domingo, 18 de dezembro de 2011

Guiné 63/74 – P9224: Memórias de Gabú (José Saúde) (18): A caminho do campo


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.

Camaradas,

 Esta catarse de memórias de Gabu - Guiné 1973/74 - que ultimamente tenho dado à estampa no nosso blogue - Luís Graça & Camaradas da Guiné - foram, de facto, uma alavanca primordial para remexer com o meu passado e, logicamente, deparar-me com a minha comissão militar em solo guineense.

Reconheço, e julgo apresentar-se como verídico, que cada momento relatado ao longo das “MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, nos chama à nostalgia. Todos, em geral, nos revemos em situações partilhadas e constatadas no meio onde coabitámos, não obstante o local da Guiné onde prestamos serviço. 

Aliás, a minha intenção foi, e é, partir para o além do conflito armado no terreno. Todos trouxemos outras recordações que jamais esqueceremos. E foi justamente nessa base de um oportuno auto-entendimento, que resolvi deixar escrito a minha (nossa) vivência naquele território, reconhecendo, contudo, que as narrações se enquadram em pleno com o nosso modo de vida como militares na Guiné.

Revejam, por exemplo, os quotidianos percursos das mulheres da tabanca a caminho do campo!


A caminho do campo


Uma jornada de trabalho

Gabú, ao longe, ainda se vislumbrava. O caminho, de terra batida, era com frequência palmilhado pela população. As mulheres, normalmente descalças, caminhavam em direcção ao campo. Com a trouxa à cabeça lá iam elas para mais uma jornada de trabalho.

O seu labor encorajava-me. Sentia prazer na sua firme determinação. Recordo que a mulher assumia-se como alavanca do modesto lar. Da tabanca. Era ela que cavaca a terra com desusados apetrechos, que semeava e colhia o milho, a mancarra (amendoim), a mandioca e que procurava os meios de subsistência.

O homem, deitado numa esteira descansava e… dormia. Esperava, quiçá, que o mango caísse de maduro que ir ao cimo da árvore colher a respectiva fruta já pronta a comer.

Comecei então a perceber que a mulher, com os seios de fora e um simples pano que prendiam à cintura e calçando um velho par de chinelos, às vezes, assumia-se como a matriarca do clã familiar.

Era comum vê-las no campo. Os estreitos trilhos do mato eram-lhes familiares. Algumas vezes me interroguei se a sua leveza no andar em veredas apertadas não se tornava perigoso? Uma mina anti-pessoal poder-lhes-ia ser fatal. Diziam-me que não. Voltava a interrogar-me: Porquê? Elas lá saberiam a razão que as movia.

Em Gabu existia um campo de minas que servia de protecção ao Quartel. As minas estavam colocadas em pontos estratégicos entre dois arames farpados. Não tive conhecimento de nenhum acidente pessoal. Uma vez entrou uma vaca para aquele espaço proibido, resultado: rebentou uma mina e a vaca, logicamente, morreu.

A população tinha conhecimento do perigo que aquele espaço reservado detinha e recusava, naturalmente, uma aproximação ao campo de minas.

Aquele êxodo constante das mulheres tinha, também, outros contornos: o caminhar para a bolanha. No tempo do arroz eram elas que assumiam o trabalho.

Numa análise feita à mulher guineense, estou convicto, e assumo, que o seu labor e entrega a uma sociedade que conhece no seu contexto um multifacetado número de etnias é e será sempre sobejamente reconhecida.

Esta é a minha singela opinião!


Mulheres na sua deslocação para o campo

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

3 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

A História daqueles 13 longos anos também se faz, e é importante que se continue a fazer, de relatos de pedaços da vida vivida naquelas terras distantes. E este post é bem a prova disso mesmo.
Há muito a desenterrar do baú das recordações. Mas como o tempo não perdoa, começa a ser tempo de vir muito cá para fora, pois amanhã poderá ser tarde demais e muito se poderá perder.
Há tanta história para contar, uma vez que as comissões não eram só tropa, só guerra e só arame farpado. Também havia vida civil em muitos sítios, também havia troca de experiências e de saberes.
Parabens ao autor.
Carlos Pinheiro
18.12.11

Manuel Joaquim disse...

Gostei. Venham mais do género.

Um abraço ao José Saúde

Hélder Valério disse...

Caro camarigo José Saúde

Fizeste bem em trazer este 'fresco' da vida no campo.

Afinal, fora as diferenças próprias dos contrastes culturais, deves ter-te apercebido, sendo alentejano, que não haviam assim tantas diferenças...
A mesma labuta, a mesma necessidade de lutar constante e bravamente para tirar da terra o sustento.

E tens também razão quanto ao facto de a maior parte de nós não ter podido ou não ter conseguido olhar e ver com olhos observadores o que se passava à volta.

Repara que através dos textos e comentários do nosso amigo Cherno eles, principalmente os pequenitos sempre tão cheios de curiosidade, não perdiam pitada na observação dos nossos usos e costumes e até classificavam os comportamentos.

Abraço
Hélder S.