1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2009:
Queridos amigos,
já entreguei na editora a “
Mulher Grande”.
É a narrativa de uma heroína anónima com peculiares incidências afectivas. Tem 90 anos e uma vida cheia, uma memória úbere, prodigiosa. A narrativa culmina numa amizade profundíssima com quem lhe colhe os depoimentos e lhe armazena as recordações. Em dado momento, a heroína, de nome Benedita pede ao seu escriba que voltem à Guiné, que ela tanto amou, mesmo fingindo esquecê-la.
Viveu em Bissorã, Teixeira Pinto, Gabu, São Domingos, entre outras localidades. Assistiu à chegada da guerra, tudo procurou cicatrizar, reelaborar, expandir. Foi a personagem principal a que me agarrei enquanto eu próprio me procurava cicatrizar, regenerar e crescer com a perda da minha Locas.
Tem, pois, todo o sentido oferecer-vos um texto desse livro, a quadra é propícia.
Agora vou escrever um livro sobre os problemas actuais dos consumidores e revolver as entranhas para ver se tenho coragem em voltar à Guiné em “
A viagem do Tangomau”.
Desejo do coração a todos mil alegrias natalícias,
Mário
Um regresso à Guiné com a Benedita, pelo Natal
Por Beja Santos
Há dias, falávamos do meu Natal em Missirá, em 1968, aí relembrei a felicidade de juntar na mesma mesa a população Mandinga, todos os meus soldados, mesmo com a tristeza de termos tido recentemente a baixa do Paulo Ribeiro Semedo, um apontador de dilagrama que quase morrera na região de Chicri.
A Benedita, di-lo abertamente, não tem recordações entusiasmantes dos seus natais na Guiné, preparou ceias, acolheu gente que estava sozinha, armou presépios, obsequiou gente necessitada, até foi à missa do galo em São Domingos. Mas não houve nenhuma recordação marcante.
Então ela perguntou-me se eu gostava de voltar lá, ao que respondi que me bastava por ora a lembrança do tempo vivido. Abrindo os olhos, muito líquidos, fixando-me depois do relato que lhe fiz daquele dia 25 de Dezembro de 1968 em Missirá, veio o pedido inesperado:
- Posso pedir-lhe uma lembrança imaginada do Natal deste ano nessa Guiné que tanto nos marcou, como se fosse agora que lá estivesse?
Como já deixei de me surpreender com qualquer tipo de pedidos, sobre quaisquer assuntos, feitos à mesa, ao telefone, por e-mail ou por outra via, mecanicamente respondi que sim. Tinha muito que fazer mas ela não me deu tréguas, deixou uma mensagem no atendedor automático:
- Promessa é promessa, quero ir consigo passar o Natal à Guiné. Mande a lembrança, não deixe o prazo expirar. Escreva qualquer coisa que seja comum ao que vivemos nesses rios de água barrenta, de gente de sorriso aberto. Mas mande a lembrança antes do Dia de Reis. Cá estou à espera. Benedita.
Sentei-me à secretária, remexi nas minhas fotografias, telefonei ao Cherno Suane para lhe ouvir a voz, consultei o Abudu Soncó acerca de alguns aspectos da geografia do Cuor, e alinhei o texto que enviei por e-mail à Benedita:
Amantíssimos guinéus
Qualquer pretexto serve, a ficção é sempre um fantasma oblíquo da realidade, colocamos acidentalmente o tempo de acção desta inenarrável viagem no embarcadouro de Mato de Cão.
É véspera do dia de Natal, vou a caminho de Missirá, é ali que tenho a Estrela de Belém à minha espera. Portanto, parei em Mato de Cão, Vem ao meu encontro Manuel, luso-guineense, aqui houve uma quinta que desapareceu em 1964, finda a guerra, Manuel regressou, fez renascer das cinzas a agricultura, a destilaria, o embarcadouro donde a mancarra segue para Bissau. Na companhia de Manuel subo ao planalto de Mato de Cão de onde se avista a majestade do palmar até Sinchã Corubal.
Os Mandingas regressaram ao planalto, comove-me este bulício que nunca pudera partilhar no tempo em que aqui vim todos os dias para evitar os ataques às embarcações. Ao longe, em Chicri, reergue-se uma tabanca Balanta. Chicri, que fora sempre terra de combate. Assesto os binóculos, vejo gente azafamada.
Um céu eléctrico serve de abóbada, nesta contemplação. É quase dia de Natal, para marcar o evento (fim do Advento) os pássaros desandam silenciosamente para o sul. O tarrafo, aqui nesta margem do Geba estreito, começa a ser soterrado por uma maré cheia que se aproxima, teremos depois os roncos do macaréu, por ora o mangal é uma renda frágil de verde queimado por este estranho sol perene, para lá do mangal agita-se ao vento a cabeleira do palmeiral, na orla da circundante lala. Sente-se a fervura do dia, por ora convivemos com a branda aragem. Desço o planalto, subo ao embarcadoiro, desconjuntado, não há nenhuma canoa à volta. Aqui vim todos os dias, dias dos longos e exaltantes tempos que passei no Cuor, pedindo a Deus para que os barcos prosseguissem, incólumes, até ao seu destino. Deus escutou-me, venho agradecer-Lhe, agora que se aproxima a liturgia deste macaréu fascinante. A paisagem emudecida, espero, vai endurecer a argila da minha oração.
Ao fundo, em terras de Samba Silate, avisto agricultores Balantas que revolvem as terras, abrem diques, até se pode imaginar o som das mulheres a pilar arroz, na sombra dos frondosos poilões. Falta-me um cantil, uma bilha de barro ou mesmo uma garrafa de vidro revestida de couro pintado, preciso de me dessedentar, sentir-me apaziguado com a visão desta ramagem semelhante à do bambu, pressentindo as gramíneas, os juncos e o vigor dos tambores.
Hoje é o dia que prepara o renascimento, há um Deus-menino que vai alegrar as festas agrárias, iluminar as pulseiras de latão, excitar adolescentes com as suas danças da vaca ou do peixe-verga. Para este cerimonial de exaltação, trago comigo o braseiro de todos os incêndios de Missirá, do adobe calcinado, não há carapaça de cágado que me proteja dos sons dos tambores, apitos, ferros, matracas, até dos bombolons. Não há guerra, inveja, fanado, rito fúnebre, dança lúbrica, toada estrepitosa, corpos em contorção violenta, não há ráfia, peça de repouso, mezinha, feitiço, arma de arremesso, pano puríssimo, esteira, nada construído com mãos dentro do engenho da natureza, que se sobreponha a todas estas recordações que ponho nas mãos em oração, enquanto aguardo a chegada dos barcos que guardam no bojo arroz pilado, caju e óleo de palma.
É nisto que uma embarcação a motor se ouve nos meandros do Xime, vai aparecer suavemente neste Geba estreito. A bordo, vejo homens, mulheres e crianças, os olhos lampejam, contentes com o visitante que os saúda no embarcadouro, que lhes faz uma continência, parece a mesma continência que fazia a todos os barcos, com militares ou civis, muitos anos antes. Grito para mim, só para mim: “
Hossana nas alturas!”. Esta a nossa boa acção, a boa obra é regressar sem um vinco de amargura e desejar a todos a paz na Terra, no clamor da boa vontade.
A embarcação a motor prossegue, perco-lhe a vista no tarrafo barrento, infinitos meandros há a percorrer até Bambadinca, senão mesmo até Bafatá.
Chegou a hora de continuar viagem, os amantíssimos guinéus de Mato de Cão, no Cuor foram saudados, alegremo-nos. Mais um abraço, Manuel. Sigo para uma pátria, Missirá.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12.
Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados
Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança (LG)
Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados
Dei uma explicação à Benedita: foi tudo escrito intencionalmente ingénuo, elaborado como se eu voltasse a ser um jovem de 20 e poucos anos, como se aquela viagem fosse possível, como se aquele embarcadouro existisse, como se houvesse navegação no Geba estreito, como se fosse admissível uma continência quase militar, como se o Deus-menino precisasse de ser recordado lá para os lados de Mato de Cão. O que é verdade é que há agora Mandingas no planalto de Mato de Cão e Balantas em Chicri. Mas talvez o mais importante de tudo é que Manuel existe e Manuel foi e é o nome do Deus-menino. E mais escrevi: “
Tenha paciência, deixei de poetar, fique-se com a mediocridade da minha resposta à sua encomenda”. E a sua resposta veio prontamente: “
Olhe, diz o Mia Couto que viver é cumprir sonhos, esperar notícias, que a velhice não é idade, é um cansaço. Cansaço era perdermos ousadia, toda a confiança em recomeçar, em regenerar”.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5503: Notas de leitura (44): MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM, romance de Luís Rosa (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5512: O meu Natal no mato (25): Apanhados em flagrante, a pôr duas minas no 'sapatinho', na estrada Xime-Bambadinca (Libério Lopes, CCAÇ 526, 1963/65)