quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5524: O meu Natal no mato (27): Um postal e um bolo-rei (António Dâmaso)

1. Mensagem do nosso camarada António Dâmaso*, Sargento-Mor da FAP na situação de Reforma Extraordinária, com data de 22 de Dezembro de 2009:

Um postal e um bolo-rei

Caro Luís Graça e Colaboradores,

Não encontro palavras para enaltecer o vosso trabalho pela causa dos antigos combatentes.

Pertenci a uma tropa de elite, que muito me orgulho de ter pertencido, mas como vivi os martírios que muitos outros viveram, nunca me esqueço destes.

Embora estivesse preparado para situações de combate difíceis, até para morrer, no entanto não estava preparado para enfrentar situações pós traumáticas por perda de camaradas que carreguei às costas e depois tive de os deixar sepultados em Guidage.

Quando precisei de apoio, o que me ofereceram foi uma ameaça de uma «porrada».

Voltei a viver momentos difíceis desde 2004, quando fui obrigado a reviver situações que desesperadamente andava a tentar esquecer, sem o conseguir, durante mais de trinta anos.

Foi através do V/Blogue que encontrei o apoio que me ajudou a ultrapassar os momentos mais difíceis, a todos o meu Muito Obrigado.

Estamos na época Natalícia onde é costume mandar e desejar Boas festas e um Feliz Natal, Próspero Ano Novo, etc. aos nossos familiares e amigos.

Com as novas tecnologias, existem milhentas formas de fazer postais de Boas festas, apenas dependendo da criatividade de cada um.

Este ano encontrei um nas minhas memórias que tem uma certa carga simbólica para mim, gostava de os compartilhar com os frequentadores do Blogue.

Estávamos em Dezembro de 1972, avizinhava-se a data Natalícia, era o 6.º de 7 Natais que passei em África, mas este foi o único que passei em pleno mato, acampado em Cadique no Sul da Guiné.

Tínhamos umas instalações de 1.ª constituídas por uns buracos no solo, tendo como tecto duas camadas de troncos cruzadas e depois folhas de palmeira, em cima muita terra e por último, mais uma camada de folhas para a chuva depois não passar.

Tivemos o privilégio de construir a nossa própria habitação para dormir quando não estávamos em plena mata em Operações e lá se ia vivendo com as mãos cheias de bolhas e calos, com uns ataques à mistura para animar o pessoal.

O fotógrafo do Pelotão resolveu fazer umas montagens fotográficas para nos facilitar a vida e ganhar mais uns “pesos”, com fotos nossas nascia um postal de Boas Festas, o que tenho o prazer apresentar, foi enviado à minha filha que à época tinha 6 anos.

Apesar de estar no mato, recebi de cá uma encomenda com um bolo-rei e uma garrafa de vinho do Porto, que foram mais ou menos equitativamente repartidos pela minha família de ocasião mais chegada, os trinta e tal elementos do 3.º Pelotão da CCP 121, claro que os cálices eram os copos do cantil e, mais gota menos pingo, todos foram contemplados.

Felicidades para todos e muita saúde.

Um abraço,
António Dâmaso
Sarg Mor da FAP (situação de Reforma Extraordinária)

Fotos e legendas: © António Dâmaso (2009). Direitos reservados.
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Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série em:

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5523: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (17): Os três reis magos... (Parte II) (Mário Migueis)

OS REIS MAGOS DO BLOGUE LUÍS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ (Parte II)

Só na banda desenhada os 3 Reis Magos podem ser 4, sendo que três andam de camelo e o quarto, mais evoluído, usa um sistema de transporte altamente sofisticado para a época, conhecido no século XX por jeep militar. Porque tem patente mais elevada na cadeia hierárquica dos Magos, tem direito a motorista.

Vamos à segunda parte da história





Mário Migueis da Silva
Ex-Fur Mil de Rec Inf,
Bissau, Bambadinca e Saltinho,
1970/72
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Nota de CV:

Vd. poste da I Parte de 18 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5493: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (9): Os três reis magos... (Parte I) (Mário Migueis)

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5517: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (16): Pedrada no charco a bem dum Natal introspectivo… (António Matos)

Guiné 63/74 - P5522: Estórias cabralianas (57): As duas comissões do Alfero... ou a sua dolce vita em Bissau, segundo a Avó Maria e a Menina Júlia (Jorge Cabral)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Xime > Cais do Xime, na margem esquerda  do Rio Geba > Meados de 1970 > O nosso Alfero que  também poderia ser um bom guarda-marinha... (Em segundo plano, uma LDG).

Foto: © Vitor Raposeiro (2009). Direitos reservados.

1. Mensagem do Jorge Cabral:

Amigos!



Há tempos o Luis enviou-me uma fotografia. Parecia reconhecer-me. Olhei e constatei. Sim, ia escrever, fui eu, mas não, sou eu.


O bébé de caracóis, o adolescente sonhador, o alfero apanhado, o pai babado, o jurista atípico, o professor afectuoso, sempre eu. Nem dei pelo tempo e só no outro dia, reparei que tinha envelhecido. Estava no Bar da Universidade e ouvi uma aluna a perguntar a outra:
- Sabes se o velhote do Penal já chegou?
- Velhote, eu?

Pois então, há que assumir e desvendar os labirintos da memória!


Abraços Grandes

Jorge Cabral

2. Estórias cabrialianas > As duas comissões do Alfero (*)
por Jorge Cabral


A foto do Alfero, fardado de Alferes, no cais do Xime, comprova o que Avó Maria sempre disse. O seu neto Jorge deu-se muito bem na Guiné. Até porque, para ela, nunca saiu de Bissau, que devia ser igual à Lourenço Marques dos anos trinta, quando por lá passou. Essa a razão porque o Alfero, cumpriu simultaneamente duas comissões, uma em Fá e Missirá, outra na capital frequentando os bailes do Governador, os quais descrevia com pormenor em longas cartas, nas quais também falava das eloquentes homilias que ouvira na Sé Catedral.

Em resposta, a Avó Maria mandava sempre cumprimentos para o Senhor General e Excelentíssima Senhora Dona Helena, seus companheiros das termas e alertava o neto:
– Cuidado, lembra-te dos louvores do tio Álvaro.

Mobilizado para a Índia, Álvaro regressara feliz, com dois louvores, como ele dizia, dois bébés, filhos de mães diferentes, os indiozinhos, como ficaram conhecidos na família.

A Avó Maria vivia ali à Estrela na companhia da Menina Júlia. Ambas contavam mais de oitenta anos e era difícil descortinar qual a patroa, qual a empregada.

Quem cuidava de quem?

Analfabeta,  a menina Júlia escrevia através da Avó Maria e no Aniversário do Alfero enviou-lhe uma bonita gravata vermelha.  No bairro apregoava que o “nosso menino” estava óptimo, pois vivia num excelente S.P.M., o 5358 era dos melhores…

Neste Natal, eu que já vivi em muitos S.P.M.s, mando uma Mensagem para as duas:
- O “vosso menino” continua na vida, como nos bailes do Governador.

Dançando a Valsa….

Jorge Cabral

_________________
 
Nota de L.G.:.
 
(*) Vd. último poste desta série: 28 de Outubro de 2009 > Guiné 53/74 - P5172: Estórias cabralianas (56): Cum caneco, alfero apanhado à unha! (Jorge Cabral)

Guiné 63/74 - P5521: Álbum fotográfico de Rogério Cardoso (2): Quotidiano da CART 643 em Bissorã

1. Mensagem de Rogério Cardoso* (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), com data de 14 de Dezembro de 2009:

Caro Carlos Vinhal
Sou Rogério Cardoso ex-Fur Mil da CArt 643/Bart 645.
Estive quase todo tempo de comissão em Bissorã, com breve passagem por Brá, quando as casernas ainda não tinham portas nem janelas.

O meu ex-camarada Carlos Brito enviou-te umas fotos para serem publicadas no blogue.

Uma rectificação, o local que em que o Unimog foi minado não é junto à pista de aviação do Olossato mas sim de Bissorã.

A granada com que fui atingido era uma PANCEROVKA-Heat-120mm de fabrico Checo, que foi disparada para o GCOMB junto a uma casa de mato, salvo erro de nome Jean Couteou a caminho de Barro. A granada bateu em mim e não rebentou, talvez o único caso da guerra do ultramar em que o atingido se salvou.

Tenho mais fotos que se quiseres envio.

Eu estou nisto da Net há um mês, ainda sou maçarico e vou metendo muita água.

Continuação do Álbum fotográfico de Rogério Cardoso

Foto 1 > 5 de Março de 1964 > Na sala de jantar do Uíge > À esquerda: Furs Mil Dias, Magalhães e Amaral. À direita: Fur Mil Massano (falecido), 2.º Srgt Justiniano e Fur Mil Pereira Almeida.

Foto 2 > Uíge > Na sala de jantar, Furs Mil: Rogério, Cabeças, Águas, Inácio e Peixoto (já falecido)

Foto 3 > Painel da 643 na entrada do aquartelamento de Bissorã.

Foto 4 > Parque automóvel.

Foto 5 > Bolola > MAR64 > Fur Mil Sousa, Alf Mil Paulo (já falecido) e Fur Mil Rogério.

Foto 6 > Bissorã > Dia de S. Martinho de 1964, junto ao paiol.

Foto 7 > Alojamento de Sargentos > Fur Mil Rogério.

Foto 8 > Missão Protestante que dava apoio ao PAIGC, na estrada para Encheia. Alf Mil Lourenço, Sarg Hipólito (já falecido) e pessoal do GCOMB.

Foto 9 > Largo de Bissorã > Sarg Pára Roque, Fur Mil Rogério, Sarg Pára Cardoso e... (?)

Foto 10 > Jantar com civis > À direita o Pedrinho.

Foto 11 > Jantar com civis > Maxe à direita, ao fundo o Administrador Spencer
Salomão, Fur Mil Rogério e outros.


Foto 12 > Fur Mil Rogério com Furriéis da CART 730.

Foto 13 > Bissorã > Rua do Quartel, vendo-se à direira a cobertura do Refeitório e ao fundo a Administração.

Foto 14 > Bissorã > Rua dos alojamentos dos sargentos. Ao fundo, um Buick que não andava, a única viatura civil de Bissorã .
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 21 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5515: Estórias avulsas (66): O grande amigo Sargento Bajouco da CART 642 (Rogério Cardoso)

Vd. primeiro poste da série de 20 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5509: Álbum fotográfico de Rogério Cardoso (1): A Paulucha e material apreendido ao IN (Rogério Cardoso / Carlos Brito)

Guiné 63/74 - P5520: Os nossos camaradas guineenses (24): Vi matar o meu camarada Lamine Sanha (Braima Djaura, ex-Sold Cond Auto, CCAÇ 19, Guidaje, 1972/74)

1. Mensagem de Braima Djaura* (ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 19, Guidaje, 1972/74), com data de 21 de Dezembro de 2009:

Olá, caro Pechorro, boa tarde,

Tive possibilidade de ler muito atentamente o teu agradecimento e informações em resposta ao ex-Fur Mil do Cop 3, Carlos Pereira, de 14 de Dezembro**.
Não li comentário do camarada Carlos Pereira nos P5300 e P5310, todavia não sei se há alguém que possa ser tão claro como tu, no que se refere aos acontecimentos de Maio de 1973 e noutras alturas em Guidage. Aliás eu próprio fiquei impressionado como ainda há pessoa com memória tão completa dos acontecimentos de Guidage e daqueles fatídicos dias. A descrição tão detalhada do Morteiro 120 perfurante que matou e feriu tantos camaradas é um exemplo.

Mais impressionate ainda a lembrança de nomes, incluindo o de António Talibó Baio, que era o meu colega da infância e amigo na Morcunda-Farim e que era Filho de um grande Régulo Mandiga de Farim, de nome Braima Baio, que me estimava muito, dado que eu sou natural de Farim, Morcunda, Nossa Srª de Graça, e Alfredo Umaro Dafé, que se encontra agora em Bissau, cujo pai era Cipaio da Administração de Farim.

Quanto os 5 mortos naturais de Farim, lembro-me de Jungu Dabó, Unfanso Dabó, primos,  e Lamine Sanha, natural de Bissau, que era Enfermeiro, e que foi aprisionado e degolado, sendo a sua cabeça exposta em cima do tronco de uma árvore, entre Cuféu e Ujeque.

Foi nesse dia que a minha Berliet foi queimada. Fugimos a pé para o quartel, depois de assistirmos à morte de Lamine Sanha, escondidos, eu e um mecânico mulato, caboverdiano, baixinho, de nome Ridel.

Um grande abraço e mais uma vez, Boas Festas.
Braima Djaura

Guiné > Região do Cacheu > Guidaje > Maio de 1973 > Cadáveres de soldados africanos da CCAÇ 19, abandonados no campo de batalha.

Foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5419: Os Nossos Camaradas Guineenses (22): Muitos se salvaram pela solidariedade que existia entre todos, brancos e pretos (Braima Djaura, Sold Cond CCaç 19, Guidaje, 1972/74)

(**) Vd. poste de 16 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5479: O assédio do IN a Guidaje (de Abril a 9 de Maio de 1973) - Agradecimento e algumas informações (José Manuel Pechorro)

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5427: Os nossos camaradas guineenses (23): Temos uma dívida de gratidão para com homens como o Braima Djaura (José Manuel Pechorro, CCAÇ 19, Guidaje, 1971/73)

Guiné 63/74 - P5519: Notas de leitura (45): Memória dos Dias sem Fim, romance de Luís Rosa - II (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2009: 

 Malta, Mais uma vez um santo Natal para todos. Termino a leitura do romance de Luís Rosa, só é pena o final tão desastrado**. Vou aproveitar os próximos dias para reler os “Anos da guerra”, um importante livro do João de Melo, com algumas grandes páginas da literatura da Guerra Colonial que nós vivemos e que vale a pena recordar e registar. 

 Um abraço do Mário
  


De Sangonhá para Farim, depois na Lisboa da reconciliação 

por  Beja Santos 

 
Memória dos dias sem fim – O amor, o sentir das gentes e a crueza da Guerra Colonial de África” é o romance mais recente de Luís Rosa (Editorial Presença, 2009). Trata-se de uma obra que encerra parágrafos lindíssimos, muito provavelmente alguns deles serão acolhidos por antologias. É a narrativa da experiência de alguém que terá vivido no Sul da Guiné (mais propriamente em Sangonhá) e depois no Cacheu, revelando o seu íntimo, dando a sua versão corajosa do sofrimento, da crueldade e da solidariedade que o marcaram indelevelmente. 

Não deixa de ser exorbitante, porém, apresentá-lo como um romance histórico que rasga novos horizontes, reveladores da própria dimensão humana. Para o melhor ou para o pior, dispomos hoje de uma bibliografia apreciável em torno da literatura da Guerra Colonial onde se mostra o homem nesta paleta de sentimentos, onde se fala das culturas, comportamentos e mentalidades da sociedade guineense, das amizades e do absurdo da guerra. 

É uma literatura estimulante, enriquecedora da vasta lista existente, mas às vezes os editores excedem-se nos tons encomiásticos, entrando nas promessas enganosas. Luís Rosa prestou um bom serviço à literatura portuguesa, conta bem o que por lá passámos e a segunda parte do seu livro é seguramente onde ele arrecada o número superior dos tais parágrafos lindíssimos. Fala-nos das colheitas das populações acossadas pela fome do mato e que procuram refúgio na terra que os viu nascer. O alferes de Sangonhá distribuiu sementes, desbravou-se a terra, semeou-se a mancarra, constituíram-se grupos armados que defenderam os agricultores. 

E assim “A população toda despejou-se no campo, numa algazarra indefinida que se confundia com o ruído da bicharada do mato, fugindo para além do mundo do bicho homem. Ceifeiros de um ciclo interrompido há anos...”. Nunca houvera colheita tão abundante. 

 O alferes vai ao inferno que dá pelo nome de Guileje. Em Sangonhá, ele invejava aquela povoação onde, até então, nunca houvera tiros. Mas uma noite (não se sabe se ainda em 1964) veio a primeira flagelação, estarrecedora. De Buba, o alferes recebe instruções para sair em socorro, a força avança ao amanhecer, dos céus os bombardeiros vão semeando a morte entre os sitiantes. Quando chegou a Guileje, o alferes confirmou que nascera um novo tempo: 

Um sopro de fuligem batia-me no rosto e o cheiro que a guerra tem, um cheiro acre, com mistura de óleo, pólvora, suor, fogo, sangue, metal sobreaquecido e ameaça, que estrafega a alma e seca a garganta até um ponto sem limite, medonho, que nos anula ou enraivece a força última que há em nós. Compreendi que um novo tipo de combate ali tinha acontecido”. 

O alferes vai encontrar os seus camaradas atónitos, alguns já sem munições, como se pedissem uma explicação para esta nova forma de apocalipse. Deixaram lá uma GMC e regressaram. Depois nessa mesma noite Guileje voltou a ser atacada. O segundo ataque varrera o resto das infra-estruturas até a GMC ficara retorcida e carbonizada. 

A partir daí Guileje tornou-se um pesadelo permanente, como nenhum de nós ignora. O alferes procura estar atento ao que se passa à sua volta: a condição da mulher e o valor dos casamentos, o pesadelo das colunas de abastecimento, não só entre Sangonhá e Gadamael, mas em todas as localidades. Ele vai entregar um camião de víveres a Cacoca onde já se anda a comer mangos, bananas-de-mato e caça. E há uma emboscada inesquecível. 

O alferes tenta conversar na fronteira com o oficial da República da Guiné, foi um encontro formal em que chegaram a acordo sobre a insensatez da guerra. Nunca mais se voltaram a encontrar. O alferes não esqueceu a baga-baga, onde os guerrilheiros se acobertavam para fazer fogo demolidor. Por vezes, eram os guerrilheiros que por inexperiência se matavam a colocar uma mina. Ouvia-se um estampido, saia uma patrulha, depara-se um espectáculo macabro: 

Reparei então que a vegetação tenha o verde-escuro do mato salpicado de manchas vermelhas e roxas de mil bocados de carne humana, irreconhecíveis, como pequenos frangalhos de irrealidade. O sangue pingava em gotas rosadas misturadas com a humidade que corria das folhas. Como se as árvores estivessem a sangrar uma vida alheia, vestindo de anti-natureza o absurdo, e o horror de aperto interior”. 

Por vezes, a mina leva as pernas do amigo. São os lamentos do ferido, o enfermeiro a fazer o garrote, pede-se um helicóptero que acabará por levar o morto, passara-se demasiado tempo. Ir buscar água também pode ser uma odisseia, por vezes os guerrilheiros emboscam na fonte, capturam gente, armadilham, felizmente nunca envenenam a água. 

 De Sangonhá o alferes parte para Farim. Parecia que ia ser um paraíso de paz, até que um dia tudo mudou com o matraquear de um tiroteio intenso. Estavam aquartelados numa granja chamada Pessubê. Recebem ordem para ir até Farim. Na viagem, um Unimog foi pelos ares no meio de um estrondo seco. Quatro homens tinham ficado sem vida. Um dos feridos grita: “Meu alferes, nunca mais sou homem!”. É muito difícil conter as lágrimas quando se ouve tanto desespero. 

Há momentos em que a curiosidade é muito forte. Por exemplo, quando se anda a descobrir os marcos da fronteira, no fundo linhas imaginárias inventadas por homens que separam gentes com o mesmo credo, a mesma língua, os mesmos costumes. O alferes consolidou amizades, granjeou estimas, estabeleceu cumplicidades com informadores. Um deles, veio a descobrir-se, que estava leproso, foi para Bor. Quando o alferes o visitou, foi recebido por um frade. Muitos anos mais tarde, o alferes vê na televisão um velho bispo católico que procura levar uma mensagem de paz a quem estava desavindo, em plena guerra civil que afundou mais a Guiné. Reconheceu o frade da leprosaria.

 E o romance, que decorre dentro de margens de plausibilidade, dentro de um registo onde se conjugam os diferentes dramas onde se agitam as vidas dos combatentes, culmina num desastre sofisticado, uma conversa impossível. O alferes resolve almoçar em Lisboa, muitos e muitos anos depois do fim da guerra, com um comandante de guerrilha que actuava no Sul da Guiné. Vão comer bacalhau na rua dos Correeiros. O diálogo travado roça o ridículo, põe-se um guineense a falar e a pensar à moda europeia, é patético o que dizem um ao outro, não só por inconsistência mas sobretudo por inverosimilhança à flor da escrita. 

Felizmente que conversam sobre reconciliação e as promessas para um futuro desses portugueses que precisaram de deixar África para estarem em condições de lá voltar. Do mal o menos, a literatura afundou-se mas os homens ergueram-se.

 __________ 

 Notas de CV:


Guiné 63/74 - P5518: Cancioneiro da CCP 122 / BCP 12 (1972/74) , a Gloriosa (Pedro Castanheiro)

1. Mensagem de Pedro Castanheira , 39 anos, ex-pára-quedista (*)

Assunto - Este blogue é uma lição de vida

Sr. Luis graça

Agradeço-lhe desde já a oportunidade de aparecer no vosso blogue, fiquei feliz da vida. Fiquei muito honrado, com o convite para contar uma hist´´oria acerca da minha missão na ex-Jugoslávia. Não me leve a mal, mas não quero desviar o tema central deste blogue.

A minha missão foi levada a cabo noutros moldes, embora parecida em certos aspectos (sofrimento das populações arrastadas pela guerra, e muitas situações de sofrimento humano). O meu batalhão de pára-quedistas foi o primeiro a entrar no território, após o fim "oficial" da guerra, fizemos o que foi preciso fazer e penso que cumprimos a nossa missão.

Mas peço-lhe, a si e aos seus cúmplices bloguistas, que me deixe fazer umas incursões, no vossa tabanca, visto que, tirando o nosso cabo Victor Tavares, os nossos páras, não são dados à escrita. Isto claro, com a sua supervisão, é sempre complicado escrever sobre uma situação que não se viveu. E com a sua autorização, e claro, dos páras velhinhos. Um grande abraço

Pedro Castanheira


Anexo - Letra da marcha da CCP 122 / BCP12, 1972/74

Marcha da companhia de paraquedistas nº122 (gloriosa, BCP 12-Guiné, 1972-74) (**)
Refrão
Gloriosa! Gloriosa!
Por toda a parte se reparte a tua fama!
Do Morés à Coboiana,
Do Unal até ao Sara,
A tua glória é clara,
Gloriosa! Gloriosa!

Eis da Companhia «Os Rapinantes»
Soberbos, corajosos, triunfantes!
Aves viris de voos altaneiros,
Senhores da guerra mais que o próprio Marte,
Gritando a toda a gente, em toda a parte,
Nós somos, não duvidem, os primeiros!

«Os Tigres», como diz o próprio nome,
Da carne de inimigos têm fome!
Por tal razão, escutem o aviso:
Por inimigos não os tenha aquele
Que muito ame a sua própria pele,
Pois quem lhes foge é porque tem juízo.

Unidos, marciais, disciplinados,
«Os Rangers» são por todos apontados
Como leais à causa e combatentes,
Sem rival cà nas terras da Guiné,
Onde há perigo eles são, por sua fé,
Os primeiros de todos os presentes.

Sofre o inimigo os maiores danos,
Se encontra pela frente «Os Americanos»
Tudo combatem à sua passagem!
São como bombas ou teleguiados,
Computadores para guerra programados,
Tendo por lema a força e a coragem.

(marcha escrita por 1º srgt pára-quedista, Vasco Abílio Ferreira da Silva Gama, falecido em 1974)

2. Comentário de L.G.:

È verdade, faltam-nos depoimentos, na primeira pessoa do singular, dos nossos pára-quedistas do BCP 12. A única verdadeira excepção é o Victor Tavares, que foi o primrio a ingressar na nossa Tabanca Grande, por mão do seu vizinho e amigo Paulo Santiago. De qualquer modo, Pedro Castanheiro, obrigado pelo envio da letra da marcha da CCP 122. Tens ideia de que quando e onde foi escrita ? Está à vontade para nos visitar e, semre que oportuno, nos trazeres mais informações sobre o BCP 12. Bom Natal para ti. 400 abraços da Tabanca Grande.
________________

Notas de L.G.

(**) A CCP 122 / BCP 12 pertenceu o nosso camarada Manuel Peredo, que hoje vive no estrangeiro:

27 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3095: Tabanca Grande (81): Manuel Peredo, Fur Mil Pára-quedista, CCP122/BCP 12 (Guiné, 1972/74)

12 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2933: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (3): Manuel Peredo, ex-Fur Mil Pára, hoje emigrante,

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

Vd. ainda:

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2969: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (6): O grande comandante Araújo e Sá (Manuel Rebocho)

17 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2953: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (5): Fomos capazes do melhor e do pior (Virgínio Briote)

16 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2950: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (4): Opiniões (Carlos Silva / Nuno Almeida)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5517: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (16): Pedrada no charco a bem dum Natal introspectivo… (António Matos)

1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos a seguinte mensagem:

Camaradas,

Uma vez mais a minha pedrada no charco a bem dum Natal introspectivo sem esquecer as crianças que nas aldeias, de mãozitas roxas, tolhidas pelo frio, que esperam desça pela chaminé o duende que lhe trará o chupa-chupa, o pião, quiçá uma malga de sopa quente....

Se os discursos sarassem feridas;

Se as nossas compaixões não se esfumassem em inócuas retóricas;

Se a nossa caridadezinha não fosse pornográfica;

Se a nossa solidariedade se mantivesse no anonimato que engrandece corações;

Se as nossas acções fossem tidas de mãos dadas com um país solidário;

com governantes que não se babam ao serem apelidados de homens mais sexy do mundo;

se não vestissem tão caro;

se não fossem tão arrogantes;

se não fossem mais bem pagos do que os seus congéneres de estatuto verdadeiramente multinacional;

se não fossem tão terrivelmente sucateiros;

quantas vezes palhaços;

se, se, se ....

Então sim, poderíamos apelar a que o Natal fosse todos os dias e a alegria de viver fosse um must!

Até lá, não sejamos ingénuos a pensar que isto vai lá...

Debitem-se menos palavras, quantas vezes ditas sem qualquer sentido que não circunstancial!!!

Mas o Natal tem essa capacidade transformadora e regeneradora das consciências pesadas...

Do vil ladrão ao execrável assassino, do mais medalhado ex combatente ao mero soldado desconhecido, todos nos desfazemos em votos de boas festas que o não são para tantos e tantos a quem a sorte abandonou...

Calemo-nos por uma vez perante o autêntico sofrimento dos infelizes e aplaudamos os voluntários das boas vontades que dão o corpo ao manifesto calcorreando as ruas e os recônditos esconderijos onde se ESCONDEM os abandonados e os esbanjados de tudo onde a dignidade se perfila na 1ª linha dos bens a perder!

Façam os possíveis por serem felizes.

António Matos
Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790
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Nota de MR:

Vd. poste anterior desta série em:


Guiné 63/74 - P5516: Cancioneiro da CCAÇ 557 (Cachil, Bafatá, Bissau) (1): Recordar é viver (Francisco Santos / José Colaço)

1. Mensagem de José Colaço (*), ex-Sold de Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65 (foto à direita), com data de 13 de Abril de 2009:

Um ligeiro apanhado da missão cumprida pela CCaç 557 na Guiné... [Os versos são do nosso poeta popular Francisco dos Santos, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, da CCAÇ 557, que fez agora, em 15 do corrente, 67 anos] (Foto, à esquerda).

 2. Resposta, na altura,  do L.G. (**):

Parabéns pela tua brilhante ideia de salvar as quadras do teu camarada Francisco dos Santos... Um dia destes iremos publicar o nosso romanceiro ou Cancioneiro da Guiné... E o Francisco dos Santos (alentejano ?) ficará lá muito bem, a representar os seus valentes camraradas da CCAÇ 557. Vê-se que são quadras feitas agora, de memória. Mas deve haver por aí muitas mais, se calhar envergonhadas, escondidas...

Todo este material tem um enorme interesse para a compreensão socioantroplógica do homem português da geração (a nossa) que fez a guerra de África. Isto é também a nossa História, a nossa Cultura...Dá os parabéns ao Francisco dos Santos e diz-lhe que ele merece figurar, com chapa e tudo, no quadro de honra da nossa Tabanca Grande. Vê se lhe sacas as duas fotos da praxe para o Carlos Vinhal poder fazer a sua apresentação ao resto dos tabanqueiros  (**) e... mais umas tantas quadras... Tu mesmo podes acrescentar algumas notas e comentários: por exemplo, quando e onde morreu o Nabais ?

3. Resposta do José Colaço:

Luís,  o Nabais era um rapaz muito simples,  por esse motivo era muito apoiado por todos os camaradas. Quem lhe escrevia as cartas e os aerogramas era o Francisco dos Santos. A sua morte não teve nada a ver com combates de guerra, não sei se por ironia do destino ou sei lá assisti  praticamente aos últimos minutos de vida do Nabais.  Era uma tarde bonita cheia de sol,  o Geba convidava-nos a tomar banho. Então um grupo de 10 ou 12 militares,  fomos tomar banho. O Nabais não sabia nadar,  ele estava neste caso mais ou menos à beira-rio. Entretanto notou-se a falta do Nabais mas como do grupo nenhum sabia mergulhar com capacidade para procurar o Nabais, [fez-se] uma corrida até ao quartel [para]  chamar o Fernando,  cabo condutor,  óptimo mergulhador que em poucos segundos aparece com o Nabais na palma da mão, ao cimo da água,  mas sem sinais de vida.. Ainda se tentou a recuperação mas o Nabais estava morto,  não se sabe se por afogamento ou problemas por estar a fazer a digestão. Ficou sepultado em Bafatá,  no talhão dos militares, em 13/04/1965. Quanto ao Francisco dos Santos, darei noticias,  somos muito amigos. Um abraço. José Colaço.

4. Hoje,  o Colaço manda-me uma foto do Fancisco e mais un versinhos ("Marcas da Guiné", abaixo reproduzidos):


[A CCAÇ 557]

Fomos a 557,
Companhia que cumpriu,
A história não se repete
Regressámos com muito brio.

Foi de Évora que partimos
No ano de sessenta e três,
A nossa missão cumprimos
Com altos e baixos... talvez.

Chegámos à Guiné-Bissau
Com novo clima a pairar,
Em guerra é tudo mau,
Tudo isto há que encarar.

De Bissau partimos um dia
Para o mato, com coragem;
Quase ninguém sabia
Que o Como era a paragem.

Mal a gente tinha chegado,
O pior aconteceu,
Com um tiro transviado
Um nosso colega morreu.

Onze meses foi a paragem,
Foi amargo como o fel;
Trabalhámos com coragem,
construímos o quartel.

Num espaço de labirinto,
Havia muitas madeiras,
Fizemos o nosso recinto
Só com troncos de palmeiras.

O que mais fazia falta,
Era a água potável,
A Catió ia a malta
Num serviço impecável.

No local a sobrevivência
Só por si era uma luta,
Havia que ter paciência
Pois a guerra era a disputa.

Nas matas desta Guiné
Lutámos bem com genica,
Nunca perdemos a fé,
Éramos uma grande equipa.

Fomos grandes camaradas
Nestas terras promotoras,
Mesmo com as morteiradas
E o som das metralhadoras.

Mês após mês passava,
Num total isolamento,
A comida escasseava
Mas não perdíamos o alento.

Éramos a família unida,
Por isso não digo nomes,
Sacrificámos a vida,
Que heróis todos nós fomos.

Mas veio então a mudança,
Bafatá que era a norte,
Havia mais esperança
E talvez melhor sorte.

Não queríamos muito mais,
O tempo passa a correr
Mas o soldado Nabais
No rio viria a morrer.

A morte por afogamento
Que já ninguém o previa,
Este triste acontecimento
Chocou muito a Companhia.

Há muito mais para contar,
Em toda esta aventura,
Só pensávamos em regressar
Para dar e receber ternura.

E isso aconteceu,
Em Novembro foi o dia,
O passado morreu,
Dêmos largas à alegria.


Desde o RAL3 em Évora, até ao cais da Fundição em Lisboa

Foi no RI 16 formada,
Sim, falo dela outra vez
Por 557 baptizada,
Foi a partir do RAL3

De Évora até ao Barreiro,
Se não me falha a memória,
O combóio foi o primeiro
Transporte da nossa história.

A viagem até foi boa,
Onde a ansiedade escalda,
Do Barreiro até Lisboa,
Depois o Ana Mafalda.

Pois foi este o navio
Que à Guiné nos levou,
Depois de largar o rio,
O oceano atravessou.

Chegámos àquela terra
Para nós tudo diferente,
Para além da dita guerra
Outros hábitos, outra gente.

E a Bissau se chegou,
Depois foi o dia a dia,
O que mais nos impressionou
Foi a miséria que havia.

Longe está a nossa partida,
De regresso ao nosso lar,
Um por todos p´la vida,
É a mensagem a passar.

Nesta missão encontrámos
Obstáculos a contornar,
Alguns meses ali passámos
Que pareciam não acabar.

Depois fomos parar
Ao Como e ficamos sós
P´ra lutar e trabalhar
Na defesa de todos nós.

Com o moral nada em cima,
Havia alguns requisitos,
É que,  para além do clima,
Era a luta dos mosquitos,

Não havia água pura
Onde estava a Companhia,
Só havia com fartura
Na época em que chovia.

Não usávamos só a manha
Nas estratégias inimigas,
Tínhamos a dura bolanha,
Matacanhas e formigas.

Era tiro e morteirada
Mas tudo isso se alterou,
Quando uma bazucada
Na paliçada esbarrou.

Pouco depois para já
Diminuiu a pressão,
Porque a norte em Bafatá
Iria terminar a missão.

Tivemos como baluarte
Um excelente capitão,
Connosco em qualquer parte
Nunca fugiu à razão.

Chegámos ao fim da missão,
Voltámos à terra natal,
Desembarcámos na Fundição,
Em Lisboa, Portugal !!!

Marcas da Guerra

Isto passou-se na Guiné
mas a sorte teve a seu lado,
seu nome António José
mas de Espanhol alcunhado.

P`ra saír de madrugada,
toda gente comparece,
era a tropa preparada
para o que desse e viesse.

As vidas ali expostas
só dependiam da sorte,
e foi um tiro nas costas
que o ia levando à morte.

Foi os efeitos da guerra
e teve sorte, naquele azar,
mesmo caído por terra
a vida o quis brindar.

Do sofrimento ao dever
daquela missão cumprida,
o Espanhol não vai esquecer
foi marcado, p`ra toda a vida.

Parece estar encerrado
o que niguem vai esquecer,
lá diz o velho ditado
que recordar é viver.


Um alfa bravo para todos os tabanqueiros
Francisco dos Santos.


5. Comentário de L.G.:

A esta companhia, que esteve no Cachil (mas també Bafatá e Bissau), pertenceram:

(i) Alf Mil Médico Rogério Leitão (***)
(ii) Alf Mil José Augusto Rocha (****)
(iii) Sold Trms José Colaço (*)

Há dias pusemos o Francisco Santos a nascer no Ribatejo... Ora Sarilhos Grandes pertence ao Montijo, distrito de Setúbal, e fica a sul do Tejo, não "arriba"...O Colaço brincou comigo por causa desse "lapsus linguae"... Respondi-lhe que tinha  razão, mas que, mesmo assim, considerava o Montijo  mais "ribatejano" do que "estremenho", culturalmente falando... Não sei se os montijenses estão de acordo... Mas se não estiverem também não é grave... LG
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

Vd. postes de 12 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4329: Tabanca Grande (139): Francisco Santos, ex-militar da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau, Bafatá - 1963/65)

(**) Vd. poste de 16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4196: Blogpoesia (39): CCAÇ 557, Missão cumprida na Guiné (José Colaço/Francisco dos Santos)

 Vd. também poste de 15 de Dezembro de 2009 >  Guiné 63/74 - P5470: Parabéns a você (53): Francisco dos Santos, 1º Cabo Radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Como, 1964 (Editores)

(...) Biografia do Francisco dos Santos:

Em Sarilhos eu nasci
e fui como outros tantos,
no Montijo, perto daqui,
registaram Francisco dos Santos

Comecei a ouvir depois,
ainda menino eu lembro,
que nasci em quarenta e dois
no dia quinze de Dezembro.

Sarilhos Grandes me criou,
só para a Guiné eu sai,
sou feliz aonde estou
tudo o que tendo é aqui.

Casei, construí família,
gozo de cinco maravilhas,
para além da esposa Emília,
três netos e duas filhas.


Vd. ainda poste de 15 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5470: Parabéns a você (53): Francisco dos Santos, 1º Cabo Radiotelegrafista, CCAÇ 557, Cachil, Como, 1964 (Editores)

(***) Vd. poste de 13 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5264: Os nossos médicos (8): O Dr. Rogério da Silva Leitão, aveirense, cardiologista, CÇAÇ 557, Cachil, Como, 1963/65 (José Colaço)

(***) Vd. poste de 14 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5267: História de vida (17): Um homem no Cachil, Ilha do Como, CCAÇ 557, 1964 (José Augusto Rocha)

Vd. também poste de 18 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5125: José Augusto Rocha: da crise estudantil de 1962 à Op Tridente, Ilha do Como, 1964 (José Colaço / Luís Graça)
 



Guiné 63/74 - P5515: Notas soltas da CART 643: O grande amigo Sargento Bajouco da CART 642 (Rogério Cardoso)

1. Mensagem de Rogério Cardoso* (ex-Fur Mil Manutenção, CArt 643, Bissorã, 1964/66), com data de 21 de Dezembro de 2009:

Amigo Carlos, aqui vai uma história contada sem ter grandes dotes de escritor.


HOMENAGEM AO GRANDE AMIGO SARGENTO BAJOUCO DA CART 642

O Sargento Bajouco era um bom homem, e continua a ser, amigo de todos sem excepção. Lembro-me de duas situações caricatas.

A primeira foi quando chegámos a Bissau em Março de 1964 e as Cart 642 e 643 foram provisóriamente colocadas num armazém junto ao cais, a Bolola.
As duas Companhias estavam comodamente instaladas num edifício coberto de chapa de Lusalite, sómente com uma porta e duas janelas. O armazém era amplo, com camas em beliche de 3 e 4 sobrepostas, isto para cerca de 200 homens. À entrada havia um pequeno cubículo chamado de Secretaria, onde se guardavam uns garrafões de água que estavam bebaixo de uma secretária. Esses garrafões estavam misturados com outros que continham óleo de limpeza n.º 1.

Aconteceu uma vez que o Bajouco entrou espavorido e gritou:

- É pá, estou a morrer de sede.

Atirou-se a um garrafão e tragou um ou dois goles do óleo n.º 1 para a G3, saindo a correr para a rua aos gritos.

Agora a outra

Sabiam que o Bajouco dormia na caserna com mais 30 ou 40 sargentos, tapado com cobertores, enquanto nós todos nus. Quando às escuras, íamos destapá-lo e ele acordava logo.

Outra particularidade do Bajouco é que os seus pés eram de uma dimensão fora do comum, compridos e muito largos.

Então, numa saida, o seu Pelotão atravessou uma bolanha, e numa breve paragem alguém perguntou:

- Oh Bajouco, que pegada é esta tão grande, que bicho será este?

Ele respondeu que tinha a impressão de ser a de um hipopótamo. Disseram-lhe para pôr a sua bota no lugar e com espanto disse:

- Olha, é o meu pé!!!

Enfim são algumas cenas para recordar com alegria que todos os anos no nosso encontro voltamos a contar.

Por falar en Encintros, os Águias Negras vão-se encontrar no dia 10 de Abril de 2010 em Fátima - Boleiros, no Restaurante D. Nuno. Será o 30.º Encontro. Programem a vossa vida e não faltem.

Um abraço amigo do ex-Fur Mil da Cart 643
Rogério Cardoso
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 20 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5509: Álbum fotográfico de Rogério Cardoso (1): A Paulucha e material apreendido ao IN (Rogério Cardoso / Carlos Brito)

Vd. último poste da série de 17 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5481: Estórias avulsas (65): Ainda o Fiolifioli (Armandino Alves)

Guiné 63/74 - P5514: O meu Natal no mato (26): Um regresso à Guiné com a Benedita, pelo Natal (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2009:

Queridos amigos,
já entreguei na editora a “Mulher Grande”.
É a narrativa de uma heroína anónima com peculiares incidências afectivas. Tem 90 anos e uma vida cheia, uma memória úbere, prodigiosa. A narrativa culmina numa amizade profundíssima com quem lhe colhe os depoimentos e lhe armazena as recordações. Em dado momento, a heroína, de nome Benedita pede ao seu escriba que voltem à Guiné, que ela tanto amou, mesmo fingindo esquecê-la.
Viveu em Bissorã, Teixeira Pinto, Gabu, São Domingos, entre outras localidades. Assistiu à chegada da guerra, tudo procurou cicatrizar, reelaborar, expandir. Foi a personagem principal a que me agarrei enquanto eu próprio me procurava cicatrizar, regenerar e crescer com a perda da minha Locas.

Tem, pois, todo o sentido oferecer-vos um texto desse livro, a quadra é propícia.

Agora vou escrever um livro sobre os problemas actuais dos consumidores e revolver as entranhas para ver se tenho coragem em voltar à Guiné em “A viagem do Tangomau”.

Desejo do coração a todos mil alegrias natalícias,
Mário


Um regresso à Guiné com a Benedita, pelo Natal

Por Beja Santos

Há dias, falávamos do meu Natal em Missirá, em 1968, aí relembrei a felicidade de juntar na mesma mesa a população Mandinga, todos os meus soldados, mesmo com a tristeza de termos tido recentemente a baixa do Paulo Ribeiro Semedo, um apontador de dilagrama que quase morrera na região de Chicri.
A Benedita, di-lo abertamente, não tem recordações entusiasmantes dos seus natais na Guiné, preparou ceias, acolheu gente que estava sozinha, armou presépios, obsequiou gente necessitada, até foi à missa do galo em São Domingos. Mas não houve nenhuma recordação marcante.
Então ela perguntou-me se eu gostava de voltar lá, ao que respondi que me bastava por ora a lembrança do tempo vivido. Abrindo os olhos, muito líquidos, fixando-me depois do relato que lhe fiz daquele dia 25 de Dezembro de 1968 em Missirá, veio o pedido inesperado:

- Posso pedir-lhe uma lembrança imaginada do Natal deste ano nessa Guiné que tanto nos marcou, como se fosse agora que lá estivesse?

Como já deixei de me surpreender com qualquer tipo de pedidos, sobre quaisquer assuntos, feitos à mesa, ao telefone, por e-mail ou por outra via, mecanicamente respondi que sim. Tinha muito que fazer mas ela não me deu tréguas, deixou uma mensagem no atendedor automático:

- Promessa é promessa, quero ir consigo passar o Natal à Guiné. Mande a lembrança, não deixe o prazo expirar. Escreva qualquer coisa que seja comum ao que vivemos nesses rios de água barrenta, de gente de sorriso aberto. Mas mande a lembrança antes do Dia de Reis. Cá estou à espera. Benedita.

Sentei-me à secretária, remexi nas minhas fotografias, telefonei ao Cherno Suane para lhe ouvir a voz, consultei o Abudu Soncó acerca de alguns aspectos da geografia do Cuor, e alinhei o texto que enviei por e-mail à Benedita:


Amantíssimos guinéus

Qualquer pretexto serve, a ficção é sempre um fantasma oblíquo da realidade, colocamos acidentalmente o tempo de acção desta inenarrável viagem no embarcadouro de Mato de Cão.

É véspera do dia de Natal, vou a caminho de Missirá, é ali que tenho a Estrela de Belém à minha espera. Portanto, parei em Mato de Cão, Vem ao meu encontro Manuel, luso-guineense, aqui houve uma quinta que desapareceu em 1964, finda a guerra, Manuel regressou, fez renascer das cinzas a agricultura, a destilaria, o embarcadouro donde a mancarra segue para Bissau. Na companhia de Manuel subo ao planalto de Mato de Cão de onde se avista a majestade do palmar até Sinchã Corubal.

Os Mandingas regressaram ao planalto, comove-me este bulício que nunca pudera partilhar no tempo em que aqui vim todos os dias para evitar os ataques às embarcações. Ao longe, em Chicri, reergue-se uma tabanca Balanta. Chicri, que fora sempre terra de combate. Assesto os binóculos, vejo gente azafamada.
Um céu eléctrico serve de abóbada, nesta contemplação. É quase dia de Natal, para marcar o evento (fim do Advento) os pássaros desandam silenciosamente para o sul. O tarrafo, aqui nesta margem do Geba estreito, começa a ser soterrado por uma maré cheia que se aproxima, teremos depois os roncos do macaréu, por ora o mangal é uma renda frágil de verde queimado por este estranho sol perene, para lá do mangal agita-se ao vento a cabeleira do palmeiral, na orla da circundante lala. Sente-se a fervura do dia, por ora convivemos com a branda aragem. Desço o planalto, subo ao embarcadoiro, desconjuntado, não há nenhuma canoa à volta. Aqui vim todos os dias, dias dos longos e exaltantes tempos que passei no Cuor, pedindo a Deus para que os barcos prosseguissem, incólumes, até ao seu destino. Deus escutou-me, venho agradecer-Lhe, agora que se aproxima a liturgia deste macaréu fascinante. A paisagem emudecida, espero, vai endurecer a argila da minha oração.

Ao fundo, em terras de Samba Silate, avisto agricultores Balantas que revolvem as terras, abrem diques, até se pode imaginar o som das mulheres a pilar arroz, na sombra dos frondosos poilões. Falta-me um cantil, uma bilha de barro ou mesmo uma garrafa de vidro revestida de couro pintado, preciso de me dessedentar, sentir-me apaziguado com a visão desta ramagem semelhante à do bambu, pressentindo as gramíneas, os juncos e o vigor dos tambores.

Hoje é o dia que prepara o renascimento, há um Deus-menino que vai alegrar as festas agrárias, iluminar as pulseiras de latão, excitar adolescentes com as suas danças da vaca ou do peixe-verga. Para este cerimonial de exaltação, trago comigo o braseiro de todos os incêndios de Missirá, do adobe calcinado, não há carapaça de cágado que me proteja dos sons dos tambores, apitos, ferros, matracas, até dos bombolons. Não há guerra, inveja, fanado, rito fúnebre, dança lúbrica, toada estrepitosa, corpos em contorção violenta, não há ráfia, peça de repouso, mezinha, feitiço, arma de arremesso, pano puríssimo, esteira, nada construído com mãos dentro do engenho da natureza, que se sobreponha a todas estas recordações que ponho nas mãos em oração, enquanto aguardo a chegada dos barcos que guardam no bojo arroz pilado, caju e óleo de palma.

É nisto que uma embarcação a motor se ouve nos meandros do Xime, vai aparecer suavemente neste Geba estreito. A bordo, vejo homens, mulheres e crianças, os olhos lampejam, contentes com o visitante que os saúda no embarcadouro, que lhes faz uma continência, parece a mesma continência que fazia a todos os barcos, com militares ou civis, muitos anos antes. Grito para mim, só para mim: “Hossana nas alturas!”. Esta a nossa boa acção, a boa obra é regressar sem um vinco de amargura e desejar a todos a paz na Terra, no clamor da boa vontade.

A embarcação a motor prossegue, perco-lhe a vista no tarrafo barrento, infinitos meandros há a percorrer até Bambadinca, senão mesmo até Bafatá.
Chegou a hora de continuar viagem, os amantíssimos guinéus de Mato de Cão, no Cuor foram saudados, alegremo-nos. Mais um abraço, Manuel. Sigo para uma pátria, Missirá.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12.

Foto: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados



Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança (LG)

Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados



Dei uma explicação à Benedita: foi tudo escrito intencionalmente ingénuo, elaborado como se eu voltasse a ser um jovem de 20 e poucos anos, como se aquela viagem fosse possível, como se aquele embarcadouro existisse, como se houvesse navegação no Geba estreito, como se fosse admissível uma continência quase militar, como se o Deus-menino precisasse de ser recordado lá para os lados de Mato de Cão. O que é verdade é que há agora Mandingas no planalto de Mato de Cão e Balantas em Chicri. Mas talvez o mais importante de tudo é que Manuel existe e Manuel foi e é o nome do Deus-menino. E mais escrevi: “Tenha paciência, deixei de poetar, fique-se com a mediocridade da minha resposta à sua encomenda”. E a sua resposta veio prontamente: “Olhe, diz o Mia Couto que viver é cumprir sonhos, esperar notícias, que a velhice não é idade, é um cansaço. Cansaço era perdermos ousadia, toda a confiança em recomeçar, em regenerar”.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5503: Notas de leitura (44): MEMÓRIA DOS DIAS SEM FIM, romance de Luís Rosa (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 21 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5512: O meu Natal no mato (25): Apanhados em flagrante, a pôr duas minas no 'sapatinho', na estrada Xime-Bambadinca (Libério Lopes, CCAÇ 526, 1963/65)