Queridos amigos,
Só hoje soube da perda do Humberto Reis*, a quem me une tanta admiração e respeito. Devo-lhe imenso e a ingratidão não é o meu forte.
Estarrecido com a notícia, qual marretada, ocorreu-me prestar-lhe esta homenagem tão sentida. Não pode haver excesso quando o excessivo é a dor que ele sente.
Um abraço do
Mário
A ressurreição dos soldados
Beja Santos
Meu profundamente estimado Humberto,
Tu não sabes, parto sempre para férias sem telemóvel nem computador, para mim é um perfeito calvário manter uma comunicação em permanência, advertindo o interlocutor que ando fora de portas e que regresso no dia tal; acima de tudo, e dentro de certos limites, deixo pendência sobre tudo aquilo que é, enfaticamente, resolúvel uns tempos mais tarde.
Serve isto para te explicar que estive ausente de 4 a 18, só hoje de manhã, estuporado, dei com a calamidade que se abateu sobre a tua vida. Se recorro a um comentário público é porque muito te devo e porque muito te admiro, desde há décadas. Sempre apreciei a tua disponibilidade e a integridade do teu carácter. Devo-te inúmeras ajudas, desde os teus comentários e apreciações quando redigi dois livros sobre a nossa Guiné, foste insuperável com as imagens que puseste à minha disposição, devo-te a capa do Tigre Vadio, quando tu fotografaste do ar o esplendor do Geba estreito, aquele rio que literalmente separa a Guiné e une a minha juventude ao sénior que sou. Recordo o teu cuidado em trazeres-me as cartas geográficas que me garantiram fidedignidade na reconstituição dos meus passos em vários regulados e a prenda que, graças a ti, entreguei no INEP, as valiosas cartas que tinham desaparecido desde a guerra de 1998-1999 e que entreguei ao seu director, Dr. Mamadu Jao, que as recebeu emocionado. Não posso, pois, calar a consternação que sinto pela tua perda. Imagino o estado lastimoso em que te encontras. Aperto-te no meu peito.
Ocorre-nos sempre nestas circunstâncias juntar umas frases com empurrões de coragem e abraços de companheirismo. Tu mereces muito mais, tal o respeito que sinto por ti. Venho abraçar-te com palavras, contando-te uma experiência (por acaso, duas) que vivi nas minhas férias e que delego na tua dor. É a minha possível homenagem, curvado diante de ti.
Sempre às voltas com as minhas prosas remendadas, tenho procurado um final singular para a Viagem do Tangomau. A minha ida à Guiné, em Novembro passado, e para a qual tu colaboraste, foi determinante para encontrar os elementos cénicos apropriados. Mas faltava-me um dado subtil, uma espécie de apoteose para o reencontro com a nossa gente de Bambadinca e arredores. Foi nessa pesquisa que descobri o nome de Stanley Spencer, um artista britânico que combateu na frente de Salónica, durante a I Guerra Mundial. Sir Stanley Spencer (1891-1959) recebeu a encomenda para pintar uma capela de um proprietário da região de Hampshire, não muito distante de Oxford, onde eu estava a viver. Spencer deixou para a posteridade uma espantosa colecção de óleos num monumento artístico muito visitado, a Sandham Memorial Chapel. Meti-me ao caminho e fui admirar esta obra imorredoira, um políptico assombroso.
Diferente de tudo o que são, habitualmente, os relatos de guerra, o pintor exalta cenas do quotidiano, desde o tratamento dos feridos em enfermarias, as instruções de um oficial aos seus soldados, a lavagem de roupas na lavandaria, um banal quotidiano onde não há armas e a dor aparece transfigurada pela camaradagem que une todos aqueles jovens num estranho ermo, em local indecifrável. Porém, onde os visitantes permanecem mais tempo estarrecidos é diante do painel do altar central, intitulado A Ressurreição dos Soldados, por ali andei, em transe, e digo-te sem vergonha, ofuscado pela genialidade da proposta pictórica: os soldados ressurgem das suas tumbas, trazem a sua cruz, os seus equipamentos, até as suas alimárias, e como num Juízo Final, encaminham-se para uma figura de feições serenas e vestes brancas. Como não foi possível tirar fotografia com flash e não tenho o teu talento para captar o essencial desta beleza, ficas com a imagem possível.
Nesta ressurreição dos soldados transmito-te a essência do que foi, é e será a ternura de te ter como amigo, de ressurgirmos sempre nas venturas e desventuras, e mesmo nos pontapés do destino e nestas mágoas das nossas perdas. Aqui encontramo-nos sempre, aqui precisamos muito pouco de nos reconfortar com palavras, somos aqueles soldados da frente de Bambadinca, a frente que nos coube na roda do destino.
A ressurreição dos soldados, por Sir Stanley Spencer
O oficial lê o mapa e os soldados colhem flores, por Sir Stanley Spencer
Um soldado selecciona a roupa à saída da lavandaria (pormenor), por Sir Stanley Spencer
Vitral da capela de Sir Michael Sobell House, por Vital Peeters, 1996
Por razões que não cabem aqui mencionar, fui visitar amiudadas vezes, num subúrbio de Oxford, uma moribunda que ali espera a sua hora. Nesse local onde se assistem doentes terminais há uma capela com um vitral muito singelo mas com grande potencialidade apologética para as viagens que nos libertam da condição humana. Como sempre faço, aqui me recolhi e rezei por todos os nossos mortos, os da nossa guerra e aqueles que vêem associados à camaradagem que instituímos até ao fim dos nossos tempos. E se me permites, deixo-te aqui o espírito de uma pomba que partiu para o seu refúgio, é o Espírito que se foi sentar à direita de Deus Pai.
Desculpa ter sido longo e espero não te magoar por publicitar por este meio o turbilhão que me sacudiu logo de manhã quando soube da morte desse desvelo da tua vida.
Até sempre, abraçando-te afectuosamente,
Mário
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 18 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8290: In Memoriam (79): Teresa Reis (1947-2011). Agradecimento do nosso camarada e amigo Humberto Reis