, especialmente aqueles que, não tendo estado no terreno, vêm agora explicar como é que se devia ter feito. Como se os povos reagissem “na maior ordem” nas alturas de tensão e crise e as sociedades funcionassem de acordo com as “directivas superiores”… (Se assim fosse a vida dos sociólogos era uma monotonia…) Onde é que isso aconteceu? Não te esqueças que nos degladiávamos havia 13 anos e, por vezes de forma muito dura.
Ter estado e com grande entrega não é, por si só, uma vitória na guerra. É apenas a conduta própria dos homens jovens, por isso mais generosos. E a entrega é própria de quem tem certezas, não esqueças. Nós talvez as tivéssemos, pois nunca tínhamos tido tempo para as questionar, digo eu, claro…
Não creio que alguma vez tenhamos deixado de olhar para o inimigo como inimigo, nem vejo que a recíproca não seja verdadeira, nem havia razões para que assim não fosse. Suponhamos que o Inimigo não passava de um bando de terroristas criminosos. Ao serem capturados deveriam ter sido julgados e condenados, nem que fosse num julgamento imperfeito e tendencioso. E foram-no? Não. Eles eram soldados inimigos. Claro que há maneiras e “maneiras” de tratar o inimigo, mas isso não cabe aqui e agora… Não considero que tenhamos vencido porque hoje realmente não vemos aquele povo e aquela Nação como inimiga. Era imoral e irracional se assim fosse. Devemos vê-la como uma Nação e um povo que gostaríamos – e até gostamos – de ajudar a ser mais fraterna, mais solidária, mais coesa e sobretudo mais feliz. Mas isso não nos dá a vitória. Custa-nos, ver tantos mortos de um lado e de outro, e afinal não vemos um povo mais independente, um povo mais feliz. É o nosso comportamento de homens civilizados a funcionar e nada mais. Claro que a culpa não é só deles, mas também daqueles que não souberam fazer tudo o que estava ao seu alcance para que a Nação se construísse na paz e no progresso. Esta afirmação aplica-se a qualquer outro povo/país flagelado com lutas fratricidas e assolado pelas diferentes formas de miséria, mas convém não esquecer que quem ganha uma Bandeira e uma forma independente de estar no mundo é responsável a partir daí.
Já agora, camarada, lembro-te que as Bandeiras ganham-se contra alguém e é muito raro que essas vitórias não sejam acompanhadas de violência. A História prova-o. Daqui que eu não possa aceitar que nós ganhámos a guerra e que o PAIGC ganhou a guerra.
Só havia dois beligerantes: nós (Portugal) e a Guiné (representada pelo PAIGC). Não entendo como é que quem veio a perdeu total e completamente. Os poderes guineenses independentes só teriam que conquistar o respeito do seu povo – o que é o mais lógico – e os poderes portugueses não eram, e bem, chamados a intervir, para além da ajuda que lhes fosse pedida. Esta sim deveria, talvez, ter sido dada com o estatuto de Nação “mais favorecida”. Mas já passaram 35 anos…
Estou absolutamente de acordo quando afirmas que neste espaço, nos convívios, encontramos espaço para falar do que não falávamos e isso é a razão porque nos devemos manter unidos à volta deste mais que projecto, que nos une até nas divisões próprias do pensar de cada homem, mas que nos leva a fazer a história, feita das nossas histórias, que um dia poderá ser a verdadeira história da guerra da Guiné e não aquela que alguns que sobre ela escrevem querem que seja, por razões que apenas lhes assistem a eles, e com isto não me estou a referir a ninguém em particular, que fique bem expresso.
Também a mim me resta-me deixar-te o abraço de quem contigo viveu momentos que nunca esquecerá e a todos os que os viveram também por aquela Guiné dos nossos sonhos.
Um Abraço do
António Costa
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 12 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4672: Blogoterapia (117): Quem somos nós? (António J. Pereira da Costa)
(**) Vd. poste de 13 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4680: Resposta ao amigo Pereira da Costa (J. Mexia Alves)
(***) Vd. poste de 8 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)
Guiné 63/74 - P4812: Contributo sobre a CCAÇ 4942/72 (António J. Sampaio) (2): "Os primeiros dias"
1. Mensagem de António Sampaio, ex-Alf Mil na CCAÇ 15 e Cap Mil na CCAÇ 4942/72, Barro, 1973/74, com data de 6 de Agosto de 2009:
Caro Camarada
Envio hoje mais uma página para a história da 4942/72 que eu conheci.
Se acharem que não deve ser publicada não publiquem. Em consciência devo estas recordações aos camaradas dessa Companhia com quem convivi.
Gostava que estas linhas, fizessem acordar outros que também com eles viveram.
Enquanto me permitirem, darei conta de figuras como o Rui (cabo da arrecadação e o melhor apontador de morteiro - por instinto que conheci), o Prioste (mecânico que chegou a chefe de mecânicos da Fiat no Funchal – segundo creio), o Mosca (melhor pescador que conheci – à granada ofensiva), o Silva das transmissões (que nos ia matando numa crise de total descontrolo – era dos forcados de Vila Franca de Xira) e de muitos outros que recordo como parceiros de bons e maus momentos.
Se me quiser juntar à lista agradeço, e se a puder editar também por apelidos então era ronco mesmo.
Um abraço e até um dia destes ao café se andar cá por Leça
António Sampaio
Contributo sobre a CCAÇ 4942/72
2.ª Parte (*)
“Os primeiros dias”
O ambiente era totalmente irreal para uma situação de guerra e se de facto o 25 de Abril já tinha ocorrido, não é menos verdade que se continuava a fazer operações. E se os contactos não tinham a violência a que todos estávamos habituados, não tinham simplesmente deixado de acontecer.
Não foi fácil a alguém, com a formação militar a que tinha sido sujeito desde os 10 anos de idade, perceber o que ali se passava.
Ainda hoje não tenho a certeza absoluta do que se passou. Penso conhecer alguma da verdade mas tenho igual certeza de não a conhecer toda.
Continuo no entanto firmemente convencido de que não há maus soldados, somente podem ser mais ou menos difíceis. Pode haver, isso sim, comandos melhores ou piores, ou mais ou menos adaptados ao pessoal que comandavam.
Foi talvez uma falta grave nunca se ter feito essa avaliação. Quantas vidas se teriam poupado?
Passado este aparte.
Tentou o Alf Lima explicar a situação e o melindre e dificuldade operacional que representava, pois nem garantia a segurança das instalações e do pessoal.
Como o fim da tarde ocorreu sem demora, informaram-me que era hora de jantar e que estavam à espera que o Alf Lima desse autorização.
Com o respeito que sempre lhe reconheci e que se transformou em amizade, séria, perguntou-me se podia autorizar o inicio da refeição e se eu próprio não queria jantar também. O que de facto aconteceu.
Primeiro choque – numa unidade em que estavam 1 capitão e 3 alferes, os alferes não tinham autorização de se sentar à mesa com o capitão. Mesas separadas e poucas conversas era a norma, como fui informado.
Convidei o alferes Lima para me acompanhar e perguntei pelos outros alferes. Só um estava presente e foi-me nessa altura apresentado, à civil. O outro encontrava-se destacado em Ingoré como fui informado. Mas, enfim, já fomos 3 à mesa e nunca mais deixou de ser assim. Felizmente!!!!!!!!!!!!!!!!!
A classe de sargentos, também fazia segregação. O 1.º Sargento sentava-se sozinho à mesa (o exemplo vinha de cima), mas para mostrar a incongruência da situação, passada a refeição sentava-se à mesa da lerpa, onde profissionalmente limpava o furriel mecânico que ali deixava tudo o que lá ganhava. Enfim...
Uma noite de descanso refez as forças para enfrentar o desafio.
Sempre dormi bem, até bem demais (ainda em Mansoa, na CCAÇ 15, durante um alto, adormeci no trilho e só fui acordado por um fiel balanta, caso contrário se calhar ficava numa situação difícil.
Recolhidas as informações que quiseram dar-me e feita a analise da situação, confirmei a ideia inicial de que estava num buraco.
A análise às fichas do pessoal indicava uma Companhia que parecia mais um depósito disciplinar do que uma unidade operacional. Castigos em cima de castigos era o que se via mais nas notas de assento. Não podia ser verdade. Admitia dois ex-desertores, alguns ex-refractários, algumas porradas no CTIG, mas tantas?
Tinha de haver alguma razão para isso. Urgia descobrir qual e rapidamente senão corria o risco de ainda piorar a situação.
Apresentei-me a uma Companhia devidamente formada antes de almoço e após curta apresentação, seguida por muita desconfiança, pareceu-me que o primeiro passo para a normalização da situação, estava dado.
Nessa tarde os camaradas alferes refizeram as escalas de vigilância e reforços dos postos da breda e dos 81, que por incrível que pareça não eram guarnecidos desde a crise.
Houve que normalizar o rancho, as messes e os bares.
Parece mentira? Foi o que me pareceu a mim também na altura.
Havia ranchos diferentes para oficiais e sargentos e praças.
Havia messe de oficiais, outra de sargentos e o refeitório das praças. De notar que havia a mesa do capitão e a dos alferes. Nos sargentos o 1.º comia em mesa separada dos furriéis.
No bar, uma tabanca a servir para o efeito, havia separação idêntica à da messe, não sendo os alferes convidados a co-habitar com o capitão. (não sei se na lerpa o senhor não estaria presente pois o 1.º precisava de ganhar a vida e ganhava...)
Tudo isto tinha sido determinado superiormente!!!
Para abreviar...
O maior escândalo rebentou quando sugeri que se fizesse um torneio de futebol entre os 3 GCOMBs, encarregando-me eu de tentar pôr de pé uns joguinhos de volei (onde me sentia mais à vontade, pois nunca fui de futebóis) em que eu também participava num campo que com voluntários improvisámos na placa do heliporto. Jogar ao lado de soldados não era considerado conveniente num passado próximo e criou grande expectativa.
Como não podia deixar de ser, ajudou a quebrar a barreira de gelo e a começar aquilo que se tornou numa sã camaradagem, confiança e respeito, entre todos.
Passado poucos dias, comovi-me quando pedi um grupo de voluntários para uma missão e a Companhia em peso deu um passo em frente.
ESTAVAMOS TODOS NO MESMO BARCO. COMEÇAVAMOS A SER UMA FAMÍLIA.
__________
Nota de CV:
(*) Primeira parte do "Contributo sobre a CCAÇ 4942/72, integrado no poste de apresentação do nosso camarada António Sampaio de 9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4662: Tabanca Grande (159): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e Cap Mil da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74)
Caro Camarada
Envio hoje mais uma página para a história da 4942/72 que eu conheci.
Se acharem que não deve ser publicada não publiquem. Em consciência devo estas recordações aos camaradas dessa Companhia com quem convivi.
Gostava que estas linhas, fizessem acordar outros que também com eles viveram.
Enquanto me permitirem, darei conta de figuras como o Rui (cabo da arrecadação e o melhor apontador de morteiro - por instinto que conheci), o Prioste (mecânico que chegou a chefe de mecânicos da Fiat no Funchal – segundo creio), o Mosca (melhor pescador que conheci – à granada ofensiva), o Silva das transmissões (que nos ia matando numa crise de total descontrolo – era dos forcados de Vila Franca de Xira) e de muitos outros que recordo como parceiros de bons e maus momentos.
Se me quiser juntar à lista agradeço, e se a puder editar também por apelidos então era ronco mesmo.
Um abraço e até um dia destes ao café se andar cá por Leça
António Sampaio
Contributo sobre a CCAÇ 4942/72
2.ª Parte (*)
“Os primeiros dias”
O ambiente era totalmente irreal para uma situação de guerra e se de facto o 25 de Abril já tinha ocorrido, não é menos verdade que se continuava a fazer operações. E se os contactos não tinham a violência a que todos estávamos habituados, não tinham simplesmente deixado de acontecer.
Não foi fácil a alguém, com a formação militar a que tinha sido sujeito desde os 10 anos de idade, perceber o que ali se passava.
Ainda hoje não tenho a certeza absoluta do que se passou. Penso conhecer alguma da verdade mas tenho igual certeza de não a conhecer toda.
Continuo no entanto firmemente convencido de que não há maus soldados, somente podem ser mais ou menos difíceis. Pode haver, isso sim, comandos melhores ou piores, ou mais ou menos adaptados ao pessoal que comandavam.
Foi talvez uma falta grave nunca se ter feito essa avaliação. Quantas vidas se teriam poupado?
Passado este aparte.
Tentou o Alf Lima explicar a situação e o melindre e dificuldade operacional que representava, pois nem garantia a segurança das instalações e do pessoal.
Como o fim da tarde ocorreu sem demora, informaram-me que era hora de jantar e que estavam à espera que o Alf Lima desse autorização.
Com o respeito que sempre lhe reconheci e que se transformou em amizade, séria, perguntou-me se podia autorizar o inicio da refeição e se eu próprio não queria jantar também. O que de facto aconteceu.
Primeiro choque – numa unidade em que estavam 1 capitão e 3 alferes, os alferes não tinham autorização de se sentar à mesa com o capitão. Mesas separadas e poucas conversas era a norma, como fui informado.
Convidei o alferes Lima para me acompanhar e perguntei pelos outros alferes. Só um estava presente e foi-me nessa altura apresentado, à civil. O outro encontrava-se destacado em Ingoré como fui informado. Mas, enfim, já fomos 3 à mesa e nunca mais deixou de ser assim. Felizmente!!!!!!!!!!!!!!!!!
A classe de sargentos, também fazia segregação. O 1.º Sargento sentava-se sozinho à mesa (o exemplo vinha de cima), mas para mostrar a incongruência da situação, passada a refeição sentava-se à mesa da lerpa, onde profissionalmente limpava o furriel mecânico que ali deixava tudo o que lá ganhava. Enfim...
Uma noite de descanso refez as forças para enfrentar o desafio.
Sempre dormi bem, até bem demais (ainda em Mansoa, na CCAÇ 15, durante um alto, adormeci no trilho e só fui acordado por um fiel balanta, caso contrário se calhar ficava numa situação difícil.
Recolhidas as informações que quiseram dar-me e feita a analise da situação, confirmei a ideia inicial de que estava num buraco.
A análise às fichas do pessoal indicava uma Companhia que parecia mais um depósito disciplinar do que uma unidade operacional. Castigos em cima de castigos era o que se via mais nas notas de assento. Não podia ser verdade. Admitia dois ex-desertores, alguns ex-refractários, algumas porradas no CTIG, mas tantas?
Tinha de haver alguma razão para isso. Urgia descobrir qual e rapidamente senão corria o risco de ainda piorar a situação.
Apresentei-me a uma Companhia devidamente formada antes de almoço e após curta apresentação, seguida por muita desconfiança, pareceu-me que o primeiro passo para a normalização da situação, estava dado.
Nessa tarde os camaradas alferes refizeram as escalas de vigilância e reforços dos postos da breda e dos 81, que por incrível que pareça não eram guarnecidos desde a crise.
Houve que normalizar o rancho, as messes e os bares.
Parece mentira? Foi o que me pareceu a mim também na altura.
Havia ranchos diferentes para oficiais e sargentos e praças.
Havia messe de oficiais, outra de sargentos e o refeitório das praças. De notar que havia a mesa do capitão e a dos alferes. Nos sargentos o 1.º comia em mesa separada dos furriéis.
No bar, uma tabanca a servir para o efeito, havia separação idêntica à da messe, não sendo os alferes convidados a co-habitar com o capitão. (não sei se na lerpa o senhor não estaria presente pois o 1.º precisava de ganhar a vida e ganhava...)
Tudo isto tinha sido determinado superiormente!!!
Para abreviar...
O maior escândalo rebentou quando sugeri que se fizesse um torneio de futebol entre os 3 GCOMBs, encarregando-me eu de tentar pôr de pé uns joguinhos de volei (onde me sentia mais à vontade, pois nunca fui de futebóis) em que eu também participava num campo que com voluntários improvisámos na placa do heliporto. Jogar ao lado de soldados não era considerado conveniente num passado próximo e criou grande expectativa.
Como não podia deixar de ser, ajudou a quebrar a barreira de gelo e a começar aquilo que se tornou numa sã camaradagem, confiança e respeito, entre todos.
Passado poucos dias, comovi-me quando pedi um grupo de voluntários para uma missão e a Companhia em peso deu um passo em frente.
ESTAVAMOS TODOS NO MESMO BARCO. COMEÇAVAMOS A SER UMA FAMÍLIA.
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Nota de CV:
(*) Primeira parte do "Contributo sobre a CCAÇ 4942/72, integrado no poste de apresentação do nosso camarada António Sampaio de 9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4662: Tabanca Grande (159): António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e Cap Mil da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74)
Guiné 63/74 - P4811: Informações adicionais ao Poste 4800 (Hélder Sousa)
Hélder Valério (*), ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72, deixou este comentário no poste "Guiné 63/74 - P4800: Em busca de... (85) O Fiat do..." (**):
Caros amigos e camaradas, em particular o José Rocha, das Transmissões do BART 2875 de Piche.
Não sou a pessoa mais indicada para responder às dúvidas que ele apresenta e mesmo um ou outro aspecto não entendo bem.
No entanto vou tentar alinhar algumas informações/respostas que podem ajudar.
Na área onde o José Rocha esteve, Piche, já pudemos ler aqui no Blogue que a organização territorial mudou à medida da evolução do esforço de guerra e das suas vicissitudes. Não indo mais atrás no tempo, temos que o BART 2857, esteve na zona de 68 a 70, sendo depois substituído de 70 a 72 pelo BCAV 2922, o qual, por sua vez foi substituído pelo BCAÇ 3883. Os dois últimos Batalhões tinham como área, para além da "sede", Piche, Companhias colocadas em Buruntuma e Canquelifá e seus Destacamentos, sendo que o do José Rocha também tinha inicialmente Bajocunda, salvo erro.
Também se fala muito de Copá, que pertencia organizacionalmente a Pirada, mas que, segundo o livro/relato da história da CCAÇ 3545 feito e publicado por Fernando Sousa Henriques, Alf Mil Op Esp daquela Unidade, como ficava no limite da sua área de intervenção, era algumas vezes apoiada por eles.
Sobre os "comentários sobre Canquelifá de 72/74 feito por pessoas que nunca lá puseram os pés", não sei bem a que é que o José Rocha se refere, mas é realmente verdade que há um P1216 (***) de António Santos, das Transmissões do Pelotão de Morteiros 4574/72 que na época estava adstrito ao Batalhão sediado em Nova Lamego e que diz: "Copá foi extinto em 14 de Fevereiro de 1974, após violentas flagelações, Mareué idem em 11 de Março de 1974, mas o aquartelamento mais sacrificado foi o de Canquelifá, que sofreu flagelações a toda a hora. Neste caso a arma mais utilizada foi o morteiro 120, e houve abrigos que não resistiram.
A 20 de Março de 1974, entrou em cena o Batalhão de Comandos Africanos, com as três Companhias que dele faziam parte integrante. Saíram de Nova Lamego em coluna composta por viaturas militares e civis e dirigiram-se para o local. A operação durou 3 dias, de 21 a 23 de Março 1974. Segundo os canhenhos militares, capturaram 3 Morteiros 120, 1 RPG, 2 espingardas, 367 granadas de Morteiro e deixaram 26 mortos do lado IN (do nosso lado nada dizem)...
Mas cá o rapaz, no dia 22 [de Março de 1974], como não fazia nada, e porque o condutor da ambulância era do meu pelotão e foi chamado à pista, eu fui com ele. Chegados ao local, era um vaivém de helicópteros que traziam mortos e feridos. Eu dei uma mãozinha para pegar nas macas. Retirava dos helis e, segundo instruções do médico, ora pousava na pista (estava morto), ora colocava num Dakota que estava logo ali (estava muito ferido)... Vi pernas destroçadas por estilhaços de não sei de quê!"
Calculo que a referência aos tais "comentários sobre Canquelifá por pessoas que nunca lá puseram os pés" seja, de facto, retativa ao que o António Santos relata, mas fico sem saber se o que o José Rocha pretende é algum tipo de esclarecimento sobre o que o António Santos diz, por se estar a falar dum local que em tempos anteriores tinha pertencido à área de acção do Batalhão do José Rocha e ele, José Rocha, não ter tido conhecimento (o que o A. Santos refere é passado em Março de 74...) ou porque a "coisa" lhe parece "mal contada".
Nessa época eu também já não estava na Guiné, por isso só posso "ajudar" relatando o que a propósito está no tal livro com a história da CCAÇ 3545, Companhia que estava em Canquelifá, e que diz, para esse dia:
"A 22 de Março, pelas 08H30, um grupo IN, estimado em mais de 200 elementos, emboscou uma coluna constituída por duas Chaimites, uma White, três Berliet e quatro Unimog, no itinerário Piche-Nova Lamego, na região de Bentem, causando às NT 6 mortos, 15 feridos graves e 3 feridos ligeiros, que se discriminam a seguir".
No livro referido ("No Ocaso da Guerra do Ultramar", de Fernando de Sousa Henriques) apresentam-se então os nomes dos vitimados, que foram:
- mortos:
Fur. Manuel Joaquim Sá Soares, responsável pela Chaimite;
Fur. José António Teixeira, responsável pela White;
Sold. Vítor Manuel Jesus Paiva;
Sold. João da Costa Araújo;
Sold. Bambo Nanqui;
Sold. Bailo Baldé.
- feridos graves:
Fur.Carlos Manuel Fanado (ficou sem as duas pernas);
Fur. Carlos M. Charifo;
Fur. Cherno Jaló;
1.º Cabo Manuel da Silva Saavedra;
1.º Cabo Silvino Neto de Matos;
1.º Cabo José Bacar Sané;
Sol. Adelino Dias;
Sold. Numar Camará;
Sold. Carlos Alberto Queba;
Sold. Braima Balde;
Sold. Seco Maru Baldé;
Sold. Rachide Bari;
Sold. Ingala Embaló;
Sold. Pedro Dias;
Sold. Ba Turé.
- feridos ligeiros:
Fur. Pedro Manuel dos Santos;
Sold. Joaquim Rolando Pinto;
Sold. Domingos Dias Salgado.
Após a listagem das nossas baixas, o relato remata com "nesta forte emboscada, em que o IN, que se encontrava instalado do lado Sul da estrada e com elementos seus em cima das árvores, sujeitou toda a coluna a intenso fogo de RPG-2 e RPG-7, assistiu-se, logo de início, à destruição de 1 viarura Chaimite, que ardeu juntamente com o condutor e o Furriel que a comandava, de 1 White e de 1 Berliet. O IN capturou ainda 3 espingardas G3, 1 metralhadora HK21 e 1 Racal TR-28. De registar o facto de o 1.º Cabo Augusto Nunes da Graça ter resgatado da Chaimite, já em chamas, o Capitão Fernando Ferreira e o Furriel Pedro Santos".
Espero que estes dados possam ajudar o António Santos a dar corpo à notícia que tinha dado antes sobre as consequentes evacuações a partir de Nova Lamego e que possam também satisfazer as dúvidas do José Rocha.
Aproveito para relembrar o José Rocha que ao tempo dos acontecimentos acima descritos a estrada Piche-Nova Lamego já era toda alcatroada e bem desmatada em ambos os lados, o que dava uma (falsa) sensação de segurança, pela ideia que se tinha que seria possível ver á distância qualquer problema que o IN eventualmente pretendesse colocar.
Isto que acima relatei foi o que aconteceu em parte do 1.º trimestre de 74, sendo que no que diz respeito aos tempos de 70-72, ou seja do Batalhão que sucedeu ao do José Rocha, isso já está no que o Francisco Palma escreveu.
No que diz respeito à questão do Fiat abatido, na zona, tudo o que li, no Blogue e no livro que dei conta, foi de facto em 31 de Janeiro de 74. O mês de Março foi também muitas vezes indicado como um mês funesto para a nossa FA, por força dos abates de Fiat's, mas em 1973, nunca vi nada referido a 74, mas também não consigo ler tudo.
Relativamente à história do piloto do avião abatido em 31 de Janeiro, que andou pelo Senegal, utilizou bicicleta, passou por Dunane e foi até Piche, já foi tudo contado, recontado e reafirmado.
Espero ter ajudado.
Um abraço
Hélder S.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 27 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4593: Controvérsias (22): As influências dos grandes mestres (Hélder Silva / José Brás)
(**) Vd. poste de 8 de Agsoto de 2009 > Guiné 63/74 - P4800: Em busca de... (85) O Fiat do Pilav Gil foi abatido em Janeiro ou em Março de 1974? (José Rocha)
(***) Vd. poste de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)
Caros amigos e camaradas, em particular o José Rocha, das Transmissões do BART 2875 de Piche.
Não sou a pessoa mais indicada para responder às dúvidas que ele apresenta e mesmo um ou outro aspecto não entendo bem.
No entanto vou tentar alinhar algumas informações/respostas que podem ajudar.
Na área onde o José Rocha esteve, Piche, já pudemos ler aqui no Blogue que a organização territorial mudou à medida da evolução do esforço de guerra e das suas vicissitudes. Não indo mais atrás no tempo, temos que o BART 2857, esteve na zona de 68 a 70, sendo depois substituído de 70 a 72 pelo BCAV 2922, o qual, por sua vez foi substituído pelo BCAÇ 3883. Os dois últimos Batalhões tinham como área, para além da "sede", Piche, Companhias colocadas em Buruntuma e Canquelifá e seus Destacamentos, sendo que o do José Rocha também tinha inicialmente Bajocunda, salvo erro.
Também se fala muito de Copá, que pertencia organizacionalmente a Pirada, mas que, segundo o livro/relato da história da CCAÇ 3545 feito e publicado por Fernando Sousa Henriques, Alf Mil Op Esp daquela Unidade, como ficava no limite da sua área de intervenção, era algumas vezes apoiada por eles.
Sobre os "comentários sobre Canquelifá de 72/74 feito por pessoas que nunca lá puseram os pés", não sei bem a que é que o José Rocha se refere, mas é realmente verdade que há um P1216 (***) de António Santos, das Transmissões do Pelotão de Morteiros 4574/72 que na época estava adstrito ao Batalhão sediado em Nova Lamego e que diz: "Copá foi extinto em 14 de Fevereiro de 1974, após violentas flagelações, Mareué idem em 11 de Março de 1974, mas o aquartelamento mais sacrificado foi o de Canquelifá, que sofreu flagelações a toda a hora. Neste caso a arma mais utilizada foi o morteiro 120, e houve abrigos que não resistiram.
A 20 de Março de 1974, entrou em cena o Batalhão de Comandos Africanos, com as três Companhias que dele faziam parte integrante. Saíram de Nova Lamego em coluna composta por viaturas militares e civis e dirigiram-se para o local. A operação durou 3 dias, de 21 a 23 de Março 1974. Segundo os canhenhos militares, capturaram 3 Morteiros 120, 1 RPG, 2 espingardas, 367 granadas de Morteiro e deixaram 26 mortos do lado IN (do nosso lado nada dizem)...
Mas cá o rapaz, no dia 22 [de Março de 1974], como não fazia nada, e porque o condutor da ambulância era do meu pelotão e foi chamado à pista, eu fui com ele. Chegados ao local, era um vaivém de helicópteros que traziam mortos e feridos. Eu dei uma mãozinha para pegar nas macas. Retirava dos helis e, segundo instruções do médico, ora pousava na pista (estava morto), ora colocava num Dakota que estava logo ali (estava muito ferido)... Vi pernas destroçadas por estilhaços de não sei de quê!"
Calculo que a referência aos tais "comentários sobre Canquelifá por pessoas que nunca lá puseram os pés" seja, de facto, retativa ao que o António Santos relata, mas fico sem saber se o que o José Rocha pretende é algum tipo de esclarecimento sobre o que o António Santos diz, por se estar a falar dum local que em tempos anteriores tinha pertencido à área de acção do Batalhão do José Rocha e ele, José Rocha, não ter tido conhecimento (o que o A. Santos refere é passado em Março de 74...) ou porque a "coisa" lhe parece "mal contada".
Nessa época eu também já não estava na Guiné, por isso só posso "ajudar" relatando o que a propósito está no tal livro com a história da CCAÇ 3545, Companhia que estava em Canquelifá, e que diz, para esse dia:
"A 22 de Março, pelas 08H30, um grupo IN, estimado em mais de 200 elementos, emboscou uma coluna constituída por duas Chaimites, uma White, três Berliet e quatro Unimog, no itinerário Piche-Nova Lamego, na região de Bentem, causando às NT 6 mortos, 15 feridos graves e 3 feridos ligeiros, que se discriminam a seguir".
No livro referido ("No Ocaso da Guerra do Ultramar", de Fernando de Sousa Henriques) apresentam-se então os nomes dos vitimados, que foram:
- mortos:
Fur. Manuel Joaquim Sá Soares, responsável pela Chaimite;
Fur. José António Teixeira, responsável pela White;
Sold. Vítor Manuel Jesus Paiva;
Sold. João da Costa Araújo;
Sold. Bambo Nanqui;
Sold. Bailo Baldé.
- feridos graves:
Fur.Carlos Manuel Fanado (ficou sem as duas pernas);
Fur. Carlos M. Charifo;
Fur. Cherno Jaló;
1.º Cabo Manuel da Silva Saavedra;
1.º Cabo Silvino Neto de Matos;
1.º Cabo José Bacar Sané;
Sol. Adelino Dias;
Sold. Numar Camará;
Sold. Carlos Alberto Queba;
Sold. Braima Balde;
Sold. Seco Maru Baldé;
Sold. Rachide Bari;
Sold. Ingala Embaló;
Sold. Pedro Dias;
Sold. Ba Turé.
- feridos ligeiros:
Fur. Pedro Manuel dos Santos;
Sold. Joaquim Rolando Pinto;
Sold. Domingos Dias Salgado.
Após a listagem das nossas baixas, o relato remata com "nesta forte emboscada, em que o IN, que se encontrava instalado do lado Sul da estrada e com elementos seus em cima das árvores, sujeitou toda a coluna a intenso fogo de RPG-2 e RPG-7, assistiu-se, logo de início, à destruição de 1 viarura Chaimite, que ardeu juntamente com o condutor e o Furriel que a comandava, de 1 White e de 1 Berliet. O IN capturou ainda 3 espingardas G3, 1 metralhadora HK21 e 1 Racal TR-28. De registar o facto de o 1.º Cabo Augusto Nunes da Graça ter resgatado da Chaimite, já em chamas, o Capitão Fernando Ferreira e o Furriel Pedro Santos".
Espero que estes dados possam ajudar o António Santos a dar corpo à notícia que tinha dado antes sobre as consequentes evacuações a partir de Nova Lamego e que possam também satisfazer as dúvidas do José Rocha.
Aproveito para relembrar o José Rocha que ao tempo dos acontecimentos acima descritos a estrada Piche-Nova Lamego já era toda alcatroada e bem desmatada em ambos os lados, o que dava uma (falsa) sensação de segurança, pela ideia que se tinha que seria possível ver á distância qualquer problema que o IN eventualmente pretendesse colocar.
Isto que acima relatei foi o que aconteceu em parte do 1.º trimestre de 74, sendo que no que diz respeito aos tempos de 70-72, ou seja do Batalhão que sucedeu ao do José Rocha, isso já está no que o Francisco Palma escreveu.
No que diz respeito à questão do Fiat abatido, na zona, tudo o que li, no Blogue e no livro que dei conta, foi de facto em 31 de Janeiro de 74. O mês de Março foi também muitas vezes indicado como um mês funesto para a nossa FA, por força dos abates de Fiat's, mas em 1973, nunca vi nada referido a 74, mas também não consigo ler tudo.
Relativamente à história do piloto do avião abatido em 31 de Janeiro, que andou pelo Senegal, utilizou bicicleta, passou por Dunane e foi até Piche, já foi tudo contado, recontado e reafirmado.
Espero ter ajudado.
Um abraço
Hélder S.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 27 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4593: Controvérsias (22): As influências dos grandes mestres (Hélder Silva / José Brás)
(**) Vd. poste de 8 de Agsoto de 2009 > Guiné 63/74 - P4800: Em busca de... (85) O Fiat do Pilav Gil foi abatido em Janeiro ou em Março de 1974? (José Rocha)
(***) Vd. poste de 27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)
Guiné 64/74 - P4810: ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica” - Páginas 15 a 19 (Magalhães Ribeiro)
1. Do arquivo pessoal, do Eduardo José Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil Op Esp (Ranger) da CCS do BCAÇ 4612/74, Mansoa 1974:
Camaradas,
Para os interessados no conhecimento da documentação, hoje histórica, que circulava entre as hostes do PAIGC, nos anos 70, e constituíam peças da sua escassa bibliografia aplicada na filosofia da acção psicológica sobre os seus seguidores, apoiantes e outros interessados dou, nesta mensagem, continuidade à publicação de um caderno prático utilizado nessa finalidade.
A publicação foi iniciada no poste - P4721 (capa e páginas 1 a 4) e continuada nos postes – P4753 (páginas 5 a 9) e P4799 (páginas 10 a 14).
Neste, seguem-se as páginas 15, 16, 17, 18 e 19, dum total de 28 páginas.
A qualidade de uma ou outra página não é das melhores.
O documento tem inscrito na capa os seguintes dizeres: ”PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.
Camaradas,
Para os interessados no conhecimento da documentação, hoje histórica, que circulava entre as hostes do PAIGC, nos anos 70, e constituíam peças da sua escassa bibliografia aplicada na filosofia da acção psicológica sobre os seus seguidores, apoiantes e outros interessados dou, nesta mensagem, continuidade à publicação de um caderno prático utilizado nessa finalidade.
A publicação foi iniciada no poste - P4721 (capa e páginas 1 a 4) e continuada nos postes – P4753 (páginas 5 a 9) e P4799 (páginas 10 a 14).
Neste, seguem-se as páginas 15, 16, 17, 18 e 19, dum total de 28 páginas.
A qualidade de uma ou outra página não é das melhores.
O documento tem inscrito na capa os seguintes dizeres: ”PAIGC - ANÁLISE DOS TIPOS DE RESISTÊNCIA, 2 - Resistência económica, Aos camaradas participantes no seminário de quadros, realizado de 19 a 24 de Novembro de 1969, (Este texto é escrito a partir de uma gravação das palavras do secretário geral)”.
Um abraço Amigo,
Magalhães Ribeiro
Documentos: © Eduardo José Magalhães Ribeiro (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
8 de Agosto de 2009 > Guiné 64/74 - P4799: ”PAIGC – Análise dos tipos de resistência , 2 - Resistência económica”, Páginas 10 a 14 (Magalhães Ribeiro)
Guiné 63/74 - P4809: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): Fá Mandinga, o único sítio onde tive direito ao luxo de um quarto
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fá Mandinga > CART 2339 (1968/69) > Do álbum fotográfico do Torcato Mendonça, Fotos Falantes II, nº 1: em cima, o quarto do Alf Mil Torcato Mendonça; a meio, o artista, junto à janela; em terceiro lugar, a contar de cima, a ceriomónia do hastear da bandeira... Muitas subunidades passaram por Fá Mandinga, para se ambientarem ao terreno e ao clima da Guiné, antes de seguirem para o seu destino: no caso da CART 2339, foi Monsambo, entre Bambadinca e Xitole, um estratégico aquartelamento construído de raíz pelo Alf Mil Mendonça e seus camaradas da CART 2339.
Fotos: © Torcato Mendonça (2009). Direitos reservados.
Estórias de Mansambo II > Fá Mandinga
por Torcato Mendonça (*)
Finalmente chegaram.
Já a tarde ia alta e Fá Mandinga aí estava. Não parecia um aquartelamento. A entrada tinha a cancela com arame farpado, uma leve protecção para o militar da porta de armas e, enquanto rolavam aquartelamento dentro, iam aparecendo os edifícios adaptados à tropa.
Coluna parada e ordem para desembarcarem. Deu-se então o reencontro com um alferes e um sargento que, umas semanas antes, por via aérea os tinham precedido a fim de tratarem das burocracias e instalação da Companhia Independente. Tiveram recepção calorosa e a vida, de burocracias e instalação facilitada. Breve formatura, material diverso arrumado e está a tratar da instalação. A ele e ao outro alferes indicaram-lhe uma “vivenda”. Já lá estava o outro alferes instalado.
A dita vivenda, certamente de algum antigo colaborador de Amílcar Cabral, tinha quartos para os alferes, messe de oficiais e sargentos, cozinha e arrumos e duas ou três casas de banho.
Não sabia que aquele quarto, que agora ocupava e onde ia arrumando as suas roupas, livros e demais haveres, seria o primeiro e único quarto onde viveu na Guiné. Nunca mais teve tal luxo. No futuro seria o abrigo, a morança das tabancas ou, se pernoitasse em Bambadinca ou noutra cidade, lá teria o quarto de empréstimo. Houve outros poisos mas são outras vidas…
Bateram à porta e disse:
- Entre.
Abre-se a porta e aparece um africano com um sorriso alvar e franco.
- Sou o Lali e trabalho aqui para os oficiais. Venho acender o Lion Brand.
- Vem acender o quê? - disse.
O Lali ria, mostrava uma caixa e disse:
- É para os mosquitos fugirem.
Foi a vez de ele rir.
Depois de acender, perguntou se ele precisava de alguma “coisa”.
- Sente-se aí, que quero fazer umas perguntas.
De pronto o Lali respondeu:
- Não posso sentar…
Olhou-o e compreendeu.
- Logo falamos então.
Saiu e dirigiu-se às instalações do Grupo, apanhando o ar, ainda quente, do final da tarde, sentindo aqueles cheiros e sons tão diferentes. Estava tudo a correr bem, conversaram um pouco, viram escalas e serviços e sentia-se, os outros também certamente, deslocado naquele ambiente.
Depois do jantar veio até cá fora um pouco e não tardou a regressar ao quarto.
Agora é que era e “a dança ia começar”…
____________
Nota de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores desta série que, por diversas razões, não seguido uma ordem lógica e cronológica:
29 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4435: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (7): Bissau, a caminho de Fá
4 de Junho de 2009 Guiné 63/74 - P4459: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (8): Mussá Ieró, tabanca fula em autodefesa, destruída em 24/11/68
1 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4618: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Cansamba, subsector de Galomaro, 1 de Agosto de 1969
3 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4633: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Bafatá, Amor e Ódio
14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4683: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (11): Cansamba II, o Serra e o Burro
Guiné 63/74 – P4808: Estórias do Zé Teixeira (37): “A vala, salva vidas” (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
1. Mais uma estória do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Auxiliar Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70, enviada em 8 de Agosto de 2009:
A VALA, SALVA VIDAS
(do meu Diário)
Buba, 1968 - Julho, 22
…Chegado a Buba, toda a gente correu para os poucos chuveiros existentes, formando fila. Enquanto uns se molhavam, outros esfregavam o sabão, fazendo um rodopio. Os restantes, completamente nus, esperavam pacientemente uma vaga, quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". De repente um estrondo lá longe. Logo se ouviu a frase mágica que eu nunca mais vou esquecer - “Aí estão eles” - vinda de vários lados.
A VALA, SALVA VIDAS
(do meu Diário)
Buba, 1968 - Julho, 22
…Chegado a Buba, toda a gente correu para os poucos chuveiros existentes, formando fila. Enquanto uns se molhavam, outros esfregavam o sabão, fazendo um rodopio. Os restantes, completamente nus, esperavam pacientemente uma vaga, quando o IN apareceu a baptizar a Companhia atacando de canhão sem recuo, morteiro e "costureirinha". De repente um estrondo lá longe. Logo se ouviu a frase mágica que eu nunca mais vou esquecer - “Aí estão eles” - vinda de vários lados.
Numa fracção de segundos, o tempo da vida ou da morte, toda aquela gente desapareceu da vista.
Depois, bem depois, foi ouvir uma música muito estranha, de granadas de canhão e de morteiro a rebentar por perto. Armas ligeiras a vomitar fogo, rebentamentos a distância originários das nossas armas pesadas. Enfim, uma festa. Terrível festa. Os guerrilheiros atacaram com canhões sem recuo de dois sítios diferentes, segundo dizem, causando ainda mais confusão. Felizmente caíram todas fora do arame farpado, não deixando mazelas. Tentaram durante alguns minutos arrasar Buba, o que não conseguiram por fraca pontaria.
Em simultâneo com o ataque desabafa uma tempestade de chuva.
Deitado na vala e a aguentar a chuva e a metralha, completamente nu, com o corpo cheio de sabão, assim esperei que acabasse a "festa", para me ir vestir pois o sabão do corpo saiu por si, graças à chuva.
Que espectáculo! Centenas de corpos (muitos nus) encharcados, mas alegres, saíam calmamente da vala. O chuveiro rapidamente se encheu de novo, como nada tivesse acontecido. A vida continuava porque mais uma vez escapámos.
Perante esta dantesca cena, rendi-me à necessidade de me recolher, encostado à parede da caserna e dar graças a Deus, pela vida que sentia palpitar no coração, a recuperar de um grande susto.
VALA BENDITA
Estranho ruído ao cair da noite escura.
Quebra o silêncio expectante,
Atira-me para a vala,
Abrigo sem cobertura.
Salva-me a vida, naquele instante.
Tenebroso e longo momento.
Angustiante.
O coração bate como nunca senti.
Eu também fugi,
Ao ouvir, “aí estão eles”.
Que algum camarada gritou,
Quando, ao longe o estrondo da “saída”
Para o perigo o alertou.
Porém,
A granada que ali tão perto rebentou,
Mais uma vida levou.
Ah Vala!
Trincheira do medo,
Trincheira da sorte.
Vala bendita,
Que nos escondes da morte.
Momentos.
Minutos que são horas.
Tanto tempo…
Em que a vida não acontece.
O silêncio dos rebentamentos,
Impera.
O corpo estremece,
O medo entorpece.
Alguns, talvez poucos,
Dirigem a Deus uma prece
No tempo da catequese aprendida
Desordenada,
Remendada.
Há muito tempo esquecida.
Mas bem sentida.
Na esperança que a bala a si destinada,
Seja pela mão de Deus
Desviada.
E não lhe roube a vida.
Um abraço,
Zé Teixeira
1º Cabo Enf
Fotos: © José Teixeira
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