1. Mensagem do nosso camarada José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 17 de Dezembro de 2011:
Acabadinho de chegar do Espírito Santo, Hospital de Évora e não banco ou terceira pessoa da santíssima trindade, busquei no sítio do blogue as reacções que o meu último comentário transformado em poste* tinha conseguido reunir e gostei do que li.
Gostei dos que… gostaram e gostei, juro que não menos, dos que não gostaram.
Isto dito assim, pode parecer aquela história da nossa meninice
“o Gustavo gostava da Gustava…”, mas acreditem camaradas que não o boto deste modo por brinquedo mas porque seriamente me preocupa muito mais a falta de ideias e de opiniões ou a descoragem (sic) de as colocar, do que o desacordo em si próprio como sinal humano das diferenças ou como prova de que a verdade não será nunca universal, não decorrendo daí mal ao mundo se todos soubermos dessa certeza e nos respeitarmos nas diferenças que aparentemente nos separam mas na verdade dão sentido, coesão e beleza ao mundo.
Sei que dirão alguns que passaram já tantos dias que não se justifica voltar eu à questão, correndo o risco de reabrir querelas e incómodos. Porque assim não creio e porque tenho o debate entre contrários mais por positivo do que por negativo, contrario tais opiniões e aqui estou.
Começo por assegurar que, a meu ver, do que disse então, não há razão para retirar nem uma vírgula, excepto se quisesse imitar estilo e forma de Saramago, coisa que não quero por não gostar de macaqueações e por claramente me sentir incapaz para tal exercício.
E que disse eu, então?
Primeiro,
“que não entrava em comentários acerca de torturas e assassinatos praticados por gente do PAIGC a conterrâneos seus que lutaram do nosso lado, alguns mesmo, a quem nunca chamarei heróis porque o que os animava era mais uma sanha guerreira e algumas vezes mesmo ferozmente assassina, do que esse tal amor a uma bandeira que não poderiam sentir enquanto símbolo de centenas de anos de história de um povo que conheciam apenas nas relações coloniais”.
Disse em segundo que
“Sempre achei que o seu engajamento nas nossas fileiras se deveu mais a acidentes na sequência das relações de origem tribal ou mesmo pessoal entre os protagonistas dos acontecimentos, do que a devoções nacionalistas, e que alguns ficaram do outro lado obrigados ou por acidente e outros do nosso lado por conveniências de momento".
Em terceiro lugar disse que
“não eram melhores uns que os outros, como seres humanos, senão na diferença de carácter que nos distingue a todos, havendo gente boa e má dos dois lados, se quisermos reduzir o conceito de bom e de mau a esta nota simplificada".
Vejamos uma a uma estas três afirmações para tentarmos descobrir nelas a marca que o António Graça Abreu parece detectar que em sua opinião há-de ser na pele da alma como essas tatuagens mandadas colocar pelos nossos soldados na pele do corpo garantindo amor de mãe ou eterno amor à Maria que, em alguns casos casou com outro Manel.
Primeiro! É ou não verdade que esses heróis negros de caçadores especiais se transformaram em verdadeiras máquinas de matar, neste caso a gente da sua terra, gente que provavelmente teria sido de seu convívio, vizinho ou mesmo amigo?
Segundo! É ou não verdade que uma boa parte dos combatentes do PAIGC ficaram daquele lado por acidente como, por acidente poderiam ter ficado do nosso, e que do nosso lado ficaram outros que pelos mesmos acidentes poderiam ter ficado de lá? Obrigados também, muitos, forçados, “politizados” à força, como aliás a maioria dos brancos que daqui saíram contrariados e apenas porque não puderam escapar, igualmente doutrinados nesta ideia de Pátria multirracial e pluri-continental e na afirmação de que bandidos às ordens de potências estrangeiras nos que riam roubar parte da Pátria.
Terceiro! Bem, este terceiro nem me parece que careça de considerações de tão anti-polémico que é.
Sabemos das façanhas desses soldados negros de forças especiais e do jeito que deram aos nossos objectivos quando realizavam coisas que não éramos capazes de realizar, e frequentemente cantamos tais façanhas como exemplo de portuguesismo genuíno na senda dos nossos heróis antigos. Que entre eles havia gente muito boa, também, é uma verdade que conhecemos pessoalmente e que acolhemos com amizade, mas tais andorinhas não fazem a Primavera.
Sabemos dos outros de menor proeminência, soldados milícias integrado nas Companhias ou em grupos especiais, oficiais de segunda linha com autoridade sobre populações e que por isso haviam ganho galões e uns patacos.
Éramos amigos de tal gente que considerávamos companheiros nas andanças das matas e do combate de tal maneira que a um, Rei local, tenente de segunda linha, emprestei três contos que nunca mais vi.
Mas também sabemos que a nossa ocupação nunca foi pacífica e que nem as suas culturas passaram para a nossa nem a nossa passou para as deles.
A teoria que nos faz crer que aquela boa e sofrida gente era portuguesa como nós e que morria em defesa da sua Pátria, Portugal, não tem ponta por onde se pegue num quadro que temos da nação portuguesa, da sua fundação (também em revolta contra mandos indesejados), da sua evolução histórica, das suas lendas, da língua que se foi formando, dos costumes e da cultura, tudo forjado contra invasores frequentes, a poder de pulo e de ânimo, tornando consciência coesa e unida o que era diferente em cada região do território, dando espaço a um povo a que orgulhosamente pertencemos.
E sabemos que desse caldo civilizacional não fazem parte os costumes, as crenças, as línguas dos povos da Guiné, a esta hora ainda muito dificilmente capazes de chamar Pátria em todo o seu território a esse poder que sai de Bissau.
Disse ainda e volto a dizer que
“Se há alguma coisa que diferencia portugueses dos restantes europeus é essa ausência de ódio e essa capacidade de dar as mãos sem grandes preconceitos, que atravessou o nosso processo colonial. Prova disso é que no fim, ao contrário do que aconteceu com outros, fomos capazes de manter respeito e amizade uns pelos outros e mesmo de deixar saudades.
No entanto, bom é que não exageremos ao ponto de concluir que somos santos e que não cometemos também algumas atrocidades.”
Mas falemos primeiro das que o Poder que se instalou em Bissau após Abril praticou sobre os seus próprios conterrâneos porque haviam ficado do nosso lado. Coisa hedionda, sem qualquer dúvida, impiedosa e assassina a um tempo, e absolutamente estúpida do ponto de vista político, na hora em que o novo País precisava mais de unidade, de concórdia, de lavar feridas e de criar condições para a construção de uma Pátria que abrigasse as diferenças no esforço colectivo para melhorar a vida das gentes, afinal, a única justificação para encetar e manter uma luta como aquela.
Mas mantenho o que disse no poste anterior
“Não conheço maus tratos que o PAIGC tivesse infligido a militares portugueses embarcados em Lisboa para os combaterem, ao contrário, sem colocar em dúvida que tivesse havido algum caso fora do quadro dos prisioneiros em Conakri, o que tenho ouvido são relatos de respeito e de bom tratamento na situação precária em que eles próprios viviam.”
A referência ao triste caso dos oficiais chacinados numa alegada missão de paz, é uma excepção que pela sua causalidade e pela trama que os levou àquele lugar para um encontro com uma facção do PAIGC, já qualificada como caso especial de desconfiança pela Direcção Central da luta, dificilmente caberá como responsabilidade do próprio PAIGC, sendo mais própria de bando em rebeldia, descoberto e com necessidades de se “lavar” a fim de evitar julgamento que, como calculamos, haveria de ter consequências funestas.
De resto, é hoje muito claro que tal manobra não passou de mais uma louca aventura de Spínola, igual a tantas outras que acabaram por se voltar contra nós.
Portanto, meu caro António Graça Abreu, sabendo como sabes que gosto muito de ti, nessa figura humana que escreveu aquele Diário da Guiné; que traduz e nos dá a conhecer tantos poetas daquele País longínquo e ainda misterioso; que é capaz de escrever ele próprio uma poesia de rara sensibilidade e lirismo, plena de busca do mistério humano, irás desculpar-me a ingenuidade e a marca de que falas.
De facto, como gente, cresci na revolta contra poderosos e ladrões que agrilhoaram este nosso povo durante séculos ao atraso, à doença, à crença num destino de besta de carga espoliada da sua força criadora para alimentar poderes e luxos de uns poucos e o lado mais negro de uma igreja que haveria de ser de esperança. Nessa forma de pensar e de agir percorri os anos sem necessidades de máscaras, nem de fingimentos, aguentando as consequências e sempre no prejuízo próprio. Isso porém não obsta a que aceite diferenças e que as tente compreender, nem obsta a que alimente amizades fora deste meu quadro de pensar, às vezes mesmo maiores do que dentro desse quadro.
Já te ofereci a minha casa mais do que uma vez e repito-o aqui publicamente, sem medos nem preconceitos.
Em relação ao Cherno Baldé de quem gosto frequentemente no que escreve, creio que o que digo atrás lhe servirá e quanto ao resto lá saberá as linhas como que se coserá.
E tu, meu camarigo grande e maior de alma ao que sei e tenho visto. A ti, acho que nunca ofereci casa mas é como se o fizesse, amigo de Montemor, do fado, da forcadagem, do bem comer e beber, das gentes, e nisso tudo meu irmão.
A ti te direi que colocas o carro à frente dos bois. Quer dizer, achas que ganharíamos a guerra se não tivéssemos perdido a política, com isso subalternizando a política à guerra e esquecendo que primeiro vem a política e só depois a guerra; que a guerra, qualquer guerra, as que se ganham e as que se perdem, são sempre consequência de determinadas políticas.
Esta nossa, já a tínhamos perdido há muito, quando africanistas inteligentes perceberam o caminhar do mundo e a necessidade de alterar o rumo da nossa politica ultramarina. Nota que nem lhe chamo colonial porque acho que de colonialistas tínhamos muito pouco na autêntica noção de colonial.
Quando Salazar gritou “para África em força”, coisa com a qual concordo em absoluto em face do horror do Norte de Angola, era tarde para arrepiar e ganhar a guerra do diálogo, a única saída verdadeiramente vitoriosa para todos.
Nunca, em nenhum dos meus escritos eu disse que havíamos perdido a guerra na Guiné. Que era difícil, sabemos que era, como era também para o PAIGC. Mas aguentaríamos na capacidade de sofrimento que nos caracteriza e que nos deu força para cruzar os mares do mundo, até que o regime em Lisboa dissesse, como já dizia, não há mais meios.
Por outro lado, Joaquim, deixa que te faça um reparo àquela coisa dos livros editados contra o discurso directo. O discurso que aqui se faz, exactamente como nos livros (fora dos relatórios) nunca é o discurso directo e ainda menos o discurso directo de cada um no tempo e no espaço em que vivemos as dores do combate. Eu também lá andei e conheci-me a mim e aos meus camaradas do corredor de Guilege. Sei bem como eram e como reagiam e por isso prefiro calar-me quando nos almoços oiço bravatas. Grande respeito tenho por eles e não alimento preconceitos por quem teve medo.
Abraços
José Brás
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9149: (Ex)citações (161): Fomos capazes de manter respeito e amizade uns pelos outros e mesmo de deixar saudades (José Brás)
Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2011 >
Guiné 63/74 - P9178: (Ex)citações (165): Agora já não há contenda, embora às vezes me pareça que para alguns, ela, a contenda, ainda perdure (Francisco Godinho)