1. Comentário de Manuel Reis, com data de 22 de Outubro último, ao poste P7154 (*)
Amigos, camaradas:
Eu sei que não devia mexer no tema (**), atendendo a que sou considerado advogado em causa própria por um lado, e por outro lado o tema estar demasiado gasto. Longe de mim mais polémica sobre isto, apenas pretendo tecer alguns comentários sobre as fotos e esclarecer alguns pontos que foram referidos.
Diz o Indjai [, foto à direita,] que não possuíam armamento que destruíssem as placas de betão dos abrigos , o que contradiz o que nos foi relatado, em 1995 [, no antigo aquartelamento de Guileje,] pelo então Coronel (não me ocorre o nome) responsável pela Artilharia. Afirmou, então, que possuíam granadas perfurantes para o efeito.
Verdade? Mentira? Pouco importa. O que posso afirmar com total rigor é que nenhum dos abrigos com a placa de betão foi destruído, apesar de atingidos. Um abrigo antigo, de construção diferente, foi atingido e destruído, tendo aí morrido um furriel.
Ainda em 95 era bem visível o trabalho da nossa aviação, pelas crateras de grande dimensão que abriram no solo.
As granadas que se vêm, na sua maioria, estavam a descoberto em 95. É provável que, entretanto, tenham surgido mais. Na altura era impossível vasculhar todo o interior do aquartelamento.
O abrigo que se vê é idêntico a todos os outros, construídos com uma grossa placa de betão (40 cm?)
As granadas 11.4 eram em número elevado, já não existiam peças de artilharia para as despejar, em Maio de 73, e aguardavam a sua deslocação para outro local. As de calibre 14 foram despejadas às 3 da manhã, do dia 22, por 2 obuses.
À volta do aquartelamento existiam fornilhos comandados electricamente, mas o sistema não funcionava por deficiência da parte eléctrica. No meu meu tempo reviu-se uma parte da instalação, com alguns custos: 3 feridos, 2 deles com alguma gravidade.
Fora do aquartelamento praticamente não havia minas, a segurança exterior funcionava à base de armadilhas duplas nos 3 sentidos mais sensíveis: Gadamael, Mejo e Fronteira. Nesta última, havia uma mina, junto ao tronco de uma árvore, já próximo da picada que ligava Gandembel a Gadamael. As nossas milícias conheciam a sua localização, eram eles que a sinalizavam quando saíamos em patrulhamento para essa zona.
O modo como saímos de Guileje não nos permitia fazer as limpezas no interior e/ou exterior. Limpos éramos nós!
Permitam-me o atrevimento desta opinião: Se acaso Guileje tivesse o mesmo tipo de abrigos e valas que existiam em Gadamael, talvez não houvesse ninguém para contar.
Um abraço amigo.
Manuel Reis
[Ex-Alf Mil
da CCAV 8350, 1972/74] (***)
________________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 21 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7154: (De) Caras (5): Silate Indjai, um dos primeiros guerrilheiros do PAIGC a entrar em Guileje, dirige agora os trabalhos de detecção e limpeza de UXO (Pepito)
(**) Úl timo poste desta série > 7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6331: Dossiê Guileje / Gadamael (23): Algumas das razões do insucesso militar do PAIGC em Gadamael, Maio/Junho de 1973 (Nuno Rubim)
(***) Informação do próprio Reis:
(...) Tivemos 5 Comandantes de Companhia que passo a referir.
1º Abel Quintas- esteve no Cumeré e Guileje, sendo evacuado de Gadamael no dia 1 de Junho de1973;
2º Caetano - Esteve em Gadamael durante a permanência da C.CAV 8350 (2 de Junho de 73 a 18 de Julho de 73);
3º Patrocínio - Esteve no Cumeré e em Quinhamel de Agosto a Dezembro de 1973;
4º Reis - Esteve em Cumbijã e Colibuía, de Janeiro a Maio de 1974; [... mas este Reis não sou eu!!!]
5º Santos Vieira - Esteve em Cumbijã e Colibuía, de Maio a Agosto de 1974.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
Guiné 63/74 - P7217: O Nosso Livro de Visitas (102): Parabéns pelo vosso fantástico projecto (Maria João Rocha)
Guiné > Zona Leste > Geba > CCART 1690 (1967/69): Croqui do monumento erigido, em Geba, aos "mortos que tombaram pela pátria"... Em 1995, a jornalista e realizadora Diana Andringa visitou Geba e escreveu, a propósito deste monumento, semi-destruído, uma peça pungente, no Público,de 10 de Junho de 1995... Terá sido a "pedra de Geba" que motivou a realização do documentário As Duas Faces da Guerra (em co-autoria com o guineense Flora Gomes; filme, em duas partes, disponível no portal A Guerra Colonial).
A esta martirizada companhia pertenceu o nosso querido amigo e camarada A. Marques Lopes.
Foto: © A. Marques Lopes (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
1. Mensagem de uma nossa leitora, Maria João Rocha, com data de 29 de Outubro último... É mais uma voz no feminino a fazer-se ouvir no espaço aberto, heterogéneo e plural da nossa Tabanca Grande... Sabemos que muita gente, homens e mulheres, nos lê e nos vê, sem dar (nem ter que dar) a cara... Reconforta-nos, anima-nos e motiva-nos saber que o nosso blogue também atinge outros segmentos de público, para além da sua população-alvo, natural, que são os antigos combatentes... Gente do teatro, do cinema, da cultura, das artes, das letras, da ciência...Tratando-se de um mail pessoal, enviado ao editor L.G., transcreve-se apenas o excerto que pode interessar aos amigos e camaradas da Guiné que se sentam sob o poilão da Tabanca Grande e, por extensão, a todos os nossos leitores. Muito obrigado, Maria João. Boa sorte também para os seus projectos (LG) (*)
Caro Luís Graça:
Muitos parabéns pelo seu FANTÁSTICO projecto. Visito-o muitas vezes por curiosidade histórica (sou licenciada em História), por necessidade de relembrar o passado (tenho 60 anos) e também por alguma afinidade com a Guiné, onde estive, em 95, a realizar um documentário da autoria da Diana Andringa. Foi com ela que visitei e filmei o quartel de Geba (já li, neste blog, alguém falar de um texto que ela escreveu sobre isso) e lá me emocionei, não só com o memorial aos mortos mas também com as pinturas murais, com o silêncio que impera no local e com o "peso" da memória colectiva que lá perdura (**).
A passagem por aquele quartel foi um momento impressionante na minha vida. Nunca imaginei que um exército se alojasse em instalações tão pequenas, quase parece uma aldeia com pequenas casinhas. E o estado de degradação é arrepiante... Quantas vidas... Parece um local paradisíaco... (...)
Com os meus melhores cumprimentos.
Maria João Rocha
Lisboa
Nota de L.G.:
(*) Último poste desta série > ;27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7043: O Nosso Livro de Visitas (101): "O pobre camarada de Crestuma" (José Campos, presidente da Sociedade Filarmónica de Crestuma, Vila Nova de Gaia)
(**) Vd. poste da I Série do nosso blogue > 23 Junho 2005 > Guiné 69/71 - LXXIII: Antologia (4): 'Homenagem aos mortos que tombaram pela pátria': Geba, 1995 [Diana Andringa]
(...) Mortos. Estes nomes não podem ser senão de mortos. Guimarães, ...ndo Fernandes. Carlos A. Peixoto. ...ul C. Ferreira, ...ostinho Câmara, ...o Alves Aguiar, ...ime M.N. Estevão, ...sé A. V. Sousa, ...tónio D. Gomes.
Tudo em redor, aliás, fala de morte. As paredes em derrocada do que terá sido um quartel português. As viaturas a apodrecer sob o intenso sol africano. Os cacos de garrafas de cerveja. (Bebidas para enganar o medo? Suspensas por arame para, tinindo umas contra as outra, despertar os que dormissem ainda?).
E esta pedra caída, tumular.
Vivos, apenas os meninos que se cutucam, sorrindo, a olhar para nós, estranhos fotógrafos deste cemitério de metal e pedra.
A outra pedra, de pé, tem nomes de cidades, vilas, aldeias: Lisboa. S. Tirso. Moçâmedes. Alcobaça. Madeira. (Nas ilhas não haverá também povoações?) Ponte de Lima. Vila Nova de Ourem. Vila Pouca de Aguiar. Bissau. O tempo, ou a guerra, quebrou-lhe a parte de cima, e agora é uma pirâmide truncada, rasgada do lado direito, onde se inscrevem as primeiras letras dos postos, ou dos nomes, dos naturais dessas terras, que presumimos mortos.
De novo a primeira pedra, a que jaz por terra. A frente dos nomes dos que se presumem ter morrido, inscrevem-se o que supomos serem as datas dessas mortes: 1967, 1968. A última, na pedra, não em tempo, sobressalta-me: 21 de Agosto de 1967. Fiz vinte anos nesse dia. Nesse mesmo dia morreu António D. Gomes. Teria feito, sequer, os vinte anos?
Lembro-me de ter feito vinte anos. Das prendas dos meus pais. E pergunto-me como terão os pais do soldado António D. Gomes suportado a morte do seu filho. Se terão chegado um dia a conhecer este local onde uma pedra caída por terra assinala a data em que o perderam.
"Nós enterramos os nossos mortos nas nossas aldeias, ao lado das nossas casas... Os portugueses deveriam ter, também, um lugar para honrar os seus mortos, os que morreram aqui, durante a guerra", dissera-me, algumas horas antes, um antigo adversário. Aqui. Tão longe de casa, tão longe dos seus. Longe de mais para que possam trazer-lhes flores, arranjar-lhes as campas, preservar-lhes a memória.
Olho de novo as pedras, tentando compreender como se juntavam. Será a que jaz por terra a continuação da outra? Releio as terras e os nomes. Câmara pode ser da Madeira... Será mesmo? Sim. Lá estão em frente de Madeira o posto, sold., e as primeiras letras do seu nome: Ag...-
Agora cada morto tem o posto e a terra onde nasceu, excepto o primeiro, que parece ser de Lisboa, mas cujo posto e nome próprio se perderam, e João Alves Aguiar, de Ponte de Lima, a que o tempo corroeu o posto. Dois alferes, um furriel, sete soldados. Em cima, fragmentado, aquilo que parece a indicação do regimento a que pertenciam: ...RAL-1. ...Combate.
Postas assim as duas pedras em conjunto, apercebo-me de que o soldado que morreu no dia dos meus vinte anos era de Bissau, e de certa forma isso tranquiliza-me, porque não está, afinal, tão longe de casa- como se isso tivesse alguma importância depois de se estar morto, como se me tivesse contagiado essa lista de terras inscrita sobre a pedra, ou outras, sobre outras pedras encontradas ao longo da viagem, onde outros soldados, cabos, furriéis, escreveram como se a naturalidade fosse a sua primeira identificação e a mais forte, o nome da terra natal, primeiro, e só depois o posto, o nome, a data em que escreviam, por vezes uma frase de desesperança, algo como "até quando Deus quiser" — como que temendo que esse "até" fosse curtíssimo, coisa de poucas horas, minutos, talvez, e houvesse que inscrever urgentemente, sobre esses caminhos, placas, pontes, esse sinal de vida e de memória. (...)
Guiné 63/74 - P7216: Notas de leitura (164): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Outubro de 2010:
Queridos amigos,
Prossegue esta aventura dos livros e esta crónica de Luís Cabral é uma peça demasiado importante para a tratarmos com a ligeireza de uma curta recensão.
Queridos amigos,
Prossegue esta aventura dos livros e esta crónica de Luís Cabral é uma peça demasiado importante para a tratarmos com a ligeireza de uma curta recensão.
Já estou a sonhar com a noite de 17 de Novembro em que vou para a Guiné, levo uma mala de livros e uma série de encomendas.
Tremo de emoção só de pensar que haverá um dia em que me reúno com toda aquela malta que resistiu a 40 anos, o Fodé Dahaba está a preparar o grande encontro.
Tremo de emoção só de pensar que haverá um dia em que me reúno com toda aquela malta que resistiu a 40 anos, o Fodé Dahaba está a preparar o grande encontro.
A minha homenagem mais sincera era escrever sobre eles, dar-lhes a posteridade que por aqui lhes negámos, com a nossa indiferença.
Um abraço do
Mário
“Crónica da Libertação” (1), por Luís Cabral
Beja Santos
As memórias de Luís Cabral, digo sem qualquer hesitação, estão no topo da hierarquia das leituras obrigatórias no que toca ao conhecimento da vida do PAIGC, da personalidade de Amílcar Cabral e da evolução das lutas de libertação, dos anos 50 aos anos 70 (Cónica da Libertação”, por Luís Cabral, Edições O Jornal, 1984).
É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas.
Um abraço do
Mário
“Crónica da Libertação” (1), por Luís Cabral
Beja Santos
As memórias de Luís Cabral, digo sem qualquer hesitação, estão no topo da hierarquia das leituras obrigatórias no que toca ao conhecimento da vida do PAIGC, da personalidade de Amílcar Cabral e da evolução das lutas de libertação, dos anos 50 aos anos 70 (Cónica da Libertação”, por Luís Cabral, Edições O Jornal, 1984).
É uma crónica em que quase se endeusa o líder máximo do PAIGC, tal a admiração de Luís pelo irmão. Do princípio ao fim destas memórias, Amílcar Cabral é o autor do pensamento que guia o movimento revolucionário, é o teórico indiscutível, é ele quem elabora os documentos fundamentais, quem tece a estratégia da guerra, quem representa com fulgor o PAIGC nos areópagos internacionais, está no centro da gestão dos conflitos com os países limítrofes, é o militante infatigável, a fonte de coragem que animou um movimento de libertação desde que se constituiu a partir de um simples conjunto de pequenos burgueses de Bissau até ao Exército que se confrontou e fez respeitar pelas Forças Armadas portuguesas.
É um apanhado de recordações que abarca a história familiar, que passa pelo nascimento do PAIGC, por um certo olhar pela vida colonial portuguesa, uma invocação das figuras fundadoras daquele movimento, temos depois o desencadeamento da acção armada, tudo vai culminar com o assassinato do líder histórico.
É uma obra fundamental até pelo que não se diz ou aparece em tons cinzentos ou numa redacção que permite a leitura ambivalente. Porque o seu autor, uma das primeiras figuras do PAIGC, também não descura a verve crítica, mais ou menos intensa, sobre pessoas dentro e fora do partido. Uma obra assim, com centenas de páginas, e com informação de valor excepcional, merece ser tratada em longos haustos. É essa a intenção que vai acompanhar esta curta série de textos.
Tudo começa na intimidade da família Cabral, onde pontificou Juvenal Cabral, ainda hoje guardado no coração dos cabo-verdianos. Luís Cabral considera que foi neste ambiente inconfundível que nasceu a divisa do PAIGC: unidade e luta, pela vida de gente sujeita às secas inclementes e a muita pobreza.
É uma obra fundamental até pelo que não se diz ou aparece em tons cinzentos ou numa redacção que permite a leitura ambivalente. Porque o seu autor, uma das primeiras figuras do PAIGC, também não descura a verve crítica, mais ou menos intensa, sobre pessoas dentro e fora do partido. Uma obra assim, com centenas de páginas, e com informação de valor excepcional, merece ser tratada em longos haustos. É essa a intenção que vai acompanhar esta curta série de textos.
Tudo começa na intimidade da família Cabral, onde pontificou Juvenal Cabral, ainda hoje guardado no coração dos cabo-verdianos. Luís Cabral considera que foi neste ambiente inconfundível que nasceu a divisa do PAIGC: unidade e luta, pela vida de gente sujeita às secas inclementes e a muita pobreza.
Falecido Juvenal Cabral em 1951, Luís Cabral lançou-se ao trabalho, pouco depois Amílcar vai trabalhar nos serviços agrícolas na Guiné. Em 1953, Luís Cabral transfere-se para a Guiné e assiste às primeiras movimentações do irmão em torno da criação de um clube. O trabalho profissional de Amílcar Cabral permitiu-lhe percorrer todo o território da Província. Nasce um núcleo de amigos que pretenderam militar pelas liberdades políticas, tal foi o caso de Aristides Pereira, Fernando Fortes, Abílio Duarte e os irmãos Cabral.
Uma farmacêutica, Sofia Pomba Guerra, aparece como líder da oposição no processo eleitoral para a presidência da República e foi de uma grande influência sobre estes jovens. Depois, tem lugar uma reunião em 19 de Setembro de 1956, na casa onde residiam Aristides Pereira e Fernando Fortes, o n.º 9 C da Rua Guerra Junqueiro, em Bissau em que compareceram não só Aristides e Fernando Fortes como os irmãos Cabral, Júlio Almeida e Elysée Turpin (sobre este, consultar o site http://www.paigc.org/DEPOIM~1.HTM.
Luís Cabral descreve este último assim:
Luís Cabral descreve este último assim:
“Elysée, natural da Guiné, trabalhava numa empresa francesa que veio a cessar as suas actividades no país. Descendente de uma antiga família cristã de Bissau, também tinha parentes bastante perto no Senegal e na então Guiné francesa, o que lhe proporcionara a oportunidade de visitar aqueles países e seguir de perto a evolução política que ali se estava operando”.
O que se passou nessa reunião? Amílcar Cabral começou por falar na Guiné de Cabo Verde, sugerindo que embora a situação parecesse diferente nos dois países, o seu conteúdo era o mesmo, enumerou os fundamentos que tinham ligado os dois povos no passado. Procurou provar que a população cabo-verdiana tinha origem guineense e que para além dessa origem comum os dois povos estavam empurrados para a unidade. Luís Cabral escreve:
“Ou seríamos capazes de unir os nossos dois povos ou os colonialistas acabariam por levar guineenses para se baterem contra os cabo-verdianos em Cabo Verde, e cabo-verdianos para se baterem contra os guineenses, na Guiné”.
Li demoradamente este argumento cuja falsidade brada os céus. O espantoso é a convicção de Amílcar, uma inteligência superior, um intelectual conhecedor das poderosas diferenças entre os dois povos, declarar a enormidade sem uma hesitação. Continuando com a argumentação que terá sido usada por Amílcar nessa reunião histórica, ele referiu que a união destes dois povos ia reforçar a posição de gente que estava decidida a ser independente, a ter a sua própria personalidade.
Amílcar vaticinou uma luta longa e difícil. Prevendo a repressão, propôs a criação, na vanguarda do movimento nacionalista, um núcleo de militantes seguros, homogéneos e bem estruturados:
“A este núcleo de militantes saídos do nosso vasto trabalho de mobilização não devia pôr-se como objectivo unicamente a libertação nacional e independência. Isso seria, sim, a primeira etapa do grande combate e constituiria o meio indispensável para a grande obra que viria depois: a construção, na unidade forjada na luta, de uma nação guíneo-cabo-verdiana forte e progressiva”.
Não bastava pois a criação de um movimento de libertação, impunha-se um partido com programa. Fica-se sem saber o teor das discussões, se houve réplicas ou contestações. Luís Cabral diz que tinha acabado de nascer o PAIGC, com a sigla PAI. Amílcar, Aristides Pereira e Fernando Fortes adoptaram pseudónimos: Amílcar, Abel Djassi; Aristides, Alfredo Bangura; Fortes, Seidi Camara. Quem garantia as ligações deste núcleo era Luís Cabral. Aristides e Fortes começaram a sensibilização e a mobilização nos CTT e noutros ramos do funcionalismo público. Luís Cabral procurou na Casa Gouveia recrutar militantes. Foi assim que Vitor Saúde Maria, empregado de balcão da empresa, entrou nas fileiras do PAIGC, seguiu-se Carlos Correia, mais tarde figura proeminente. Foram logo bem-sucedidos na acção sindical, no caso o Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e Indústria da Guiné.
Amílcar Cabral, entretanto, transfere-se para Angola e assiste à fundação do MPLA, foi um dos seus promotores mais entusiastas. Mais tarde, em Paris, com os angolanos Mário de Andrade e Viriato da Cruz e moçambicano Marcelino dos Santos contribuiu para a criação do Movimento Anti-Colonialista, que passou a ter algum impacto nos meios estudantis.
Em 1958, tudo mudou com o não da Guiné dita francesa a De Gaulle. Amílcar viu a oportunidade de se lançar na luta de libertação. Em Bissau, com discrição, os fundadores do PAIGC intensificam o trabalho de mobilização. Amílcar aparece na Guiné e toma conhecimento de um outro grupo de nacionalistas, dirigido por Rafael Barbosa. Conversam e decidem a reunificação de esforços.
E chegamos ao episódio do massacre do Pijiguiti, estamos em 1959.
(Continua)
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7209: Agenda Cultural (89): Lançamento dos livros Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota e Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7199: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (4) (Mário Beja Santos)
Amílcar Cabral, entretanto, transfere-se para Angola e assiste à fundação do MPLA, foi um dos seus promotores mais entusiastas. Mais tarde, em Paris, com os angolanos Mário de Andrade e Viriato da Cruz e moçambicano Marcelino dos Santos contribuiu para a criação do Movimento Anti-Colonialista, que passou a ter algum impacto nos meios estudantis.
Em 1958, tudo mudou com o não da Guiné dita francesa a De Gaulle. Amílcar viu a oportunidade de se lançar na luta de libertação. Em Bissau, com discrição, os fundadores do PAIGC intensificam o trabalho de mobilização. Amílcar aparece na Guiné e toma conhecimento de um outro grupo de nacionalistas, dirigido por Rafael Barbosa. Conversam e decidem a reunificação de esforços.
E chegamos ao episódio do massacre do Pijiguiti, estamos em 1959.
(Continua)
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 2 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7209: Agenda Cultural (89): Lançamento dos livros Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota e Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7199: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (4) (Mário Beja Santos)
Gúiné 63/74 - P7215: Parabéns a você (167): António Martins de Matos, ex-Ten Pilav (BA 12, Bissalanca, 1972/74)
1. Hoje o nosso camarada e amigo António Martins de Matos tem direito a tratamento VIP, não por ser Tenente nem General, mas pela simples razão de que veio ao mundo, a este mundo, exactamente há 65 aninhos. Sob a copa frondosa, acolhedora, ruidosa e fraterna do poilão da nossa Tabanca Grande, vamos cantar-lhe os Parabéns a Você!, sob a batuta dos editores e mais um impressionante e afinadíssimo coro de 454 vozes, de que se destacam os artistas Miguel e Giselda Pessoa (meninos de coro da Igreja Pouco Ortodoxa de Bissalanca) e o Joaquim Mexia Alves (ex-fadista, ex-djila, revendedor de água de Perrier, no Leste da Guiné, há muitas luas atrás, e que gostava de andar de cu tremido nos helis e nos DO dos tugas).
Muita saúde e longa vida para o António (, foto actual, à direita), lídimo representante no nosso blogue dos pilav(es), uma espécie voadora que rasgou, com "coragem, astúcia e perícia", os céus do Século XX e que se recusa terminantemente em extinguir-se.
Honra lhe seja feita, o António é dos poucos camaradas que escolheu a carreira de armas, e que esteve connosco na Guiné, que vem aqui dar a cara, sem nunca puxar dos galões. António, grande tenente pilav(e), a tua presença na Tabanca Grande honra-nos, desafia-nos e motiva-nos para aguentarmo-nos... pelo menos até aos 100!
E o último a sair nem precisa de fechar a porta, porque a nossa Tabanca Grande (era assim que falávamos de Lisboa aos nossos camaradas guineenses, oriundos do recrutamento local...) não tem portas (nem janelas).
Muita saúde e longa vida para o António (, foto actual, à direita), lídimo representante no nosso blogue dos pilav(es), uma espécie voadora que rasgou, com "coragem, astúcia e perícia", os céus do Século XX e que se recusa terminantemente em extinguir-se.
Honra lhe seja feita, o António é dos poucos camaradas que escolheu a carreira de armas, e que esteve connosco na Guiné, que vem aqui dar a cara, sem nunca puxar dos galões. António, grande tenente pilav(e), a tua presença na Tabanca Grande honra-nos, desafia-nos e motiva-nos para aguentarmo-nos... pelo menos até aos 100!
E o último a sair nem precisa de fechar a porta, porque a nossa Tabanca Grande (era assim que falávamos de Lisboa aos nossos camaradas guineenses, oriundos do recrutamento local...) não tem portas (nem janelas).
Os editores (LG/CV/EMR/VB) (*)
Parabéns, António!
O António Martins de Matos e eu conhecemo-nos num longínquo dia de Outubro de 1964 - já passaram mais de 46 anos?! - quando iniciávamos a nossa carreira militar. Fomos contemporâneos em muitos momentos da nossa actividade profissional - no curso da Academia Militar, no curso de pilotagem, nos cursos de qualificação em diversos aviões e na comissão de serviço que fizemos na Guiné - embora aqui com um desfazamento de cerca de 6 meses na nossa chegada e saída - sendo eu o mais periquito...
Acontece que depois do nosso regresso voltámos a encontrar-nos na mesma Esquadra de Voo e nos cursos de promoção, desempenhando ainda as mesmas funções, embora em locais diferentes, como Comandantes de Esquadras de Voo e mais tarde Comandantes de Bases Aéreas. Com estes contactos persistentes ao longo de tanto tempo só poderia suceder uma de duas coisas - ou ficávamos amigos ou já nem nos podíamos ver...
Bom, como já terão percebido continuamos a ter um bom relacionamento, o que me levou a querer deixar escritas uma breves palavras no momento em que o António completa 65 aninhos.
Os leitores do blogue já terão percebido através dos seus escritos que o António M Matos costuma, naquilo em que se mete, "pegar o touro pelos cornos", neste caso significando simplesmente que não procura palavras doces para dar o seu parecer sobre determinado assunto. Naturalmente esta maneira franca de expor a sua opinião pode provocar nos mais susceptíveis alguns olhares críticos de quem se sente incomodado com o que ouviu. E sabemos da susceptibilidade que envolve certos temas aqui tratados, bem como algumas pessoas que neles estiveram envolvidos.
Recentemente outra faceta sua menos conhecida veio à tona com a publicação de alguns textos bem humorados, distantes dos pareceres que sobre assuntos sérios tem apresentado. Bom, afinal o homem é o mesmo, posso garantir...
Mas, para além do que já referi - e que muitos já terão detectado - gostaria de realçar o seu comportamento no decorrer da sua comissão na Guiné, (**)nomeadamente no verão quente de '73, em que ele e mais uns tantos tiveram que aguentar o esforço de guerra da Força Aérea, num cenário pouco definido em que as ameaças e as formas de as combater não estavam ainda perfeitamente identificadas. E certamente muitos dos que hoje lêem este blogue terão beneficiado da sua presença anónima por cima das suas cabeças, quando tal foi necessário. Disponibilidade, empenho e dedicação que demonstrou e que merecem todo o meu respeito e consideração.
António, que passes um Feliz Aniversário! E olha que a coisa não está muito mal, que já conseguimos andar cá mais 36 anos depois da Guiné...
Miguel Pessoa
Ten/PilAv BA12
1972-1974
(ii) Joaquim Mexia Alves
Aeroplim, aeroplim, aeroplano
subiu ao ar
caiu no mar
foi pró catano.
O aviador, o aviador
que o avoava
era dos tais, era dos tais
que não gostava…
Se bem me lembro,
era assim a letra de uma música
que se costumava cantar pela Força Aérea,
sobretudo quando ao fim da tarde
se bebiam umas cervejas
na Esquadra dos Falcões em Monte Real,
de que eu era visitante assíduo,
quase diário.
Estava aqui a pensar
no que havia de escrever
para homenagear o António Martins de Matos
no seu aniversário
e lembrei-me desta “cântico de guerra”
que assim aqui deixo
com o meu abraço forte e camarigo de parabéns
Aeroplim, aeroplim, aeroplano
subiu ao ar
caiu no mar
foi pró catano.
O aviador, o aviador
que o avoava
era dos tais, era dos tais
que não gostava…
Se bem me lembro,
era assim a letra de uma música
que se costumava cantar pela Força Aérea,
sobretudo quando ao fim da tarde
se bebiam umas cervejas
na Esquadra dos Falcões em Monte Real,
de que eu era visitante assíduo,
quase diário.
Estava aqui a pensar
no que havia de escrever
para homenagear o António Martins de Matos
no seu aniversário
e lembrei-me desta “cântico de guerra”
que assim aqui deixo
com o meu abraço forte e camarigo de parabéns
pelo seu “aniversaério”.
Que tenhas um grande dia, camarigo António.
Monte Real, 3 de Novembro de 2010
Que tenhas um grande dia, camarigo António.
Monte Real, 3 de Novembro de 2010
Joaquim Mexia Alves
___________
Nota de L.G.:
(*) Último poste desta série > 28 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7184: Parabéns a você (166): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) (Tertúlia / Editores)
(**) Como diria o Torcato Mendonça, estes gráficos a seguir são "falantes"... Não precisam de legenda... (i) Fiat G-91: Missões do António no TO da Guiné, "Missões Alerta 'versus' Planeadas"; (ii) Missões em Fiat G-91 e em F0-27... Em Agosto de 1973, ele "desenfiou-se" e foi para o Algarve que um Pilav(e) é de ferro, mas tem que desenferrujar (essa missão não consta da sua caderneta de voo)... Em 25 de Março de 1973, recorde-se, outro Pilav(e), de nome Miguel Pessoa, foi ao charco atingido pelo primeiro dos cinco Strela certeiros do PAIGC (em 60, eficácia= 8,33%).
Fonte: António Martins de Matos (2010)
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Guiné 63/74 – P7214: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (24): Cabrais
1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 31 de Outubro de 2010:
Caro Carlos Vinhal e Editores
Como é feriado, ou domingo hoje e feriado amanhã deve estar de serviço o Vinhal. Ele está de serviço de segunda a segunda e aos feriados e dias de festa. Por conseguinte, salvo contratempo de ultima hora de serviço está.
Assim sendo, mesmo com o baralhar desta hora, que é só uma e dá para aborrecer, deprime, veio com neve e frio, chuva e vento uma m... chatice. Raio isto por vezes faltam as palavras e não queria dizer merda.
Como dizia e, em virtude de andar por aí, um ou outro escrito sobre os antigos militares portugueses de origem africana, cortei dois escritos, voltei a cortar, arredondei e vou anexar.
O titulo pode ser pouco ortodoxo. Cabral, Cabrais e suscitar alguma dúvida. Nada tenho a ver com o nome deles.
Quanto ao tal americano ou alemão ou só doutorando de história também pouco tem a ver com isto. Fica a saber, já sabia certamente, que há o verbo fuzilar. Não se praticava nas Forças Armadas Portuguesas.
Quanto à tese que atinja os objectivos pretendidos.
Um bom feriado.
Abraços do Torcato
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 24
Cabrais
Por vezes escrevo e ponho o título depois. Neste caso pus antes. Um nome, dois homens e, segundo estou informado, bem ou mal, muito diferentes.
Vou só abordar dois casos, levemente, parecendo muito pouco com eles ter. Não faço qualquer consideração mais. Devia faze-lo. Penso mesmo que seria necessário dizer algo mais. Fica para depois. Terei esse direito? Não sei. Mas se o não tiver que interessa isso, se nada dissermos caímos no amorfismo.
Quantas vezes se encobrem em mantos de silêncio crimes? Quantas vezes se assistem ao tecer de louvores e não são tão merecidos assim?
1 – Cabral (Luís)
Quatro anos depois de Abril, diante do pelotão (?) de fuzilamento qual teria sido o seu comportamento?
Acredito ter olhado com algum desprezo para quem comandava, para quem iria puxar o gatilho e, certamente, antes de abraçar com o ultimo pensamento a família, desprezou os mandantes, os senhores dos efémeros poderes daquele jovem País.
Para quem dialogou tanto com a morte, feia, desdentada e velha, para quem tanto naquela guerra combateu, do nosso lado claro, para quem acreditou num País novo, penso, pelo que dele conheci não ter sido de outro modo.
É tão estranho caminhar para uma possibilidade de morte onde os homens se temem, não se vêem, não sabem se se encontram mas caminham no medo e, de repente no encontro, o medo voa, vai-se e eles ficam mas já não são eles no seu todo. A parte do medo foi e só a outra parte deles ficou. Se a morte acontece cai o silêncio e só se ouve o sair do cheiro adocicado do sangue dos feridos.
Ele e muitos como ele a isso se habituaram.
Conhecemo-nos em 1968. Ele comandava ou era segundo de um Pelotão de Caçadores Nativos. Gente boa e valente. Fizemos alguns trabalhos juntos. Um deles foi uma operação na zona do Enxalé. Foi fuzilado em Porto Gole, não muito distante dali, dez anos depois.
Dez anos a separarem aquela operação estúpida, aborrecida e com demasiados contactos com o IN.
Ficamos amigos. Enquanto estive na Guiné ia tendo contactos ou só noticias dele. O Pel Caç Nat passou a ter outro Comandante, curiosamente um amigo também. Ele, depois de breve sobreposição, regressou a Bissau. Continuou militar, passou depois para os Comandos Africanos. Há uma foto dele na capa do livro do Amadiu Djaló – Guineense, Comando, Português. Ele era isso.
Depois de Abril ficou pela Guiné. Certamente acreditou num País novo, num poder vindo de Cabral (Luís), e, porque não acreditou que se iam implementar os ideais de outro Cabral, já então falecido e, por isso mesmo ou não, a ser esquecido. Erro dele, desse meu camarada.
Gostava de saber o porquê. Gostava de saber porque quatro anos depois isso aconteceu. Ingenuidade minha.
Até gostava de saber porque não consigo esquecer, a morte dele e outros, e perdoar ainda menos.
Deformações. Gente mal formada ou, talvez melhor, deformada como eu.
Certamente teria, como eles, o mesmo fim.
II – Cabral (Amílcar)
Era correio dele. Entre Conacry e o Leste. Só? Talvez mais.
Tinha, se bem me lembro, o posto de Comandante do PAIGC.
Foi feito prisioneiro em Mina, base IN perto do Xitole e viajou para Bissau. Como habitualmente falaram com ele e respondeu, tanto assim que veio fazer, como guia, chamemos-lhe assim, uma operação connosco.
(Nota breve: - Cheguei a Bissau, vindo de férias em Portugal, cerca de um mês antes desta operação. Disseram-me, com todo o à-vontade, que iria ser feita uma grande operação na “zona onde eu trabalhava”. Com estas fugas de informação... lá ia a guerra… mas era demais creio eu. Mesmo com tanto bufo).
Como dizia: - na véspera da tal importante operação, foi recebida uma mensagem a anunciar a vinda de um guia especial.
Horas depois, montada a segurança ao héli, eis que chega o homem.
Fui buscá-lo. Porquê eu? Não me recordo. Recordo, isso sim, ter assinado uns papéis e ter havido uma cena caricata com umas algemas. Continuemos.
Os papéis assinados, entregues, salvo erro por um oficial carteiro, eram uma espécie de apólice de seguro de vida ou encomenda recebida com aviso de recepção. Acrescentaram, em reforço, a importância da encomenda e foram-se a caminho de Bissau, levantando a poeirada do costume.
Olhei para o tal guia e vi um homem de estatura média, magro, calção e camisa, olhar sereno. Nada lhe disse. Enquanto caminhava para a zona do comando pensava para comigo: - mas que vale a vida de um homem aqui neste buraco ou nos locais para onde vamos? Nada. Menos que zero ou zero a caminhar para menos infinito. Eu, ele, todos nós éramos peças de um sistema.
Só que sem garantia. Se tinham defeito ou avariavam era um problema. Ele devia saber e tanto assim que a uma pergunta minha nada respondeu. Entrei no jogo e entreguei-o a quem sabia tratá-lo com cuidado.
No dia seguinte lá fomos, cuidados redobrados, as dúvidas a aumentarem e a resposta veio pela madrugada; uma valente e bem montada emboscada. Nunca esqueço aquela emboscada. Quatro feridos no meu grupo e a raiva a descarrilar. Ele e certamente muitos carregadores balantas a observarem a nossa reacção. Com a acalmia e depois das evacuações fizemos o balanço, mais um balancete e, para mim, foi a evacuação num dos últimos hélis.
Voltei recuperado dois dias depois.
Há pouco tempo, ao ver um vídeo de um helitransporte as imagens bateram fortes em mim. O aviso do piloto: - um minuto… o rotor mais forte, três para um lado e dois para o outro, o capim a ondular forte e a agachar-se e a subir com o héli a sair, a espera breve a virar eternidade e a fuga para o desconhecido da mata. Só que, desta vez, estavam lá o Comandante da minha Companhia e os meus camaradas. As saudações, os risos breves e a alegria do regresso. Passado pouco tempo vi-o. Perguntei pelo comportamento dele. Fala muito pouco e a comida quase não lhe faz falta.
Como estávamos à espera de ordens e era quase final de dia, sentei-me perto dele. Passado pouco veio cumprimentar-me em francês. Respondi-lhe e perguntei se não falava português. Sabíamos que ele falava várias línguas e dialectos.
Sorriu e falou em português. E em português nos entendemos durante os dias que durou a operação. Não descrevo aqui e agora. Creio já dele aqui ter falado.
Por vezes torneava e não me respondia. Outras era ele a perguntar e eu a fugir à resposta. Um dia disse-me:
- Sou um homem morto. Se tento fugir vocês abatem-me. Se conseguisse o PAIGC fuzilava-me.
Olhei-o e pouco ou nada disse. Retive a palavra fuzilar. Nesse dia ou no outro perguntei-lhe e ele habilmente fugiu à questão. Era natural. Mesmo assim fiquei a saber bastante nas conversas tidas.
Regressou connosco. Vinha estafado e ajudamos na sua recuperação.
No outro dia um héli veio buscá-lo. Despedimo-nos com militares e amigos. Amigos de futuro incerto. Tinha a noção de que, naqueles dias tinha convivido com um homem de fortes convicções e saberes. Sabia o que dizer e até onde podia ir. Respeitava a nossa tropa e disse-o sem lisonja.
Talvez em Bissau o regresso tenha sido festejado com interrogatório mais duro. Talvez. Certo é que, passado pouco tempo no Batalhão foi recebida uma mensagem a pedir informações sobre um alferes. Tudo passou.
Dele nunca mais soube.
-Em nota de rodapé:
Devia ser feita uma análise ao PAI e ao PAIGC. Duas letras GC, dois Países hoje, colónias outrora, gentes que tinham e têm enormes diferenças. Um dia disso poderemos falar. Porque não?
Até poderá falar alguém. Devia ser feito.
Em Parte Incerta Outubro de 2010
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7196: Blogoterapia (166): Um abraço fraterno neste ultrapassar dos 2,1 milhões de visitas (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7096: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (23): Os Filhos d'um Deus Menor
Caro Carlos Vinhal e Editores
Como é feriado, ou domingo hoje e feriado amanhã deve estar de serviço o Vinhal. Ele está de serviço de segunda a segunda e aos feriados e dias de festa. Por conseguinte, salvo contratempo de ultima hora de serviço está.
Assim sendo, mesmo com o baralhar desta hora, que é só uma e dá para aborrecer, deprime, veio com neve e frio, chuva e vento uma m... chatice. Raio isto por vezes faltam as palavras e não queria dizer merda.
Como dizia e, em virtude de andar por aí, um ou outro escrito sobre os antigos militares portugueses de origem africana, cortei dois escritos, voltei a cortar, arredondei e vou anexar.
O titulo pode ser pouco ortodoxo. Cabral, Cabrais e suscitar alguma dúvida. Nada tenho a ver com o nome deles.
Quanto ao tal americano ou alemão ou só doutorando de história também pouco tem a ver com isto. Fica a saber, já sabia certamente, que há o verbo fuzilar. Não se praticava nas Forças Armadas Portuguesas.
Quanto à tese que atinja os objectivos pretendidos.
Um bom feriado.
Abraços do Torcato
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 24
Cabrais
Por vezes escrevo e ponho o título depois. Neste caso pus antes. Um nome, dois homens e, segundo estou informado, bem ou mal, muito diferentes.
Vou só abordar dois casos, levemente, parecendo muito pouco com eles ter. Não faço qualquer consideração mais. Devia faze-lo. Penso mesmo que seria necessário dizer algo mais. Fica para depois. Terei esse direito? Não sei. Mas se o não tiver que interessa isso, se nada dissermos caímos no amorfismo.
Quantas vezes se encobrem em mantos de silêncio crimes? Quantas vezes se assistem ao tecer de louvores e não são tão merecidos assim?
1 – Cabral (Luís)
Quatro anos depois de Abril, diante do pelotão (?) de fuzilamento qual teria sido o seu comportamento?
Acredito ter olhado com algum desprezo para quem comandava, para quem iria puxar o gatilho e, certamente, antes de abraçar com o ultimo pensamento a família, desprezou os mandantes, os senhores dos efémeros poderes daquele jovem País.
Para quem dialogou tanto com a morte, feia, desdentada e velha, para quem tanto naquela guerra combateu, do nosso lado claro, para quem acreditou num País novo, penso, pelo que dele conheci não ter sido de outro modo.
É tão estranho caminhar para uma possibilidade de morte onde os homens se temem, não se vêem, não sabem se se encontram mas caminham no medo e, de repente no encontro, o medo voa, vai-se e eles ficam mas já não são eles no seu todo. A parte do medo foi e só a outra parte deles ficou. Se a morte acontece cai o silêncio e só se ouve o sair do cheiro adocicado do sangue dos feridos.
Ele e muitos como ele a isso se habituaram.
Conhecemo-nos em 1968. Ele comandava ou era segundo de um Pelotão de Caçadores Nativos. Gente boa e valente. Fizemos alguns trabalhos juntos. Um deles foi uma operação na zona do Enxalé. Foi fuzilado em Porto Gole, não muito distante dali, dez anos depois.
Dez anos a separarem aquela operação estúpida, aborrecida e com demasiados contactos com o IN.
Ficamos amigos. Enquanto estive na Guiné ia tendo contactos ou só noticias dele. O Pel Caç Nat passou a ter outro Comandante, curiosamente um amigo também. Ele, depois de breve sobreposição, regressou a Bissau. Continuou militar, passou depois para os Comandos Africanos. Há uma foto dele na capa do livro do Amadiu Djaló – Guineense, Comando, Português. Ele era isso.
Depois de Abril ficou pela Guiné. Certamente acreditou num País novo, num poder vindo de Cabral (Luís), e, porque não acreditou que se iam implementar os ideais de outro Cabral, já então falecido e, por isso mesmo ou não, a ser esquecido. Erro dele, desse meu camarada.
Gostava de saber o porquê. Gostava de saber porque quatro anos depois isso aconteceu. Ingenuidade minha.
Até gostava de saber porque não consigo esquecer, a morte dele e outros, e perdoar ainda menos.
Deformações. Gente mal formada ou, talvez melhor, deformada como eu.
Certamente teria, como eles, o mesmo fim.
II – Cabral (Amílcar)
Era correio dele. Entre Conacry e o Leste. Só? Talvez mais.
Tinha, se bem me lembro, o posto de Comandante do PAIGC.
Foi feito prisioneiro em Mina, base IN perto do Xitole e viajou para Bissau. Como habitualmente falaram com ele e respondeu, tanto assim que veio fazer, como guia, chamemos-lhe assim, uma operação connosco.
(Nota breve: - Cheguei a Bissau, vindo de férias em Portugal, cerca de um mês antes desta operação. Disseram-me, com todo o à-vontade, que iria ser feita uma grande operação na “zona onde eu trabalhava”. Com estas fugas de informação... lá ia a guerra… mas era demais creio eu. Mesmo com tanto bufo).
Como dizia: - na véspera da tal importante operação, foi recebida uma mensagem a anunciar a vinda de um guia especial.
Horas depois, montada a segurança ao héli, eis que chega o homem.
Fui buscá-lo. Porquê eu? Não me recordo. Recordo, isso sim, ter assinado uns papéis e ter havido uma cena caricata com umas algemas. Continuemos.
Os papéis assinados, entregues, salvo erro por um oficial carteiro, eram uma espécie de apólice de seguro de vida ou encomenda recebida com aviso de recepção. Acrescentaram, em reforço, a importância da encomenda e foram-se a caminho de Bissau, levantando a poeirada do costume.
Olhei para o tal guia e vi um homem de estatura média, magro, calção e camisa, olhar sereno. Nada lhe disse. Enquanto caminhava para a zona do comando pensava para comigo: - mas que vale a vida de um homem aqui neste buraco ou nos locais para onde vamos? Nada. Menos que zero ou zero a caminhar para menos infinito. Eu, ele, todos nós éramos peças de um sistema.
Só que sem garantia. Se tinham defeito ou avariavam era um problema. Ele devia saber e tanto assim que a uma pergunta minha nada respondeu. Entrei no jogo e entreguei-o a quem sabia tratá-lo com cuidado.
No dia seguinte lá fomos, cuidados redobrados, as dúvidas a aumentarem e a resposta veio pela madrugada; uma valente e bem montada emboscada. Nunca esqueço aquela emboscada. Quatro feridos no meu grupo e a raiva a descarrilar. Ele e certamente muitos carregadores balantas a observarem a nossa reacção. Com a acalmia e depois das evacuações fizemos o balanço, mais um balancete e, para mim, foi a evacuação num dos últimos hélis.
Voltei recuperado dois dias depois.
Há pouco tempo, ao ver um vídeo de um helitransporte as imagens bateram fortes em mim. O aviso do piloto: - um minuto… o rotor mais forte, três para um lado e dois para o outro, o capim a ondular forte e a agachar-se e a subir com o héli a sair, a espera breve a virar eternidade e a fuga para o desconhecido da mata. Só que, desta vez, estavam lá o Comandante da minha Companhia e os meus camaradas. As saudações, os risos breves e a alegria do regresso. Passado pouco tempo vi-o. Perguntei pelo comportamento dele. Fala muito pouco e a comida quase não lhe faz falta.
Como estávamos à espera de ordens e era quase final de dia, sentei-me perto dele. Passado pouco veio cumprimentar-me em francês. Respondi-lhe e perguntei se não falava português. Sabíamos que ele falava várias línguas e dialectos.
Sorriu e falou em português. E em português nos entendemos durante os dias que durou a operação. Não descrevo aqui e agora. Creio já dele aqui ter falado.
Por vezes torneava e não me respondia. Outras era ele a perguntar e eu a fugir à resposta. Um dia disse-me:
- Sou um homem morto. Se tento fugir vocês abatem-me. Se conseguisse o PAIGC fuzilava-me.
Olhei-o e pouco ou nada disse. Retive a palavra fuzilar. Nesse dia ou no outro perguntei-lhe e ele habilmente fugiu à questão. Era natural. Mesmo assim fiquei a saber bastante nas conversas tidas.
Regressou connosco. Vinha estafado e ajudamos na sua recuperação.
No outro dia um héli veio buscá-lo. Despedimo-nos com militares e amigos. Amigos de futuro incerto. Tinha a noção de que, naqueles dias tinha convivido com um homem de fortes convicções e saberes. Sabia o que dizer e até onde podia ir. Respeitava a nossa tropa e disse-o sem lisonja.
Mansambo > Alf Mil Torcato Mendonça acompanhado pelo prisioneiro do PAIGC
Talvez em Bissau o regresso tenha sido festejado com interrogatório mais duro. Talvez. Certo é que, passado pouco tempo no Batalhão foi recebida uma mensagem a pedir informações sobre um alferes. Tudo passou.
Dele nunca mais soube.
-Em nota de rodapé:
Devia ser feita uma análise ao PAI e ao PAIGC. Duas letras GC, dois Países hoje, colónias outrora, gentes que tinham e têm enormes diferenças. Um dia disso poderemos falar. Porque não?
Até poderá falar alguém. Devia ser feito.
Em Parte Incerta Outubro de 2010
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7196: Blogoterapia (166): Um abraço fraterno neste ultrapassar dos 2,1 milhões de visitas (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 7 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 – P7096: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (23): Os Filhos d'um Deus Menor
Guiné 63/74 - P7213: Blogpoesia (82): Espero acabar os meus dias em Finete...(Jorge Cabral)
1. Texto de Jorge Cabral, em comentário ao poste P7206 (*)
Caro Mário!
Passaram quarenta anos!
Como estará Missirá?
E Finete?
E a minha querida Tabanca de Fá Mandinga?
Será difícil encontrares pessoas daquele tempo.
Porém, se conheceres Modji Dahaba,
lembra-lhe o seu namorado, o Alfero,
a quem ela escreveu para Missirá,
pedindo que a fosse raptar a Fá.
Mário,
olha também por mim todos os locais
e, na estrada Bambadinca – Bafatá,
corta para Fá;
dois quilómetros depois,
encontrarás uma grande árvore.
Deves colher as bagas.
Espero que as tragas…
antes que eu me transforme
em velho avinagrado (ou aviagrado).
Se chegares a ir a Fá,
sobe ao antigo Depósito da Água,
no qual eu assistia aos ataques a Missirá.
Lá dentro, encontrarás
um caderno
com poesia impublicável.
Repousa na Ponte do Rio Udunduma,
pesca no Rio Gambiel
e deita à água uma garrafa,
no Mato Cão.
Porque o Geba desagua no Tejo,
como na altura me convenci,
obrigando a minha amiga Flora,
a deslocar-se todos os dias
ao Cais das Colunas…
Talvez desta vez, a garrafa chegue…
quem sabe?!
Desejo-te uma empolgante Romagem.
Um Abraço
Jorge Cabral
Ps.: Espero acabar os meus dias em Finete.
Os dias…
porque, para as noites,
estou a preparar outro destino…
[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.](**)
Foto: © Luís Graça (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados [***]
_________________
Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 1 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7206: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (2): Os meus anfitriões em Santa Helena - Bambadinca
(**) Último poste da série Blogpoesia > 31 de Outubro de 2010 >Guiné 63/74 - P7202: Blogpoesia (81): Quem não se lembra?... (Augusto Vilaça)
(***) Foto: Lourinhã, Praia de Vale de Frades, fóssil de madeira e mineral de ferro, incrustados na rocha, da época do Jurássico Superior, ou seja, do tempo dos dinossauros (c. 150/200 milhões de anos)
Guiné 63/74 - P7212: Álbum fotográfico de José Gonçalves, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 4152/73 (Gadamael e Cufar,): Com o PAIGC em Gadamel (Maio) e em Cufar (Agosto)... e em ainda em Bolama
Guiné > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 4152/73 (1974) > Maio de 1974 > Apresentação do comissário político do PAIGC ao Régulo de Gadamael
Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 4152/73 (1974) > Agosto de 1974 (?) > Cerimónia da entrega do aquartelamento de Cufar ao PAIGC
Guiné > Bijagós > Bolama > s/d [ 1974] > O José Gonçalves junto ao monumento que dizia "Mussolini, ai caduti di Bolama" [ , De Mussolini, aos caídos em Bolama]
1. Mensagerm do José Gonçalves, nosso camarada e amigo que vive na diáspora, no Canadá, e que foi Alf Mil da CCAÇ 4152/73, tendo estado em Gadamael entre Janeiro e Julho de 1974:
Caro Luis:
Já há muito tempo que estou faltoso por não te em enviar as tais fotos da praxe, condição aliás do enlistamento no Blogue. Aqui tas envio com mais algumas como:
(i) a apresentação do comissário político ao Régulo de Gadamael;
(ii) a cerimónia da entrega de Cufar ao PAIGC;
(iii) e a do célebre monumento em Bolama que dizia "Mussolini ai caduti di Bolama" (**), e que eu dedico a todos aqueles camaradas que por lá passaram.
Cumprimentos para todos
José Gonçalves
______________
Notas de L.G.:
(*) Vd., poste de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7187: Memória dos lugares (84): Gadamael e as peripécias do pós-25 de Abril de 1974 (José Gonçalves, Canadá, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 4152, Jan/Jul 74)
Notas de L.G.:
(*) Vd., poste de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7187: Memória dos lugares (84): Gadamael e as peripécias do pós-25 de Abril de 1974 (José Gonçalves, Canadá, ex-Alf Mil Op Esp, CCAÇ 4152, Jan/Jul 74)
(**) Homenagem de Mussolini aos 5 aviadores italianos, vitimas de queda dos seus aparelhos em 5 de Janeiro de 1931 quando faziam a ligação Itália/Brasil com escala por Bolama.
Vd. também excerto publicado na I Serie do nosso blogue:
O monumento foi feito por italianos e com pedra italiana, vinda de Itália, para esse fim. Mandou-o erguer Mussolini e na sua base lá se encontra a coroa de bronze por ele oferecida, com estes dizeres — Mussolini ai cadutti di Bolama. Ao lado, a águia da fábrica de hidro-aviões Savoia, uma coroa com fáscios da Isotta-Fraschini e a coroa de louros da Fiat. É curioso notar que este será um dos raros monumentos do fascismo, no mundo, que no fim de 1945 não foi apeado. Virado para diante e no alto, o distintivo dos fáscios olha ainda com alienaria o futuro, no seu feixe de varas e no seu machado, a lembrar a grandeza da Roma do passado. (...)
Fonte: Extractos de: César, A. - Guiné 1965: contra-ataque. Braga: Pax, 1965.
Guiné 63/74 - P7211: (Ex)citações (103): Quando um homem tem de se conter para não partir a louça... (Manuel Reis)
1. Comentário de Manuel Reis [, foto à esquerda, Guileje, 1973], com data de 30 de Outubro passado, ao poste P7195, do Joaquim Mexia Alves:
Grande Camarigo:
De acordo com o teu texto. Fez-me recordar a carta que recebi este semana do Exército Português para ir prestar declarações sobre um camarada, que viveu comigo o tempo de guerra em Guileje e Gadamael, e que sofre de STRESS PÓS-TRAUMÁTICO DE GUERRA.
Há feridas que nunca se curam, se arrastam pelo tempo, sem que para tal as entidades responsáveis façam algo para melhorar a situação: olham para o lado e assobiam.
Este amigo desloca-se ao serviço de Psiquiatria no Centro de Saúde anexo ao Hospital Militar, desde 1986, e os serviços continuam a complicar-lhe a vida no que respeita à ajuda que precisa e merece.
Confessou-me que só a compreensão da mulher e da família mais próxima tem impedido um desenlace mais trágico. Há momentos em que a vida, para ele, deixa de fazer sentido.
Já devo ter sido solicitado para este tipo de declarações mais de 30 vezes, mas agora foi grande a surpresa. Desde 1986 não tiveram tempo nem disponibilidade para resolver um problema, de fácil visibilidade, que se apresenta com contornos de um certo dramatismo.
No dia 9 de Novembro lá me apresentarei, no Regimento de Artilharia Anti-Aérea nº1, para tentar ajudar o amigo e camarada Victor Santos. Terei de me conter, para não partir a louça, já que isso mexe com o meu estado de espírito, as minhas feridas estão controladas mas não debeladas. Como diz o Mexia Alves, a cauterização por vezes é lenta e difícil.
Nestes processos é fundamental a ajuda familiar, mas os convívios e as trocas de ideias sobre experiências vividas em guerra, com os nossos amigos e camaradas, constituem um óptimo complemento no acalmar das dores.
Um abraço amigo.
Manuel Reis
____________
Nota de L.G.:
Último poste desta série > 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7171: (Ex)citações (102): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Manuel Marinho / José Belo)
Grande Camarigo:
De acordo com o teu texto. Fez-me recordar a carta que recebi este semana do Exército Português para ir prestar declarações sobre um camarada, que viveu comigo o tempo de guerra em Guileje e Gadamael, e que sofre de STRESS PÓS-TRAUMÁTICO DE GUERRA.
Há feridas que nunca se curam, se arrastam pelo tempo, sem que para tal as entidades responsáveis façam algo para melhorar a situação: olham para o lado e assobiam.
Este amigo desloca-se ao serviço de Psiquiatria no Centro de Saúde anexo ao Hospital Militar, desde 1986, e os serviços continuam a complicar-lhe a vida no que respeita à ajuda que precisa e merece.
Confessou-me que só a compreensão da mulher e da família mais próxima tem impedido um desenlace mais trágico. Há momentos em que a vida, para ele, deixa de fazer sentido.
Já devo ter sido solicitado para este tipo de declarações mais de 30 vezes, mas agora foi grande a surpresa. Desde 1986 não tiveram tempo nem disponibilidade para resolver um problema, de fácil visibilidade, que se apresenta com contornos de um certo dramatismo.
No dia 9 de Novembro lá me apresentarei, no Regimento de Artilharia Anti-Aérea nº1, para tentar ajudar o amigo e camarada Victor Santos. Terei de me conter, para não partir a louça, já que isso mexe com o meu estado de espírito, as minhas feridas estão controladas mas não debeladas. Como diz o Mexia Alves, a cauterização por vezes é lenta e difícil.
Nestes processos é fundamental a ajuda familiar, mas os convívios e as trocas de ideias sobre experiências vividas em guerra, com os nossos amigos e camaradas, constituem um óptimo complemento no acalmar das dores.
Um abraço amigo.
Manuel Reis
____________
Nota de L.G.:
Último poste desta série > 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7171: (Ex)citações (102): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Manuel Marinho / José Belo)
Guiné 63/74 - P7210: Convívios (282): Jantar de Natal da Tabanca dos Melros e da Tabanca de Matosinhos, dia 10 de Dezembro de 2010 em Fânzeres, Gondomar
CONVÍVIOS
Numa organização conjunta da Tabanca dos Melros e da Tabanca de Matosinhos, vai realizar-se no próximo dia 10 de Dezembro de 2010, no Restaurante Choupal dos Melros/Quinta dos Choupos, Fânzeres, Gondomar, um Jantar/Convívio de Natal.
Este jantar, desta vez, alargado a todos os ex-combatentes do ultramar, seus familiares e amigos, tem também o objectivo de angariar fundos para a Tabanca de Matosinhos, destinados aos seus projectos de apoio em curso na Guiné-Bissau.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7197: Convívios (198): 6º Encontro da Tabanca do Centro, em Monte Real (Jero/Miguel Pessoa)
Guiné 63/74 - P7209: Agenda Cultural (89): Lançamento dos livros Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota e Tempo Africano, de Manuel Barão da Cunha (Mário Beja Santos)
AGENDA CULTURAL
Conforme mensagens do nosso Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com datas de 27 e 28 de Outubro de 2010, damos a conhecer as seguinte actividades culturais
CONVITES
1. Lançamento do Livro "Estranha Noiva de Guerra" de Armor Pires Mota, em Oiã, Oliveira do Bairro, dia 13 de Novembro de 2010
2. Em Aveiro, dia 19 de Novembro de 2010
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3. Lançamento do segundo livro da colecção Fim do Império, "Tempo Africano" de Manuel Barão da Cunha, em Oeiras, dia 16 de Novembro de 2010.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 26 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7177: Agenda Cultural (88): Lançamento da 2.ª Edição do livro Estranha Noiva de Guerra, de Armor Pires Mota, dia 10 de Novembro de 2010 na Associação 25 de Abril
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Guiné 63/74 - P7208: In Memoriam (59): A todos quantos deram graciosamente a sua vida (José Teixeira)
1. Mensagem de José Teixeira* (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2010:
Caríssimos editores
Não sei se vou a tempo de entrar pelas vossas mãos no Blogue, neste dia que nos leva até junto dos camaradas que morreram na Guerra de África.
Abraço fraterno
Zé Teixeira
IN MEMORIAM
A todos quantos deram graciosamente a sua vida, que o Criador os tenha no Seu seio, a viver no Reino da verdadeira paz
Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal de Bissau > Talhão Central dos Ex-Militares Portugueses > Março de 2008 > Um dos três talhões atribuídos aos militares portugueses, mortos durante a guerra colonial > No Talhão Esquerdo, estão as campas não identificadas: Estes serão porventura os restos mais dolorosos do que restou do nosso Império... Na Guiné haveria mais de uma centena de cemitérios improvisados (locais de enterramento), onde repousam restos mortais dos nossos camaradas... A dúvida é: esse trabalho de levantamento, sério e exaustivo, está feito ? Se sim, por quem ? E ainda se sim, como e quando foi divulgado ? Se não, porquê ? (LG).
Foto : © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.
Hoje, dia que convida a uma paragem na vida para olharmos para os entes queridos que partiram, deixei que a mente e o coração dessem as mãos e fizessem uma incursão pelas matas da Guiné. Deixei-me transportar para aqueles dois anos palmilhei seus caminhos, irmanado num corpo composto por milhares de jovens, brancos e pretos, que como eu, ali viveram, sofreram e testemunharam um tempo fora do tempo. Um tempo que cheirava a morte. Um tempo sem Norte, que não fosse, para muitos, só e apenas regressar vivo e escorreito. Um tempo de voltar à vida da qual fomos afastados pela força da máquina manipuladora de um sistema politico que tomara posse da nossa Pátria e teimando em não querer ver os sinais dos tempos caminhava orgulhosamente só, lançando os seus melhores filhos num precipício de sofrimento dor e morte.
Deixei-me conduzir de novo pelas tórridas picadas à procura das vidas que vi ou senti partirem para a eternidade. Dolorosa viagem que me levou a Ingoré, Sinchã Cherno, Quebo, Bakar Dado, Tchangue, Laia, Balana, Gandembel, Guiledje, Gadamael, Buba, Samba Sábali e tantos outros lugares, onde o sopro da morte passou nas asas de um estilhaço, de uma bala ou mina e ceifou a vida. Tantas vidas, que se foram antes do tempo, sem tempo para o viverem. Um direito adquirido ou doado por Deus no acto de nascer. Vi de novo o sangue daqueles corpos. Brancos e pretos. Homens combatentes, mulheres e crianças. Velhos sem força para fugirem para os abrigos.
Senti de novo o ruído das saídas do canhão sem recuo, que nos tentava apanhar pela calada da noite. O olho cego da Kalash, que vomitava fogo de morte. Do obus ou do Fiat que faziam rebentar suas mortíferas bombas nas matas ou tabancas consideradas inimigas, com que violência!
Palmilhei mentalmente na picada que me levou de Buba para Aldeia Formosa pela mata do Cantanhez. Ali em Bolola, estava a árvore que me escondeu das balas assassinas cuspidas do topo de uma palmeira, que teimavam em furar a terra à minha volta, procurando algo mais quente, a minha vida.
Reencontrei o buraco que a mina anticarro fez na bolanha dos passarinhos, segundos depois de eu ter saltado da viatura que a pisou. Gesto que me salvou a vida, embora o seu sopro me tenha atirado violentamente ao chão e me tenha pregado um grande susto.
Reencontrei-me a pensar. Afinal sou um homem de sorte. Eu fui dos que voltei para junto dos meus.
A todos quantos deram graciosamente a sua vida, que o Criador os tenha no Seu seio, a viver no Reino da verdadeira paz.
José Teixeira
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7025: (De) Caras (1): PAIGC: Abdu Indjai e os "sete homens" (Luís Graça / José Brás / José Teixeira / Mário Fitas)
Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7191: In Memoriam (58): Faleceu o Dr. Rogério da Silva Leitão (José Marques Ferreira)
Caríssimos editores
Não sei se vou a tempo de entrar pelas vossas mãos no Blogue, neste dia que nos leva até junto dos camaradas que morreram na Guerra de África.
Abraço fraterno
Zé Teixeira
IN MEMORIAM
A todos quantos deram graciosamente a sua vida, que o Criador os tenha no Seu seio, a viver no Reino da verdadeira paz
Guiné-Bissau > Bissau > Cemitério Municipal de Bissau > Talhão Central dos Ex-Militares Portugueses > Março de 2008 > Um dos três talhões atribuídos aos militares portugueses, mortos durante a guerra colonial > No Talhão Esquerdo, estão as campas não identificadas: Estes serão porventura os restos mais dolorosos do que restou do nosso Império... Na Guiné haveria mais de uma centena de cemitérios improvisados (locais de enterramento), onde repousam restos mortais dos nossos camaradas... A dúvida é: esse trabalho de levantamento, sério e exaustivo, está feito ? Se sim, por quem ? E ainda se sim, como e quando foi divulgado ? Se não, porquê ? (LG).
Foto : © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.
Hoje, dia que convida a uma paragem na vida para olharmos para os entes queridos que partiram, deixei que a mente e o coração dessem as mãos e fizessem uma incursão pelas matas da Guiné. Deixei-me transportar para aqueles dois anos palmilhei seus caminhos, irmanado num corpo composto por milhares de jovens, brancos e pretos, que como eu, ali viveram, sofreram e testemunharam um tempo fora do tempo. Um tempo que cheirava a morte. Um tempo sem Norte, que não fosse, para muitos, só e apenas regressar vivo e escorreito. Um tempo de voltar à vida da qual fomos afastados pela força da máquina manipuladora de um sistema politico que tomara posse da nossa Pátria e teimando em não querer ver os sinais dos tempos caminhava orgulhosamente só, lançando os seus melhores filhos num precipício de sofrimento dor e morte.
Deixei-me conduzir de novo pelas tórridas picadas à procura das vidas que vi ou senti partirem para a eternidade. Dolorosa viagem que me levou a Ingoré, Sinchã Cherno, Quebo, Bakar Dado, Tchangue, Laia, Balana, Gandembel, Guiledje, Gadamael, Buba, Samba Sábali e tantos outros lugares, onde o sopro da morte passou nas asas de um estilhaço, de uma bala ou mina e ceifou a vida. Tantas vidas, que se foram antes do tempo, sem tempo para o viverem. Um direito adquirido ou doado por Deus no acto de nascer. Vi de novo o sangue daqueles corpos. Brancos e pretos. Homens combatentes, mulheres e crianças. Velhos sem força para fugirem para os abrigos.
Senti de novo o ruído das saídas do canhão sem recuo, que nos tentava apanhar pela calada da noite. O olho cego da Kalash, que vomitava fogo de morte. Do obus ou do Fiat que faziam rebentar suas mortíferas bombas nas matas ou tabancas consideradas inimigas, com que violência!
Palmilhei mentalmente na picada que me levou de Buba para Aldeia Formosa pela mata do Cantanhez. Ali em Bolola, estava a árvore que me escondeu das balas assassinas cuspidas do topo de uma palmeira, que teimavam em furar a terra à minha volta, procurando algo mais quente, a minha vida.
Reencontrei o buraco que a mina anticarro fez na bolanha dos passarinhos, segundos depois de eu ter saltado da viatura que a pisou. Gesto que me salvou a vida, embora o seu sopro me tenha atirado violentamente ao chão e me tenha pregado um grande susto.
Reencontrei-me a pensar. Afinal sou um homem de sorte. Eu fui dos que voltei para junto dos meus.
A todos quantos deram graciosamente a sua vida, que o Criador os tenha no Seu seio, a viver no Reino da verdadeira paz.
José Teixeira
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 23 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7025: (De) Caras (1): PAIGC: Abdu Indjai e os "sete homens" (Luís Graça / José Brás / José Teixeira / Mário Fitas)
Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7191: In Memoriam (58): Faleceu o Dr. Rogério da Silva Leitão (José Marques Ferreira)
Guiné 63/74 - P7207: História da CCAÇ 2679 (41): Uma visita do Gen Spínola (José Manuel Matos Dinis)
1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 31 de Outubro de 2010:
Ora viva, Carlos!
Há algum tempo que não dou notícias da CCaç 2679, mas hoje retomo com o envio deste breve episódio.
Para a Tabanca Grande, e para ti em especial, dedicado editor e camarada,
Um grande abraço
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (41)
Uma visita do General Spínola
Dia 27 de Dezembro de 1970. Na modorra de Bajocunda, quando não tinha actividade operacional, passava uma boa parte do tempo na cama, à pai-Adão, tão fresco quanto possível, na legítima tarefa de descansar e deixar o tempo a passar. Dei-me conta do ruído do reactor de um héli que se aproximava. Depois, baixou, e abrandou as rotações até se imobilizar. Algum tempo após chegou a notícia de que o General tinha chegado. Ele que tinha passado a uns dez metros da minha janela escancarada, e nem me dei conta. Deixei-me estar. Passados alguns momentos, veio a notícia de que o Caco Baldé queria falar-nos, era para formar a Companhia. Já estavam a interferir com a minha tranquilidade.
O Gen Spínola numa das suas visitas ao interior da Guiné, desta feita a Mansabá.
Levantei-me e fui escanhoar a barba em frente a um pedaço de espelho que havia na casa-de-banho. Era conveniente melhorar o aspecto, não fosse cair mal a minha imagem. Quando regressei ao quarto, verifiquei que era o único furriel ausente da formatura que, espreitei da janela, já perfilava na parada. Vesti uma camisa, calças, calcei as botas, pus a boina, e lá fui. A Companhia dispunha-se à frente dos edifícios do Comando e da cantina o que, de certa maneira ocultava, a minha aproximação. No entanto, não havendo ninguém à frente do Pelotão, arrisquei, furei entre o pessoal, e tomei o meu lugar de destaque. O homem-grande notou, mas não se interrompeu na ladainha. Eu dera-me conta de que o Pelotão estaria representado aí a cinquenta por cento.
Logo a seguir, o Virgílio Fernandes aproximava-se em grande galhofa, ainda pelo exterior do arame que nos separava da área civil. Atirava o quico ao ar, e saltava-lhe em cima na queda, enquanto cantarolava qualquer coisa como se o Spínola trouxesse cervejinhas pequenininhas. Todos contiveram a vontade de rir, e o Virgílio, ao passar a pseudo-porta de armas, colocou o quico na cabeça, e com ar desengonçado integrou a formatura. No silêncio que provocou, deu-se ares de sério à espera da continuidade do discurso. O Soldado-Velho (como gostava de referir-se) seguiu com o olhar todo o movimento, mas prosseguia o relato sobre os traidores da retaguarda, quando passámos a ouvir os melodiosos acordes da gaita de beiços que o Antão Mendes, outro famoso elemento, produzia na aproximação à formatura. O General fez nova pausa, deu até a ideia de ser apreciador do género musical fixando o olhar no artista. O Antão ainda perguntou onde é que começava o Foxtrot, já que os Pelotões estavam juntos num só corpo, e integrou a formatura. O Velho devia estar meio baratinado, mas prosseguiu o discurso que ninguém entendia, pois não mencionava nomes, apenas referia que o inimigo estava na retaguarda. Quem seria o inimigo, o Marcelo? o Ministro do Ultramar? o Governo todo? o povo? ou quem desviava o melhor da Manutenção, as cervejinhas? Podíamos conjecturar tudo isto, mas não entendíamos tamanha falta disciplinar, nem o significado. Seria uma forma de estimular o pessoal de se insinuar como a pessoa em quem poderíamos confiar? Talvez, pois também se referiu aos soldados heróicos que garantiam a presença portuguesa em África. Depois, desejou-nos sorte e felicidades, um bom ano novo, e a Companhia recebeu ordem para destroçar.
Nenhum de nós teve coragem para denunciar a quadrilha de xicos que nos roubavam com desprezo, receosos do poder corporativo da tropa. E o estrondoso almoço de Natal tinha sido apenas há dois dias.
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Nota de CV:
(*) vd. poste de 25 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7174: Convívios (196): Encontro do Grupo do Cadaval no Couço-Coruche (José Manuel Matos Dinis)
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6968: História da CCAÇ 2679 (40): Vinte paus por um feitiço (José Manuel M. Dinis)
Ora viva, Carlos!
Há algum tempo que não dou notícias da CCaç 2679, mas hoje retomo com o envio deste breve episódio.
Para a Tabanca Grande, e para ti em especial, dedicado editor e camarada,
Um grande abraço
JD
HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (41)
Uma visita do General Spínola
Dia 27 de Dezembro de 1970. Na modorra de Bajocunda, quando não tinha actividade operacional, passava uma boa parte do tempo na cama, à pai-Adão, tão fresco quanto possível, na legítima tarefa de descansar e deixar o tempo a passar. Dei-me conta do ruído do reactor de um héli que se aproximava. Depois, baixou, e abrandou as rotações até se imobilizar. Algum tempo após chegou a notícia de que o General tinha chegado. Ele que tinha passado a uns dez metros da minha janela escancarada, e nem me dei conta. Deixei-me estar. Passados alguns momentos, veio a notícia de que o Caco Baldé queria falar-nos, era para formar a Companhia. Já estavam a interferir com a minha tranquilidade.
O Gen Spínola numa das suas visitas ao interior da Guiné, desta feita a Mansabá.
Levantei-me e fui escanhoar a barba em frente a um pedaço de espelho que havia na casa-de-banho. Era conveniente melhorar o aspecto, não fosse cair mal a minha imagem. Quando regressei ao quarto, verifiquei que era o único furriel ausente da formatura que, espreitei da janela, já perfilava na parada. Vesti uma camisa, calças, calcei as botas, pus a boina, e lá fui. A Companhia dispunha-se à frente dos edifícios do Comando e da cantina o que, de certa maneira ocultava, a minha aproximação. No entanto, não havendo ninguém à frente do Pelotão, arrisquei, furei entre o pessoal, e tomei o meu lugar de destaque. O homem-grande notou, mas não se interrompeu na ladainha. Eu dera-me conta de que o Pelotão estaria representado aí a cinquenta por cento.
Logo a seguir, o Virgílio Fernandes aproximava-se em grande galhofa, ainda pelo exterior do arame que nos separava da área civil. Atirava o quico ao ar, e saltava-lhe em cima na queda, enquanto cantarolava qualquer coisa como se o Spínola trouxesse cervejinhas pequenininhas. Todos contiveram a vontade de rir, e o Virgílio, ao passar a pseudo-porta de armas, colocou o quico na cabeça, e com ar desengonçado integrou a formatura. No silêncio que provocou, deu-se ares de sério à espera da continuidade do discurso. O Soldado-Velho (como gostava de referir-se) seguiu com o olhar todo o movimento, mas prosseguia o relato sobre os traidores da retaguarda, quando passámos a ouvir os melodiosos acordes da gaita de beiços que o Antão Mendes, outro famoso elemento, produzia na aproximação à formatura. O General fez nova pausa, deu até a ideia de ser apreciador do género musical fixando o olhar no artista. O Antão ainda perguntou onde é que começava o Foxtrot, já que os Pelotões estavam juntos num só corpo, e integrou a formatura. O Velho devia estar meio baratinado, mas prosseguiu o discurso que ninguém entendia, pois não mencionava nomes, apenas referia que o inimigo estava na retaguarda. Quem seria o inimigo, o Marcelo? o Ministro do Ultramar? o Governo todo? o povo? ou quem desviava o melhor da Manutenção, as cervejinhas? Podíamos conjecturar tudo isto, mas não entendíamos tamanha falta disciplinar, nem o significado. Seria uma forma de estimular o pessoal de se insinuar como a pessoa em quem poderíamos confiar? Talvez, pois também se referiu aos soldados heróicos que garantiam a presença portuguesa em África. Depois, desejou-nos sorte e felicidades, um bom ano novo, e a Companhia recebeu ordem para destroçar.
Nenhum de nós teve coragem para denunciar a quadrilha de xicos que nos roubavam com desprezo, receosos do poder corporativo da tropa. E o estrondoso almoço de Natal tinha sido apenas há dois dias.
__________
Nota de CV:
(*) vd. poste de 25 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7174: Convívios (196): Encontro do Grupo do Cadaval no Couço-Coruche (José Manuel Matos Dinis)
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6968: História da CCAÇ 2679 (40): Vinte paus por um feitiço (José Manuel M. Dinis)
Guiné 63/74 - P7206: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (2): Os meus anfitriões em Santa Helena - Bambadinca
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2010:
Operação saudade 2010 (2)
Os meus anfitriões na Guiné-Bissau, em Santa Helena, perto de Bambadinca
Para percorrer o Cuor a palmo, rever todos os locais onde vivi, abraçar pela última vez os amigos e as populações que ali viviam entre 1968 e 1969, ir a Mato de Cão, santuários do PAIGC, Enxalé, sentir aqueles meandros do Geba, e esperar o macaréu.
Para visitar as tabancas beafadas de Amedalai, Taibatá, Demba Taco e Moricanhe, por onde andei entre 1969 e 1970, chegar ao Xime e daí vaguear sem pressas até Ponta Varela, depois o Poidom, Ponta do Inglês e acabar no Burontoni e Baio, precisava de dois apoios logísticos fundamentais: comida, pernoita e banho; e viatura e condutor experiente, a dominar fluentemente o crioulo-português.
Aqui vai a fotografia dos meus anfitriões, vou ficar em Santa Helena, muito perto de Bambadinca. Lá fui, em tempos de guerra, eu e o Jorge Cabral, na altura em Fá.
Estou à espera do contacto do Jorge Cabral, ele quer passar os últimos anos (últimos? Mais 40,50 anos, insuportável, a chatear as bajudas...) em Finete, penso que ele quer que eu saiba preços de moranças T0, T1 e T2.
O maravilhoso disto tudo é que os anfitriões estão impacientes em conhecer-me.
Quanto à viatura, o meu Querido Fodé Dahaba cede-me um 4x4 adaptado ao local, Kalil, um dos seus filhos, será o comandante do bólide. Eu também.
já recebi encomendas do camarada Torcato, levo mensagens de paz e muita saudade. Vejam lá em que é que vos posso ser útil.
Um abraço do
Mário
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de 31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7199: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (4) (Mário Beja Santos)
Vd. primeiro poste da série de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7188: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (1): Carta ao meu querido amigo Fodé Dahaba
Operação saudade 2010 (2)
Os meus anfitriões na Guiné-Bissau, em Santa Helena, perto de Bambadinca
Para percorrer o Cuor a palmo, rever todos os locais onde vivi, abraçar pela última vez os amigos e as populações que ali viviam entre 1968 e 1969, ir a Mato de Cão, santuários do PAIGC, Enxalé, sentir aqueles meandros do Geba, e esperar o macaréu.
Para visitar as tabancas beafadas de Amedalai, Taibatá, Demba Taco e Moricanhe, por onde andei entre 1969 e 1970, chegar ao Xime e daí vaguear sem pressas até Ponta Varela, depois o Poidom, Ponta do Inglês e acabar no Burontoni e Baio, precisava de dois apoios logísticos fundamentais: comida, pernoita e banho; e viatura e condutor experiente, a dominar fluentemente o crioulo-português.
Aqui vai a fotografia dos meus anfitriões, vou ficar em Santa Helena, muito perto de Bambadinca. Lá fui, em tempos de guerra, eu e o Jorge Cabral, na altura em Fá.
Estou à espera do contacto do Jorge Cabral, ele quer passar os últimos anos (últimos? Mais 40,50 anos, insuportável, a chatear as bajudas...) em Finete, penso que ele quer que eu saiba preços de moranças T0, T1 e T2.
O maravilhoso disto tudo é que os anfitriões estão impacientes em conhecer-me.
Quanto à viatura, o meu Querido Fodé Dahaba cede-me um 4x4 adaptado ao local, Kalil, um dos seus filhos, será o comandante do bólide. Eu também.
já recebi encomendas do camarada Torcato, levo mensagens de paz e muita saudade. Vejam lá em que é que vos posso ser útil.
Um abraço do
Mário
__________
Notas de CV:
(*) Vd. último poste de 31 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7199: Notas de leitura (163): Guerra na Guiné, por Hélio Felgas (4) (Mário Beja Santos)
Vd. primeiro poste da série de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7188: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (1): Carta ao meu querido amigo Fodé Dahaba
Guiné 63/74 - P7205: Efemérides (54): O fatídico dia 1 de Novembro de 1965 (António Bastos)
1. Mensagem do nosso camarada António Bastos, ex-1.º Cabo do Pel Caç Ind 953, Teixeira Pinto e Farim, 1964/66, com data de 1 de Novembro de 2010:
Companheiro Carlos e toda a Tabanca Grande, bom dia.
Companheiro, vou escrever aqui umas linhas, pois este dia ficou-me gravado para sempre. Se entenderes que deves publicar, podes avançar, mas também agradecia que alteres alguns erros e o que entenderes pois sou um analfabeto nestas tecnologias e tenho a 4.ª classe feita a martelo.
Sou o António Paulo S. Bastos, do Pel Caç Ind 953.
Neste fatídico Dia 1 de Novembro de 1965, pelas 21:30, horas estava eu de passagem por Farim esperando transporte para Canjambari, quando se dá um rebentamento no Bairro da Morocunda em Farim que causou a morte a 27 pessoas, 70 feridos graves e vários ligeiros, todos civis.
As NT sofreram 1 ferido grave e um ligeiro.
O engenho, duas granadas reforçadas com explosivos, pregos e lâminas, foi lançado para o meio do batuque onde era suposto estar muita tropa, o que não aconteceu, porque se tinha feito uma operação e o pessoal estava ainda a descansar.
Pela primeira vez na Guiné um Dakota levantou de noite para proceder à evacuação dos feridos.
No dia seguinte já se encontravam presos na 1.ª Companhia de Caçadores em Nema (Farim), 60 indivíduos entre eles: Pedro Mendes Fernandes, Bernardo da Cunha, Raul Teixeira Barbosa, José Maria Jonet, Dionísio Dias Monteiro, Pedro Tertuliano, Dionísio da Silva Pires (este empregado dos C.T.T.) e muitos mais, todos empregados das repartições públicas e casas comerciais.
As prisões foram feitas pelo agente da Pide de nome Prodízio e militares da CCS do BArt 733.
Passados 43 anos, na minha terceira viagem a Farim, vou encontrar uma sobrevivente do massacre que na altura tinha 7 anos, a Cadi ou Kati, que como vêem ainda carrega as cicatrizes.
Ainda me recordo de ver o saudoso Capitão Silva Marques, comandante da 1.ª CC, a fazer, nos dias seguintes, o interrogatório aos presos em conjunto, com o Prodízio, diga-se que não era nada meigo.
Companheiros, tinha muito mais a publicar sobre este ataque mas fica para outra ocasião.
Um abraço para todos os camaradas da Tabanca Grande e um bom Feriado.
António Paulo,
Ex-1.º Cabo
Pel Caç Ind 953
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7115: Efemérides (53): Recordando os camaradas mortos na emboscada do Infandre no dia 12 de Outubro de 1970 (Jorge Picado)
Companheiro Carlos e toda a Tabanca Grande, bom dia.
Companheiro, vou escrever aqui umas linhas, pois este dia ficou-me gravado para sempre. Se entenderes que deves publicar, podes avançar, mas também agradecia que alteres alguns erros e o que entenderes pois sou um analfabeto nestas tecnologias e tenho a 4.ª classe feita a martelo.
Sou o António Paulo S. Bastos, do Pel Caç Ind 953.
Neste fatídico Dia 1 de Novembro de 1965, pelas 21:30, horas estava eu de passagem por Farim esperando transporte para Canjambari, quando se dá um rebentamento no Bairro da Morocunda em Farim que causou a morte a 27 pessoas, 70 feridos graves e vários ligeiros, todos civis.
As NT sofreram 1 ferido grave e um ligeiro.
O engenho, duas granadas reforçadas com explosivos, pregos e lâminas, foi lançado para o meio do batuque onde era suposto estar muita tropa, o que não aconteceu, porque se tinha feito uma operação e o pessoal estava ainda a descansar.
Pela primeira vez na Guiné um Dakota levantou de noite para proceder à evacuação dos feridos.
No dia seguinte já se encontravam presos na 1.ª Companhia de Caçadores em Nema (Farim), 60 indivíduos entre eles: Pedro Mendes Fernandes, Bernardo da Cunha, Raul Teixeira Barbosa, José Maria Jonet, Dionísio Dias Monteiro, Pedro Tertuliano, Dionísio da Silva Pires (este empregado dos C.T.T.) e muitos mais, todos empregados das repartições públicas e casas comerciais.
As prisões foram feitas pelo agente da Pide de nome Prodízio e militares da CCS do BArt 733.
Passados 43 anos, na minha terceira viagem a Farim, vou encontrar uma sobrevivente do massacre que na altura tinha 7 anos, a Cadi ou Kati, que como vêem ainda carrega as cicatrizes.
Ainda me recordo de ver o saudoso Capitão Silva Marques, comandante da 1.ª CC, a fazer, nos dias seguintes, o interrogatório aos presos em conjunto, com o Prodízio, diga-se que não era nada meigo.
Companheiros, tinha muito mais a publicar sobre este ataque mas fica para outra ocasião.
Um abraço para todos os camaradas da Tabanca Grande e um bom Feriado.
António Paulo,
Ex-1.º Cabo
Pel Caç Ind 953
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 12 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7115: Efemérides (53): Recordando os camaradas mortos na emboscada do Infandre no dia 12 de Outubro de 1970 (Jorge Picado)
Guiné 63/74 - P7204: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro) (1) : Dia de Todos os Santos de 1968
1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro* (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2010:
Caro companheiro, camarada e amigo Carlos Vinhal
Prosseguindo o que prometi há dias, aqui vai mais uma artigo se saudade e de recordação dos tempos de Bissau.
Era ainda o 3.º dia dos mais de 25 meses que por lá passei. Era dia 1 de Novembro, dia de todos os Santos. Estávamos em 1968. Mas a história sendo de certo modo trágica, não deixará de ter a sua utilidade nem que seja para que a memória não esqueça.
Para melhor lembrar aqueles que por lá passaram e informar os que ainda nada sabem da Guerra, vai também em anexo uma "paisagem" de GMCs daquele tempo já com mais de 40 anos andados naquela altura. Eram viaturas fora de série. Iam e voltavam sempre.
Uma vez vi uma que regressava do mato a rebocar outras 3 ou 4. Tinham força que nunca mais acabava. E não gastavam muito. Talvez uns 100 aos 50.
Por mera curiosidade, a foto tirada no Dia de Natal de 1968 na Companhia de Transportes, no QG em Bissau, com este tabanqueiro armado em cinéfilo.
Se e quando isto for publicado (seria interessante que fosse no próximo dia 1) agradeço-te que me informes.
Vou continuar esta tarefa de colaborar para avivar as memórias.
Um abraço
Carlos Pinheiro
Tabanqueiro 455
RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU (1)
Dia de Todos os Santos de 1968 em Bissau
Era dia de Todos os Santos. Era dia 1 de Novembro de 1968. Estava no meu terceiro dia de Guiné. Tinha chegado no UÍGE em 28 de Outubro. Estava “adido” nos Adidos, em Brá, porque tinha ido em rendição individual e o meu Batalhão, o 1911, regressaria no mesmo barco onde eu tinha ido. Coisas da tropa. Só que, mesmo depois da comissão terminada e o barco ao largo à espera, mesmo assim, o 1911 estava numa operação especial no Sul. E o UÍGE lá esperou mais de uma semana.
Por tudo isto, estava “adido” nos Adidos, um quartel de passagem onde as condições, ou a falta delas, eram inimagináveis. Uma cama? O que era isso para os “periquitos” (1))? Comida? Tenham calma. Podem lá ir fora e andar “desenfiados” que ninguém dá pela vossa falta. Devem ainda trazer algum “patacão”(2)) da Metrópole no bolso. Desenrasquem-se, era a ordem e assim íamos fazendo, conforme podíamos.
Tudo ali estava de passagem, à espera de um destino. Para os que chegavam, era a espera da guia de marcha para o destino. Para os outros, os que já tinham terminado a comissão, era a espera do regresso desejado. Portanto, como não havia tanta coisa, camas era o que mais faltava. Não havia mesmo. A malta desenrascava-se a dormir em cima daquelas caixas da tropa que na Metrópole serviam para guardarmos, debaixo da cama, as nossas coisas e especialmente o farnel de casa e as botas de sair, as botas engraxadas. Ali, não. Ali serviam mesmo de cama. A primeira noite foi horrível. Os mosquitos, aos milhares, dada a falta de higiene e de qualquer tipo de limpeza mais que evidente, e ainda por cima com as “bolanhas”(3)) ali à volta, sabiam escolher o sangue novo acabado de chegar. No outro dia ainda não havia feridas, mas tínhamos o corpo todo picado. Parecia que tínhamos rubéola. Havia portanto que arranjar um sítio para dormir e eu, à boa maneira portuguesa, acabei por ter sorte.
Ainda no cais, no dia anterior quando desembarquei, encontrei um conterrâneo, já “velhote” naquelas coisas da guerra. Era condutor na Companhia de Transportes. Tinha sido ele, e os seus camaradas que nos transportaram, na véspera, naquelas velhas GMC da 2.ª Grande Guerra, para os nossos destinos. Foi ele que no dia seguinte me procurou para me dizer que, provisoriamente, me arranjava uma cama, com mosquiteiro, na sua Companhia, no Quartel-General, em Santa Luzia. Foi uma pequena felicidade, já que a maior parte dos companheiros de viagem só muito mais tarde é que tiveram a tal cama com mosquiteiro. Sim, esta coisa do mosquiteiro era um pormenor mais que importante, porque assim os mosquitos não nos chegavam ao pelo.
Talvez por isso, talvez porque não conhecia ainda mais ninguém naquelas paragens, mas também com sentimento de agradecimento, convidei o meu amigo para um petisco nesse dia de Todos os Santos.
Foi ele que escolheu o sítio. Aliás, eu ainda não conhecia nada. E assim, lá fomos até Safim, nos arredores de Bissau, onde se comiam umas ostras que eu ainda não sabia apreciar, mas também se comia um bocado de leitão e se bebiam umas “bazookas” da Metrópole ou até mesmo de Angola, a Cuca ou a Nocal, ou de Moçambique, a 2M, salvo erro.
A páginas tantas, como soe dizer-se, a meio do repasto, começa a passar por cima de nós uma série de helicópteros, movimentos esses a que eu não estava habituado e certamente por isso perguntei a que se devia tal bailado. E o meu amigo não se fez rogado:
- Havia “ronco”(4)). Mas o que era “ronco”?
E ele lá me explicou. Havia “porrada” de certeza.
Mas nós lá fomos cumprindo a obrigação que nos tinha levado aquele sítio. A temperatura era elevada, a humidade era ainda maior. Havia portanto que refrescar o corpo com as bebidas frescas sem que notássemos que a mente ficava cada vez mais nublada.
Depois, lá voltámos ao quartel, a Santa Luzia, à procura do local do descanso. Mas qual descanso? Quando lá chegámos, de certo modo “alegres”, mandaram-nos calar porque a caserna estava cheia de feridos.
Feridos? Mas como? Foi como um balde água fria. O “calor” passou-nos de imediato. Caímos de imediato em nós. O que é que se tinha passado? Tinha sido só mais um caso. Dramático como muitos outros. Um “periquito”, talvez duma Companhia que tinha ido comigo no barco, ao subir para uma GMC na zona de Bula, a caminho do seu destino, deixou cair a sua bazuca armada e aconteceu um mar de dor e de sangue.
Nunca cheguei a saber quantos morreram, mas alguns acabaram ali a comissão que estavam a iniciar. Muitos feridos estilhaçados em tudo que foi sitio. Nos braços, nas pernas, tronco, na cabeça, onde calhou. Daí aquele bailado dos helicópteros. No meio dos feridos, alguns eram condutores da Companhia de Transportes. Por isso, o Hospital, o HM 241, o Hospital Militar de Bissau onde se fizeram autênticos milagres durante toda a guerra, pediu aquela Unidade para recrutar pessoal para ir dar sangue. Voluntários apareceram de imediato, como era habitual. O Unimog arrancou carregado, mas antes de chegar ao Hospital, despistou-se junto ao Bairro da Ajuda, já muito perto do Hospital. Mais feridos. Mais dor. Mais sangue. Mais sofrimento. Daí a razão de tantos feridos na caserna aquela hora. Eram os que estavam menos-mal. O Hospital estava cheio e teve que dar alta aos que inspiravam menos cuidados. Era a guerra na verdadeira acepção da palavra.
Foi assim o meu primeiro dia de Todos os Santos que passei na Guiné. Há dias que não se esquecem e aquele foi um deles.
1) Militar recém-chegado à Guiné.
2) Dinheiro.
3) Terrenos pantanosos.
4) “Festa”, pancada, algo de anormal.
Carlos Pinheiro
26.04.08
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 25 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7173: Tabanca Grande (250): Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG (STM/QG/CTIG, 1968/70)
Caro companheiro, camarada e amigo Carlos Vinhal
Prosseguindo o que prometi há dias, aqui vai mais uma artigo se saudade e de recordação dos tempos de Bissau.
Era ainda o 3.º dia dos mais de 25 meses que por lá passei. Era dia 1 de Novembro, dia de todos os Santos. Estávamos em 1968. Mas a história sendo de certo modo trágica, não deixará de ter a sua utilidade nem que seja para que a memória não esqueça.
Para melhor lembrar aqueles que por lá passaram e informar os que ainda nada sabem da Guerra, vai também em anexo uma "paisagem" de GMCs daquele tempo já com mais de 40 anos andados naquela altura. Eram viaturas fora de série. Iam e voltavam sempre.
Uma vez vi uma que regressava do mato a rebocar outras 3 ou 4. Tinham força que nunca mais acabava. E não gastavam muito. Talvez uns 100 aos 50.
Por mera curiosidade, a foto tirada no Dia de Natal de 1968 na Companhia de Transportes, no QG em Bissau, com este tabanqueiro armado em cinéfilo.
Se e quando isto for publicado (seria interessante que fosse no próximo dia 1) agradeço-te que me informes.
Vou continuar esta tarefa de colaborar para avivar as memórias.
Um abraço
Carlos Pinheiro
Tabanqueiro 455
RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU (1)
Dia de Todos os Santos de 1968 em Bissau
Era dia de Todos os Santos. Era dia 1 de Novembro de 1968. Estava no meu terceiro dia de Guiné. Tinha chegado no UÍGE em 28 de Outubro. Estava “adido” nos Adidos, em Brá, porque tinha ido em rendição individual e o meu Batalhão, o 1911, regressaria no mesmo barco onde eu tinha ido. Coisas da tropa. Só que, mesmo depois da comissão terminada e o barco ao largo à espera, mesmo assim, o 1911 estava numa operação especial no Sul. E o UÍGE lá esperou mais de uma semana.
Por tudo isto, estava “adido” nos Adidos, um quartel de passagem onde as condições, ou a falta delas, eram inimagináveis. Uma cama? O que era isso para os “periquitos” (1))? Comida? Tenham calma. Podem lá ir fora e andar “desenfiados” que ninguém dá pela vossa falta. Devem ainda trazer algum “patacão”(2)) da Metrópole no bolso. Desenrasquem-se, era a ordem e assim íamos fazendo, conforme podíamos.
Tudo ali estava de passagem, à espera de um destino. Para os que chegavam, era a espera da guia de marcha para o destino. Para os outros, os que já tinham terminado a comissão, era a espera do regresso desejado. Portanto, como não havia tanta coisa, camas era o que mais faltava. Não havia mesmo. A malta desenrascava-se a dormir em cima daquelas caixas da tropa que na Metrópole serviam para guardarmos, debaixo da cama, as nossas coisas e especialmente o farnel de casa e as botas de sair, as botas engraxadas. Ali, não. Ali serviam mesmo de cama. A primeira noite foi horrível. Os mosquitos, aos milhares, dada a falta de higiene e de qualquer tipo de limpeza mais que evidente, e ainda por cima com as “bolanhas”(3)) ali à volta, sabiam escolher o sangue novo acabado de chegar. No outro dia ainda não havia feridas, mas tínhamos o corpo todo picado. Parecia que tínhamos rubéola. Havia portanto que arranjar um sítio para dormir e eu, à boa maneira portuguesa, acabei por ter sorte.
Ainda no cais, no dia anterior quando desembarquei, encontrei um conterrâneo, já “velhote” naquelas coisas da guerra. Era condutor na Companhia de Transportes. Tinha sido ele, e os seus camaradas que nos transportaram, na véspera, naquelas velhas GMC da 2.ª Grande Guerra, para os nossos destinos. Foi ele que no dia seguinte me procurou para me dizer que, provisoriamente, me arranjava uma cama, com mosquiteiro, na sua Companhia, no Quartel-General, em Santa Luzia. Foi uma pequena felicidade, já que a maior parte dos companheiros de viagem só muito mais tarde é que tiveram a tal cama com mosquiteiro. Sim, esta coisa do mosquiteiro era um pormenor mais que importante, porque assim os mosquitos não nos chegavam ao pelo.
Talvez por isso, talvez porque não conhecia ainda mais ninguém naquelas paragens, mas também com sentimento de agradecimento, convidei o meu amigo para um petisco nesse dia de Todos os Santos.
Foi ele que escolheu o sítio. Aliás, eu ainda não conhecia nada. E assim, lá fomos até Safim, nos arredores de Bissau, onde se comiam umas ostras que eu ainda não sabia apreciar, mas também se comia um bocado de leitão e se bebiam umas “bazookas” da Metrópole ou até mesmo de Angola, a Cuca ou a Nocal, ou de Moçambique, a 2M, salvo erro.
A páginas tantas, como soe dizer-se, a meio do repasto, começa a passar por cima de nós uma série de helicópteros, movimentos esses a que eu não estava habituado e certamente por isso perguntei a que se devia tal bailado. E o meu amigo não se fez rogado:
- Havia “ronco”(4)). Mas o que era “ronco”?
E ele lá me explicou. Havia “porrada” de certeza.
Mas nós lá fomos cumprindo a obrigação que nos tinha levado aquele sítio. A temperatura era elevada, a humidade era ainda maior. Havia portanto que refrescar o corpo com as bebidas frescas sem que notássemos que a mente ficava cada vez mais nublada.
Depois, lá voltámos ao quartel, a Santa Luzia, à procura do local do descanso. Mas qual descanso? Quando lá chegámos, de certo modo “alegres”, mandaram-nos calar porque a caserna estava cheia de feridos.
Feridos? Mas como? Foi como um balde água fria. O “calor” passou-nos de imediato. Caímos de imediato em nós. O que é que se tinha passado? Tinha sido só mais um caso. Dramático como muitos outros. Um “periquito”, talvez duma Companhia que tinha ido comigo no barco, ao subir para uma GMC na zona de Bula, a caminho do seu destino, deixou cair a sua bazuca armada e aconteceu um mar de dor e de sangue.
Nunca cheguei a saber quantos morreram, mas alguns acabaram ali a comissão que estavam a iniciar. Muitos feridos estilhaçados em tudo que foi sitio. Nos braços, nas pernas, tronco, na cabeça, onde calhou. Daí aquele bailado dos helicópteros. No meio dos feridos, alguns eram condutores da Companhia de Transportes. Por isso, o Hospital, o HM 241, o Hospital Militar de Bissau onde se fizeram autênticos milagres durante toda a guerra, pediu aquela Unidade para recrutar pessoal para ir dar sangue. Voluntários apareceram de imediato, como era habitual. O Unimog arrancou carregado, mas antes de chegar ao Hospital, despistou-se junto ao Bairro da Ajuda, já muito perto do Hospital. Mais feridos. Mais dor. Mais sangue. Mais sofrimento. Daí a razão de tantos feridos na caserna aquela hora. Eram os que estavam menos-mal. O Hospital estava cheio e teve que dar alta aos que inspiravam menos cuidados. Era a guerra na verdadeira acepção da palavra.
Foi assim o meu primeiro dia de Todos os Santos que passei na Guiné. Há dias que não se esquecem e aquele foi um deles.
1) Militar recém-chegado à Guiné.
2) Dinheiro.
3) Terrenos pantanosos.
4) “Festa”, pancada, algo de anormal.
Carlos Pinheiro
26.04.08
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 25 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7173: Tabanca Grande (250): Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS Op MSG (STM/QG/CTIG, 1968/70)
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