sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10606: Blogpoesia (301): Na ka misti tchora mas, Guiné (Luís Graça)


Lourinhã > Cemitério local > 1 de novembro de 2012 > O que é a morte ? "Sete palmas de terra e um caixão" !?... Lembremo-nos, hoje, dia 2 de novembro,  de todos os nossos  mortos na Guiné, em especial os que morreram durante a guerra colonial, entre 1961 e 1974, incluindo os insepultos, e ainda os nossos ex-camaradas guineenses que foram sumariamente executados a seguir à independência. Tenhamos também um pensamento de solidariedade para com todas as vítimas da violência na Guiné, as de hoje e as de ontem.

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados





Videoclipe de Anastácio de Djens - N'cansa tchora guine - Produção: TVKlele. Um dos temas, o 4º, inseridos no álbum musical, não comercial, com videoclipes da TV Klele, distribuídos juntamente com a pasta do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, Guiné-Bissau, 1 a 7 de Março de 2008).

O álbum tem por título Guiné-Bissau, Terra de História e Cultura. A televisão comunitária TV Klele, do Bairro Quelélé, de Bissau, tem o apoio da AD - Acção para o Desenvolvimento. O tema musical deste videoclipe é fortíssimo. Mesmo não entendendo a 100% toda a letra (em crioulo de Bissau), não consegui ouvi-lo e vê-lo, pela primeira vez, em 2007,  sem me emocionar. Anastácio de Djens, que eu conheci por ocasião do Simpósio, em Março de 2008, era então uma das vozes mais belas e promissoras da nova geração musical guineense. Na altura escrevi: "Oxalá haja oportunidades de trabalho para ele desenvolver e dar a conhecer o seu grande talento, a sua voz, a sua sensibilidade, dentro e fora da Guiné-Bissau, país de grandes músicos e de grandes tradições musicais". 

Daqui de Lisboa, em dia de  cristão e não.cristãos lembrarem os seus mortos,  vai um grande abraço, amigo e solidário, para ti, Anastácio (de quem perdi o rasto), e para todos os jovens da tua terra que cantam e dançam a tua música. Um abraço também para a talentosa rapaziada da TV Klele. E, claro, para o Pepito, a malta da AD e todos os nossos amigos guineenses, grã-tabanqueiros ou (ainda) não... Eles são, todos eles, os melhores filhos da Guiné, os únicos que nos interessa conhecer... Os esbirros, os torcionários, os carrascos não são são guineenses, são apátridas, são iguais em toda a parte do mundo, em todos os tempos da história...

Vídeo (5' 25''): You Tube > TVKlele (2007) (com a devida vénia...)


Na ka misti tchora mas, Guiné (*) (**)

por Luís Graça

[No dia dos mortos
dedicado a todos os mortos da guerra colonial na Guiné, 
entre 1961 e 1974, 
de um lado e do outro,
e a todas as demais vítimas da violência 
que se seguiu,
desde a independência da Guiné-Bissau até hoje]

Quem disse que tu, Guiné-Bissau,  não tens futuro ?
Não fui eu, que pouco valho.
Não foi o dari,
que não tem seguro
de acidentes de trabalho.
Nem de saúde-doença.
Quem disse que o futuro não passa por aqui,
por esta terra verde e vermelha,
amarela e preta ?
Quem é que assim pensa ?
Não, não foi o macaco fantango,
que trabalha sem rede,

não tem cheta,
nem protecção social no desemprego,

muito menos na velhice.
Nem o desgraçado do macaco-cão
que vai à mesa do rico e do pobre
como se fora leitão 

da Bairrada,
frio ou quente.
Nem o mandinga, 

bom negro e melhor crente,
tocador de Kora,

Braima Galissá,
que se foi embora, 

ou o virtuoso do balafon,
o Kimi Djabaté,
todos em busca de outro tchon
livre do som da Kalash,

longe do poilão de Brá.

Quem disse que Deus, Alá,

e os bons irãs
não montaram morança nesta terra ?
Não foi o muntu.
Não foi o tucurtacar pangolim.
Não foi a rapaziada
do Bairro do Quelélé.

Não foi o fula nem o nalu.
Não foram as aves do Cantanhez,

que nunca tocaram o tambor da guerra.
Não foi o verde, o vermelho, o amarelo
da tua bandeira.
Não foi a estrela negra.

Não foi a Titina Silá
a guerrilheira.
Não foram os homens grandes do Gabu.
Não foi o tuga, 

nem foste tu 
nem fui eu.

Ah!, 

como está ainda bem longe, Cabral,
o ideal
por que lutaste e morreste,
uma vez, e outra vez,
tu e tantos outros combatentes da liberdade da pátria.
Nada que tu não saibas, Amílcar,
lá no Olimpo dos deuses e dos heróis,

ou no inferno dos que morrem de morte matada,
ou não soubesses já,
cá na terra dos homens,
que a História é fértil em exemplos de efeitos perversos,
de Revoluções que devoram os seus filhos,

de filhos que matam os pais,
de netos que renegam os seus avós,
de bisnetos que cortam o cordão umbical com os avoengos...


Tudo isto, para te dizer, Cabral
que eu ouvi os jovens do teu país cantar o teu hino,
no antigo acampamento Osvaldo Vieira (!),
nas matas do Cantanhez profundo,

(esse mesmo, o Vieira, 
que há quem diga que foi o teu Judas!),
com o mesmo fervor do que quaisquer outros jovens
noutras partes do mundo.

Pelo menos os teus sabiam a letra,
a letra escrita por ti,
e até a música que foi composta, 

eu não sabia,
por um obscuro músico chinês,
o Sr. Xiao He,
no tempo do Livrinho Vermelho
que muitos de nós leram
uns com paixão,  
outros com um sorriso de desdém...

Quem disse, afinal, que tu, Guiné, 

não tens futuro ?
Se não o foi macaco fidalgo,

nem a cobra verde enroscada no cocuruto
da palmeira de dendê,
foram os teus inimigos,
os de fora e os de dentro,
os teus filhos bastardos,

os que te beijaram como Judas beijou Cristo,
para depois te trairem e assassinarem,
te matarem como a um cão,
em Conacri, 
no chão francês.
Os teus torcionários, 
os teus esbirros,
os teus carrascos,
esses e os filhos bastardos de outras nações.
Os que dizem mal de ti, Guiné,

os que te usam e abusam,
os que te violam,
os que te querem comprar
a preço de saldo,

os agiotas,
e que te arrastam pela lama do tarrafo.
E que dizem que és um narco-Estado.

E que já nem tem soldados, rasos,
briosos e patriotas,
que te defendam até à última gota do seu sangue.
E que vives da caridade internacional.
E que já não tens fé, 

nem esperança,
nem voz,
nem lágrimas para chorar

os teus filhos, e são tantos!, 
que já morreram por ti,
ou que morreram contigo.

Que já não tens alma
nem salvação
nem pudor, 

Guiné.
E que tu, Cabral,  

pai fundador,
morreste como o Ché,
como o Cristo,
como o Luther King,
e está enterrado,
na antiga fortaleza colonial da Amura,
ao lado de heróis e de traidores,
na promiscuidade da história.
Que amargura!

Os teus jovens,
os teus músicos,

os teus poetas,
os teus artistas,
os teus artesãos,

os teus quadros na diáspora,
as tuas televisões comunitárias,
as tuas rádios locais,
o teu novo Lamparam,
o teu Bombolom digital,
e até os centros de saúde no mato,
são a prova da tua grande vitalidade,
engenho,
imaginação,
talento,
alegria,
nobreza,
criatividade,
espontaneidade,
afabilidade,
hospitalidade,
vontade de vencer o círculo vicioso
da pobreza,

e o parto da guerra e da violência,
monstruoso.
Do teu povo, Guiné,

virtuoso,
afável,
pobre mas nobre,
de Norte a sul,
dos Bijagós ao Quitafine,
de Iemberém ao Quelélé,

de Quinhamel ao Gabu,
de Lisboa a Paris.

Eu acredito em ti,
país-irmão,

povo-irmão.
Eu quero acreditar em ti,
Guiné,
eu quero remar,

na minha frágil piroga de cidadão do mundo,
de europeu e de português,
de igual para igual, 
contra a maré do cinismo,
inimigo tão mortal
como o mosquito do paludismo

ou o vibrião da cólera.

Eu acredito nas tuas mulheres,

que te levam às costas,
que suportam o teu céu,
e alimentam as tuas raízes,
essas mulheres empreendedoras e corajosas,
que montam fabriquetas de descasque de arroz,
ou que, em casa, fazem o seu óleo de palma
e cozinham a tua galinha de chabéu.

E ainda têm tempo 

para ir à pesca e ao mercado,
e com os restos do dendê fazer o sabão.
Que têm tempo para cuidar dos teus meninos.
E para lavar os seus pobres panos.
Essas mulheres que no Cacheu travam o avanço do Sará,
com as suas mãos frágeis cheias de sonhos.
Eu acredito,
no talento dos teus jovens, criativos,
Eu acredito ainda na força telúrica
e na generosidade dos homens e mulheres
que lutaram, por ti,
em Cassacá,
no Como,em Cadique,
no Boé,
no Morés,
em Gandembel,
em Guileje,
em Sara Sarauol,
no Fiofioli,
na Ponta do Inglês,
no Choquemone,
em Sinchã Jobel.
Com as armas na mão,

com as ideias na cabeça
e com sonhos no coração.
Para que tu fosses livre
e independente,
e fosses justa
e fraterna.
Uma Tabanca Grande,
grande como a bolanha de Bambadinca,
outrora verde e prenhe de arroz,
e aonde iam apascentar os búfalos.
Uma Tabanca Grande
onde cabe o Muntu e o Nalu,

os netos e os avós,
os fulas e os balantas,
os papéis e os bijagós,
os quatro pontos cardeais,
os homens grandes
e as mulheres grandes,

as tuas bajudas,
lindas como as as rosas das roseiras,
as tuas meninas
que um dia não precisarão da faca da fanateca.
Onde cabem os teus frondosos poilões
e as tuas vaidosas cabaceiras.

Onde caibam todos os teus lugares de culto,
as tuas balobas, 
as tuas igrejas 
ou as tuas mesquitas apontadas para Meca.



Para que os teus filhos, Guiné,
tenham a merecida paz,
todos os dias do ano,

todas as horas do dia e da noite,
a liberdade,
a justiça,

a tolerância,
o milho, o arroz e a mandioca,
o mafé e o chabéu
com que se mata a fome

e se sonha, acordado, 
e se dança,
de Farim a Bandim.
Enfim, a dignidade
a que os teus filhos têm direito
no seio da Mãe África
e do resto do mundo globalizado.

Ah!, 

a paz, 
a tão frágil paz
que leva tanto tempo a consolidar,
e o tão suspirado progresso que não chega,

a água potável que não chega,
a escola que não há,
o medicamento por desalfandegar,
o petróleo por jorrar,
... ou que é tão lento, 
tão desesperadamente lento,
ou só chega para uma meia dúzia de privilegiados,
a nomenclatura do poder e do dinheiro,

sem pátria, 
sem cor, 
sem rosto...

Mas para isso, Guiné. 

terás que fazer a ponte
com o passado,

a fonte 
da tua identidade.
Mas para isso não poderás ignorar
nem escamotear os marcos
(de sinal mais e de sinal menos)
do passado,
bem como as raízes das lianas
e dos poilões da tua guineidade.

Como te imploram os teus filhos,
não queiras chorar mais, Guiné!
N ka misti tchora mas!
Faz das tuas lágrimas
a força do macaréu
da tua revolta
e do teu ânimo
que te ajudarão a abrir a Picada do Futuro,
a construir o Novo Carreiro do Povo,
a Nova Estrada da Liberdade,

de Buruntuma a Fulacunda.
Que eu só desejo que seja
tão grande, larga e fecunda
como os teus rios míticos,
do Cacheu ao Cumbijã,
do Geba ao Cacine.
Ou tão límpidos e belos e selvagens
como o Corubal.

E que o Nhinte-Camatchol,
o grande irã dos nalus, 

te proteja,
Guiné, Tabanca Grande.

E o Deus dos cristãos, 
dos grumetes do Geba e da Amura, 
E o Alá dos fulas, mandingas e beafadas.
E os irãs dos balantas, manjacos, papéis, bijagós
e demais povos ribeirinhos, animistas,
que todos eles te inspirem 
e te protejam!


(*) Não queiras chorar mais, Guiné: Título pedido emprestado ao cantor Anastácio de Djens

(**) Sucessivamente revisto, aumentado e melhorado:

Iemberém, 1/2 de março de 2008 (visita ao Cantanhez)
Bissau, 28 de fevereiro e 3/7 de março de 2008 (Seminário Internacional de Guiledje)
Lisboa, 12/13 de abril de 2012 (Golpe de estado na Guiné-Bissau)
Alfragide, 10 de outubro de 2012
[a seguir ao episódio nº 25 da série "A Guerra",
realizado por Joaquim Furtado,
e que passou na RTP1],
Alfragide, 2 de novembro de 2012, dia (cristão) dos Fiéis Defuntos

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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10605: In Memoriam (132): A Cindinha, a esposa do bendandense Tony Teixeira, deixou-nos hoje, o seu funeral é amanhã, 6ª feira, dia 2, às 10h30, em Espinho, seguindo depois para Vidago, sua terra natal


Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > A Cindinha, esposa do nosso camarada António Teixeira (Tony).



Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > Da esquerda para a direita, a Alice Carneiro  (de costas), a Cindinha e, por detrás, dela o Pinto Carvalho e o Tony Teixeira. Na ponta direita, a Dina, esposa do nosso camarada, Jaime Bonifácio Marques da Silva, ex-alf mil pára em Angola (c. 1970/72)de quem já temos falado aqui no nosso blogue.


Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > Juntaram-se lá, na Tasca da Tia Augusta,  diversos casais para saborear uma boa caldeirada e uma saborosa sopa de navalheiras: eu e a Alice, a Joana e o Joana, o Pinto de Carvalho e a Zé, o Laurentino Marteleira e a Glória, o Jaime e a Dina, o Rogério e a esposa, o Tony Teixeira e a Cindinha (, um casal simpatiquíssimo de Espinho que tínha acabado de chegar, nessa semana, ao nosso convívío, pela mão do Pinto de Carvalho).



Lourinhã > Praia do Porto Dinheiro > 18 de agosto de 2011 > Almoço de aniversário da Alice > A Cindinha e o Tony Teixeira.


Lourinhã > Abelheira > 17 de agosto de 2011 > A Cindinha, na casa de um outro casal amigo, da nossa tertúlia da Louirnhã, os Marteleira (Laurentino e Glória).


Lourinhã > Abelheira > 17 de agosto de 2011 > A Cindinha, na casa de um outro casal amigo, os Marteleira, da nossa tertúlia da Lourinhã.

Fotos: © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados

1. Do nosso amigo e camarada Tony Teixeira recebemos esta dolorosa notícia: 

Enviado: quinta-feira, 1 de Novembro de 2012 1:25
Assunto: Notícia

Venho vos comunicar, que após um longo sofrimento, a Cindinha, minha mulher, partiu esta noite calmamente e com dignidade.

Quero aqui em meu nome e em nome dela, agradecer a todos os nossos amigos que acompanharam este longo caminho, que sempre estiveram ao nosso lado e que sempre nos acarinharam e deram força. Bem hajam.

O funeral será na sexta feira pelas 10,30 horas, na Igreja de Espinho, seguindo depois para Vidago, sua terra natal.

Tony


2. Às 9 da manhã de hoje, sexta-feira, transmiti à, pelo correio interno, à Tabanca Grande a triste notícia da morte da Cindinha, que foi comunicada pelo próprio António Teixeira:

Amigos e camaradas:

Mesmo "anunciada", a morte continua a ser um mistério e um momento de grande dor para quem fica do lado de cá: a família, os amigos... A Cindinha, que eu conheci há dois anos, nas férias de verão, na Lourinhã,  era uma senhora com uma enorme dignidade, que sabia a doença que tinha, e que era já uma réplica viva da "Pietá".

Eu e a Alice guardamos dela uma doce recordação. Conhecemos o casal através do Pinto Carvalho e da Zé, que também fazem parte da tertúlia de verão da Lourinhã. A caminho da Lourinhã, onde hoje vou fazer o "culto dos meus mortos", sou surpreendido com esta notícia do nosso amigo e camarada "bedandense" Tony Teixeira..  Quero transmitir-lhe a ele e à sua família a nossa solidariedade na dor e também a nossa admiração pela coragem e dignidade da sua companheira de uma vida. A Cindinha, que descanse em paz. Honraremos a sua memória.

Quanto à nossa Tabanca Grande, permitam-me que leve a notícia a todos e a todas, os/as amigos/as e camaradas da Guiné. Ao fim de 9 anos somos já uma "grande família" e a morte de um(a) de nós é também um poucochinho a morte de todos nós. 

Irei fazer quando regressar da Lourinhã um pequeno notícia para a série In Memoriam. A Cindinha merece, o Tony merece este gesto de ternura, solidariedade e compaixão da nossa parte.

 Luís Graça.



3. Mensagens de condolências que chegaram à nossa caixa de correio, vindas da nossa Tabanca Grande:

(i) José Vermelho (3h01)

Caro Luís Graça: Acabei de receber a seguinte mensagem enviada pelo António Teixeira. 
O Mário Bravo já me tinha dado, entretanto, a infausta notícia. (...).

(ii) António José Pereira da Costa (12h48)

Não conheci a Cindinha. Julgo que nunca foi ao blog.
De qualquer  modo leva-lhe o meu pesar.

Um Ab.


(iii) Rui Santos (13h06)

Meu amigo Luis Graça: Estas notícias não se agradecem, nem se esperam, mas sou obrigado a agradecer pois o infortúnio do Toni é para mim muito forte, e já lho comuniquei directamente.

Para ti um grande abraço, Rui Santos.


(iv) Fernando Sucio (15h06)

Os meus sentimentos, Tony, desejo-te muita coragem para enfrentares este doloroso momento.

(v) F. Gomes (15h34)

Embora não tenha conhecido a senhora, nem o marido, a dor de quem parte é sempre menor quando compartilhada. Infelizmente sei o que isso dói e quando não existem compartilhamentos, ainda dói mais.
Um abraço de solidariedade ao camarada Tony Teixeira e força daqui para a frente.


(vi) João José de Lima Alves Martins (18h31)

Luís Graça e Toni Teixeira:

Um grande abraço de solidariedade nestes momentos que são sempre dolorosos, mas pelos quais todos vamos passando ao longo das nossas vidas.

O bedandense 
João Martins.


(vii) Joaquim Pinheiro (22h14)

Cá do outro lado do Atlântico, os meus pesares!!!!
Joaquim Pinheiro da Silva e esposa

São Paulo / Brasil


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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10560: In memoriam (131): Nelson Fontes Ribeiro, ex-Alf Mil do COT 1 (Guiné, 1970/71)

Guiné 63/74 - P10604: Tabanca Grande (367): António Augusto Sousa Campos, ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2586/BCAÇ 2884 (Pelundo, 1969/71)

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano António Augusto Sousa Campos (ex-Soldado Condutor Auto da CCAÇ 2586/BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/71), com data de 29 de Outubro de 2012, encaminhada para o Blogue pelo nosso camarada José Firmino:

Apresenta-se:
António Augusto Sousa Campos, natural de Ventosa, Vieira do Minho.

Depois de ter ficado apto para todo o serviço militar na inspeção de 03/06/67, assentei praça em 30/09/68 no CICA 2 na Figueira da Foz.
Terminada a recruta, fui transferido para RAP 3, também na Figueira da Foz, para a especialidade de condutor auto rodas, terminada a qual em 26/01/69 fui colocado no 2.º GCAM no Lumiar, em Lisboa.

Mas por pouco tempo, pois no dia 04/03/69 depois de mobilizado para a Guiné pelo RI 1 Amadora, fui incorporado no batalhão 2884 e integrado na companhia 2586 que estava instalada em Braancamp, Setúbal e ai fizemos o IAO

No dia 7 de Maio de 1969 embarquei para a Guiné no Niassa (aquele paquete de luxo) e desembarquei em Bissau em 12/03/69.

Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, registado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979. Dados técnicos: comprimento: mais de 151 metros; arqueação bruta: c. 10.742 toneladas; potência: 6800 cavalos ; velocidade normal: 16,2 nós; alojamentos para 22 em primeira classe, 300 em classe turística, no total de 322 passageiros; nº de tripulantes: 132; armador: Companhia Nacional de Navegação - Lisboa. 
Fonte: Navios Mercantes Portugueses

Fomos para o Adidos onde estivemos dois ou três dias, não me lembro bem. A minha companhia ficou instalada em Nhacra algum tempo, não muito, depois fomos para Có onde nos juntámos à 2584, durante mais algum tempo.

A nossa missão era manter a segurança aos trabalhos da estrada Có - Pelundo, mais tarde fomos instalados no Pelundo, definitivamente, primeiro nuns barracões no centro do Pelundo, depois no antigo quartel. Frente a nós ficou a CCS no quartel novo, o quartel velho foi todo remodelado por nós, ai estivemos até ao fim da comissão em Janeiro de 1971.

Foto de António Gomes de Oliveira - 1970 
Com a devida vénia a Imagem Digital

Navio Uíge - Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses

Embarquei de regresso à metrópole, em 25/02/71, no navio Uíge, desembarquei em Lisboa em 03/03/71.

Depois do espólio feito, fiquei livre, com a minha missão cumprida!

Graças a Deus, ainda me encontro vivo para poder contar a minha história, o que já não acontece a muitos camaradas, do quais tenho muitas saudades e por quem peço a Deus sempre que posso.

É um enorme prazer fazer parte desta família, irmãos de armas e é sempre com muita alegria que nos encontramos todos em Maio no convívio do Batalhão 2884.

Até sempre, um abraço a todos.
António Campos
Soldado NM 16388768


2. Comentário de CV:

Caro camarada António Campos, bem-vindo à Tabanca Grande.

Foste apadrinhado pelo nosso camarada/tertuliano José Firmino do teu Batalhão, a que pertence, se não estou errado, o meu colega de trabalho Américo Pinto da Costa, que durante muitos anos organizou os convívios da malta da Companhia dele, se não mesmo do vosso Batalhão.

Não pondo de parte a prestimosa colaboração do camarada Firmino, podes (e deves) contactar directamente o Blogue utilizando o seu endereço luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com assim como o de um dos co-editores, eu e/ou o Eduardo Magalhães Ribeiro.

Se tiveres algumas memórias do teu tempo de Guiné, escreve-as, junta algumas das tuas fotos e manda para nós, para as veres publicadas, logo partilhadas com os teus camaradas de outros TOs, outras Unidades e outros tempos. A experiência contada de cada um de nós é uma peça que fará parte de uma memória futura colectiva de ex-combatentes, neste caso daquela pequena ex-Província Ultramarina, hoje país soberano e independente.

Se tiveres alguma dúvida "operacional" ou sobre os princípios em que se rege o nosso Blogue, não hesites em nos contactar solicitando os esclarecimentos que achares necessários.

A terminar a tua apresentação deixo-te um abraço em nome da tertúlia.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10556: Tabanca Grande (366): Eduardo Moutinho Santos, ex-Alf Mil da CCAÇ 2366 e ex-Cap Mil Grad, CMDT da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais" (Guiné, 1968/70)

Guiné 63/74 - P10603: Blogues da nossa blogosfera (57): Amante da Rosa, de Carla Amante, calou-se de vez, mas continua em linha, oferecendo-nos histórias deliciosas como a do primo Constant que foi morrer a Bissau, vomitando coisa preta depois de ter comido coisa branca...



Imagem do  último poste do blogue Amante da Rosa, criado e animado pela Carla Amante da Rosa, filha do nosso grã-tabanqueiro Manuel Amante. Por razões pessoais, familiares e profissionais, a Carla interrompeu aqui, em 21/9/2009, o seu blogue, criado em 2006. Pessoalmente, gosto de lá ir,  de vez em quando, para "surripiar" um ou outra pequena pérola literária sobre Cabo Verde e a Guiné (, terra natal da Carla). Como, por exemplo, este poste que tomo a liberdade de reproduzir de seguida, com a devida vénia.


29.5.06 > "O Primo Constant" e outras recordações da Guiné

"O primo Constant morreu com os pés de fora da cama, de tão grande que foi. Vomitou, em soluços negros, o fígado liquefeito de alguma maleita misteriosa que ninguém da família soube pôr o nome mas que o jovem médico da tropa portuguesa chamou solenemente, ao fim de uma pequena indagação à sua vida passada, de “resquícios da acção do quinino num fígado combalido pelo consumo exacerbado de álcool”.


Mas, para o avô Lindorff, o primo querido não poderia ter morrido do “diagnóstico disparatento desse doutorzinho de merda” e acabou que oficialmente e para os anais da família a razão do seu falecimento se deveu a mandioca crua que tinha ingerido horas antes de começar a bolsar uma gosma negra, qual criança acabada de mamar Quando depois de meia hora e quatro águas gaseificadas percebeu que o refluxo apenas piorava, meteu-se na station e descondongou de Bafatá até Bissau, onde chegou ao anoitecer, com cor de sobra de baguitch bem pangado, pronto para se acabar de desfazer em suor e postas de sangue coagulado, tão perfeitinhas, que mais parecia que paria sanguessugas pela boca. Acabou-se no catre do Hospital Central, tão fino e mirrado que somente os pés desalmados fora da cama, testemunharam o que era seu a seu dono.

Em mil novecentos e setenta e oito, quando a avó Luzia me contou a “estória” da morte pela mandioca, na cozinha da casa de Bissau, tentando evitar que eu abarbatasse bocadinhos do tubérculo assassino, com a lucidez dos meus sete anos, perguntei-lhe como podia ele, que comeu coisa branca, morrer vomitando coisa preta. Ela acabou por concluir em voz alta, reflectindo se calhar pela primeira vez no assunto, que o fígado do primo depois de viver anos alagado em bebida, ressecara como uma pedra que estala ao sol quente do meio-dia, iniciando daí uma viagem ao mundo exterior, para ver se cá fora, ainda se poderia afogar em vinho de palma.

E a mandioca, perguntei de boca cheia, e a mandioca… e a mandioca… respondeu, e sem concluir a frase, enxotou-me para o quintal, onde ainda levei a boca, um último pedaço criminoso.
Mas agora, escrevendo sobre o assunto, ocorre-me que o vinho palma também é branco, enfim, loucuras da minha gente!".

Escrevi este texto em Março de 2004 e somente há tempos tive oportunidade de o dar a conhecer à minha avó Luzia que não perdoou o facto de eu não me ter esquecido da cena da cozinha... Se ela soubesse como as recordações que tenho da minha infância na Guiné me são queridas… Ainda me lembro da sensação de adormecer na carpete da nossa incrível sala de visitas, pintada a quatro cores, onde imperava a enorme estante de mogno cheia de readers digest dos anos 40 e 50 e de bibelots de ocasião, comprados ou nas visitas a Lisboa ou nos Armazéns do Povo. 
Num canto, entre a segunda janela e o cesto de revistas brasileiras, ficava a pata de elefante oca que eu, às escondidas, me divertia a calçar. Penduradas nas paredes, as cabeças de gazela empalhadas que o tio Carlos tinha mandado de Angola, muito tristes e carunchosas, com os seus olhos de contas de vidrinho e que ainda assim, velavam o meu sono nas horas quentes da sesta… 

Também não me esqueço dos sofás, de napa vermelha, muito ao estilo anos 50 e da ventoinha do tecto que era ligada quando havia visitas importantes. Vês avó? Se não me lembrar desses detalhes, então não serei eu…


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Nota do editor:

Último poste da série > 24 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10429: Blogues da nossa blogosfera (56): Novas da Guiné-Bissau

Guiné 63/74 - P10602: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (7): 8.º episódio: Uma emboscada perigosa

1. Mensagem do nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), com data de 29 de Outubro de 2012:

Camarada Carlos Vinhal:
Obrigado pelas modificações e acrescentos que tens (isto do tu é mesmo difícil) vindo a fazer às minhas pretensiosas escrevinhadelas, e tal tem-me vindo a fazer aprender um pouco mais de português, e até estou de novo a consultar a Gramática elementar. Por vezes os dois pontos aqui e não além, alteram completamente a coisa. Obrigado e continua por favor.
Aí vai o 8.º episódio, pois que apesar dos poucos leitores mas dada a vossa disponibilidade, hei-de continuar até que os temas de acabem.

Abraços
Veríssimo Ferreira


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

8.º episódio - Uma emboscada perigosa

Mas nem tudo foi menos feliz e "tocaram-me" as lotarias várias vezes, como naquela em que, indo nós (a minha secção) a fazer um patrulhamento pelo circuito pedonal e até aos "carreiros" (a 3Km do quartel, estrada para Mansabá) local onde os mariolas costumavam "semear" minas, porque sabiam - hoje creio nisso - mas quem lhes dizia não sei, senão escarrapachava aqui, porque sabiam, repito, quando por ali iriam passar os reabastecimentos.

Saliquinhedim (K3) > Dia de ir buscar água a Farim, que se vê do lado de lá do rio. > A minha Secção. Em baixo: o 44, Gomes e Domingues; De pé: Mamadú, Samba, Soares, Kinta, Fernando Nascimento e eu.
Foto © e legenda de Veríssimo Ferreira

Pois aconteceu, que fomos emboscados, apesar de que e como era costume, a progressão estivesse a ser feita bem e como mandam as regras. De lá, vieram uns tiritos para cá... e de cá também nada meigos fomos.
É que não gostávamos mesmo... mesmo... que nos interrompessem enquanto trabalhávamos. Organizámo-nos depois em triângulo e avançámos mato dentro, e estávamos-lhes com uma sede !!!

Ficaram cientes que contra nós dez, a coisa piava mais fino. A certa altura porém, caíram-me umas folhas de embondeiro na cabeça (um tronco passou ao lado), desmanchando-me o penteado à James Dean, com risco do lado direito e tudo. Irritei-me tá visto, porque não gosto que me atirem coisas à cachimónia e olhei para cima.

Entretanto mandei parar a festa, mas do outro lado, não me ouviram decerto e as folhas continuaram a cair.

- Estes gajos são recrutas, não respondam - disse.

Rastejando, mato adentro lá debandaram gemendo. A minha teoria confirmou-se, pois que a cara dos "filhos duma mulher menos séria" estava desenhada no solo e enquanto isso fogueteavam para o ar, dando assim início à destruição da floresta, poiso de tanto macacóide e de alguns jagudis, ali a viver. Operação terminada, correra bem, continuámos...

Troço Bironque - K3, da estrada Mansabá - Farim, alcatroado no tempo da CART 2732 (1970/72)
Foto © e legenda de Carlos Vinhal

Às tantas segredam-me:

- Ali à frente, devem estar à nossa espera, vi passar uns gajos e são mais de vinte...

Estudada a nova situação, pensámos como resolver o conflito iminente... avançámos com redobrados cuidados e no sentido de os envolvermos numa teia donde não saíssem.

Após quase uma hora para percorrer 300 metros, portanto tal aproximação estava a ser enquadrada como nas mais vitoriosas tácticas militares, antes usadas, eis senão quando, estabeleço finalmente, contacto visual e sim eram realmente mais de vinte. Eram mais do dobro do que nós, mas para combatentes experimentados e conhecedores do terreno, a coisa estava destinada a ser "canja", e dali não sairiam impunes.

Último olhar que a neblina dissipava-se e vi que estavam desarmados. E porra... eram gorilas. Daqueles bem grandes. Também me viram... continuaram a comer...

E nós?

Retirámos tristes pelo falhanço do que esperávamos ter sido "manga de chocolate", mas com o sentimento do dever cumprido.

(continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10590: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (6): 7.º episódio: O quotidiano no K3

Guiné 63/74 - P10601: Parabéns a você (488): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10585: Parabéns a você (487): Jorge Fontinha, ex-Fur Mil da CCAÇ 2791 (Guiné, 1970/72) e Luís Marcelino, ex-Cap Mil da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10600: Vídeos da guerra (11): Sete anos no bacalhau em alternativa aos dois anos no ultramar: o filme A Outra Guerra (Portugal, 2010, 48')




"A outra guerra", filme documentário, realizado por Elsa Sertório e Ansgar Schäfer, em 2010. Trailer inserido no You Tube pela distribuidora, Kintop.

Vídeo (1' 09''): Alojado em You Tuve > KintopPT (2011) (Reproduzido aqui com a devida vénia)

"Uma viagem no Crioula recordando as fainas do bacalhau em plena guerra colonial. Nas décadas de sessenta e setenta, em plena guerra colonial, os jovens portugueses podiam 'oferecer-se' para a pesca do bacalhau para escapar à guerra colonial.  Através de uma viagem, hoje, a bordo do último lugre português da pesca do bacalhau – o Creoula –, três antigos pescadores da grande faina contam as razões das suas escolhas. Recordam as campanhas de seis intermináveis meses nas águas geladas dos bancos da Terra Nova e as duras condições de vida e de trabalho da sua juventude" (Sinopse: RTP 2).

Estreia: DocLisboa 2010. Estreia Televisiva: RTP2 (2011).

Ficha Técnica
Título Original: A Outra Guerra
Realização e Produção: Elsa Sertório e Ansgar Schäfer
Ano: 2010
Betacam Digital, PAL, 48 minutos
Emissão: RTP2 - 2011-01-23
Distribuição: Kinop.

Já aqui falámos deste filme que teve a sua estreia no Doclisboa2010. Passou igualmente na RTP2, e julgo que neste momento está disponível em DVD. Aqui fica, entretanto, uma iota da sua produtora e distribuidora, a Kinop, para quem se interessa pela apaixonante história da pesca do bacalhau e pela sua relação, em 1960/70,  com a guerra colonial. Sete anos no bacalhau equivaliam a 2 de Guiné, Angola ou Moçambique.

2. Nota da produção e realização do filme:

Partir para a guerra ou partir para a pesca do bacalhau? Já quase ninguém recorda que os jovens portugueses tinham nesta alternativa uma possibilidade de escapar aos perigos de um conflito militar em três frentes.

Os pescadores bacalhoeiros estavam sujeitos a condições especiais, particularmente duras, a uma disciplina muito semelhante à militar. Quando iniciámos este projecto, fascinava-nos, em particular, o dilema imposto pelo regime de os homens terem que escolher entre a guerra colonial e a pesca do bacalhau.

Iniciámos o trabalho de pesquisa convencidos de que muitos jovens do interior teriam escolhido partir para a pesca do bacalhau, por ela ter a vantagem sobre a guerra colonial de ser um trabalho remunerado e de gozar da auréola romântica e heróica construída pelo regime. À medida que nos envolvíamos na pesquisa de documentos e de testemunhos, fomos descobrindo que a pesca não tinha esse poder de atracção senão para aqueles que já estavam familiarizados com o mar. Terá sido porque o recrutamento se fazia apenas nos centros piscatórios? Terá sido porque aqueles que iam para a guerra colonial já sabiam que o que os esperava nos bancos do Norte era algo parecido com uma guerra? A nossa ideia de partida começava a ser abalada, o que fazia crescer ainda mais a motivação para fazer deste filme uma oportunidade de investigação «ao vivo». Pelos relatos que tínhamos ouvido sobre a pesca nos bancos da Terra Nova, parecia-nos tratar-se efectivamente da escolha entre duas guerras.

«Sem a guerra, não teria havido pesca do bacalhau», diz-nos um dos antigos pescadores do filme. Com efeito, nos anos 50, a PIDE andava pelas praias, a recrutar à força pescadores para os bancos da Terra Nova. Mas, quando rebenta a guerra colonial, e perante a escolha que lhes é imposta pelo regime, são os próprios pescadores que passam a procurar ser contratados nos bacalhoeiros para «fugir à guerra».

Neste documentário, tomamos como marcos o início dos anos 60 e o final dos anos 70. É um período de mudanças importantes na política portuguesa da pesca do bacalhau, que coincide com o início e o fim da guerra colonial em África e com um dos grandes fluxos de emigração também relacionado com a guerra e as suas consequências económicas e políticas: por um lado, a pauperização de largas camadas da população; por outro, uma deserção numerosa. Esse período irá prolongar-se até meados dos anos 70 com a queda do regime, em Abril de 1974, e o desmantelamento da frota bacalhoeira. Damos, no nosso trabalho, um especial valor aos contributos orais dos protagonistas, com toda a carga de subjectividade que eles trazem consigo. A história não se faz apenas a partir dos arquivos. É indispensável que no reviver desta parte da história portuguesa participem os actores directos que trabalharam a bordo dos navios bacalhoeiros e que felizmente ainda se encontram entre nós, hoje, para nos poderem transmitir as suas memórias.

(Fonte: Kintop > Filmes > A outra guerra > Nota de intenções) (Reproduzido com a devida vénia)





Cortesia do blogue de António Balau, Nazaré, imagens com palavras > Alguns dos homens da Nazaré "que foram ao bacalhau" (poste de 10/6/2009).  Legenda do autor: "Dos registos constam 912 pescadores da Nazaré, na Pesca do Bacalhau. No Centro Cultural da Nazaré, poderá visitar a Caixa da Memória, onde estão as fotos de alguns pescadores da Nazaré. Esta exposição pretende ser um tributo aos homens que foram ao Bacalhau. Fotos: "Portugal no Mar-Homens que foram ao Bacalhau", coor. Álvaro Garrido, 2008"

3. Depoimento de um antigo pescador do bacalhau, Jaime Pontes, publicado em 3/12/201, no blogue Caxinas a Freguesia:

"A Outra Guerra, será que o título condiz ? Eu estou de acordo e com certeza muitos dos que passaram por essa vida , também não discordarão, até porque ainda estão vivos muitos dos que passaram por essas vivências e,  como eu, sabem que era assim mesmo, não havia alternativa, ou guerra colonial ou pesca do bacalhau.

"Claro que quem vivia da pesca preferia ir para o bacalhau,  sempre se ganhava algum e tinha mais possibilidades de escapar com vida ,então entre as duas guerras se escolhia a menos má, eram tempos difíceis esses! Cada vez que os pescadores se juntavam para pedir melhores condições, logo o Sr. Tenreiro,  então Coordenador do Grémio do Bacalhau, o tal Paizinho dos pobres,  enviava a polícia DGS,  antiga PIDE,  para calar os pescadores e eu tenho dados concretos,  como uma vez estive quase para ser preso e mandado para o Ultramar , o que quer dizer frente da Batalha e com certeza mais alguns que nunca estivemos de acordo com as condições de então sobre o pouco que se ganhava.

Nessa altura havia duas propostas em cima da mesa para discutir com o Sr. Alves,  Inspector da PIDE/DGS do Porto, o Sr. Inspector da Pide pediu 3 pescadores que estivessem presos à tropa - era esse o nome para quem ainda não tivesse dado as 7 viagens que era de lei livrar a tropa, Então como se negaram os mais novos a ir a presença do Sr Alves,  comigo vieram dois dos mais velhos,  já livres,  o Tio Abraão do Coca,  já falecido, e o Zeca Varandas,e discutimos essas duas propostas para as novas viagens do bacalhau, coisa que o Sr. Alves nunca nos deixava fazer, era falar, o homem realmente era feroz,  diria mesmo escolhido para amedrontar,  mas fomos firmes e por dois dias discutimos,embora ele sempre dizia que os mais novos iam para o Ultramar,  o que quer dizer Guerra,  e os mais velhos presos. Isto era de mais, por aí se via que ele já nem sabia como nos virar. Passados uns 10 dias lá conseguimos a mísera vitória, que era mais 5 coroas como se dizia nessa altura em gíria por quintal de bacalhau e passar a Páscoa com as famílias e então a partir daí irmos com Deus para o bacalhau. Felizmente conseguimos isso, mas não sem haver uma luta feroz com o Sr. Tenreiro e a PIDE,  isso tenho eu gravado na minha Memória ...As minhas vivências do Bacalhau, de  1963 a 1969 !!!"
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Nota do editor:

Último poste da série > 7 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10128: Vídeos da guerra (10): Vida e obra dos Viriatos - CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69) (Parte II) (Henrique Cardoso)

Guiné 63/74 - P10599: (In)citações (43): Recordando coisas da Guiné (Manuel Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviada no dia 28 de Outubro de 2012 à caixa de correio do nosso Blogue:

Prezado camarada Carlos Vinhal,
Venho correspondendo ao teu incitamento de recordar coisas de Guiné...

Aproveito para partir mantenhas e responder ao Henrique Cerqueira, ao Mário Fitas e ao António Rosinha, que a minha prosa lhes mereceu atenção (P10554).

O capitão João Bacar Jaló começou a carreira militar nos Caçadores Nativos, em Bissau e Bolama. Dou a mão à palmatória: não comandava a CCaç 13, mas da Companhia de Milícias 13, de Catió, aquando dos eventos em Cufar. Fui recorrente nesse erro de simpatia.

Meto a minha colherada na desavença de natureza cronológica do NAVEG e do Mário Fitas e aproveito para espraiar memórias da Guiné.

A Operação Razia, do assalto final à mata de Cufar Nalu, ocorreu em Maio; a CCav 703 veio de Bissau para Catió, para a integrar. Nos referidos dias de Abril, andávamos com Os Fantasmas e outra malta, pela região de Buba e Incassol; o tabanqueiro e camarada comando João Parreira foi um dos feridos perto de mim, pelos estilhaços da bazucada turra que abriu as hostilidades, naquela sinistra madrugada de 20 de Abril de 1965.

Da Operação Razia fomos directos para a Fortaleza da Amura, sofremos a redução do período de descanso e voamos nos Dakota, para Nova Lamego (Gabu), de emergência, porque turras e companhia de boinas vermelhas, militares da República da Guiné, andavam por aquela imensa savana, pobre de arborização a meter-se com a tropa, a queimar tabancas, a roubar gados e a matar populações fulas. Uns andaram por Canquelifá, outros por Pirada, outros por Madina do Boé; a mim calhou-me a defesa e segurança à fatídica jangada do Cheche.

Em vésperas da rendição da nomadização em Cufar fixei a notícia da rádio de Argel, pela voz do Manuel Alegre, que Cabral convocara a imprensa internacional para dar a conhecer ao Mundo a iniciativa de limpar a Frente Leste de tugas, aniquilando-os ou empurrando-os, implacavelmente, pelo seu novo e poderoso armamento e lembro-me, como se fosse hoje, de ter premeditado o afundamento da jangada, em contingência, confiado na guarnição e no canhão sem recuo 10.7, instalado num jipe americano Willis, que o comando afectara à minha missão. A força que nos rendeu disparou-o contra um grupo inimigo, abateu dois, impecavelmente fardados, armados com duas “pachanga “ para eles e “costureirinhas” para nós (as pistolas-metralhadoras PPSH), despojaram-nos dos quicos, cintos, sapatilhas de ténis e de uma catana nova, decorada com as cores da bandeira bissau-guineense, que comprei ao novo dono pagando-lhe uma cerveja e uma lata de conservas de anchova, no estabelecimento de um libanês, na rua principal de Nova Lamego, que exibia a tabuleta publicitária da venda de “Bebida gelado”. Foi-me confiscada na mala do carro, na noite de 28 de Setembro de 1974, na barricada montada antes da ponte de Vila do Conde, enquadrada por um marinheiro, jovem e barbudo, que se borrifou para a minha justificação de a fazer circular comigo, como talismã, a indiciar-me “reaccionário da maioria silenciosa”.

A CCav 703 assumiu o sector de Buruntuma em 25 de Maio de 1965, salvo erro ou omissão, a render o Pelotão comandado pelo alferes Vinhas (CCaç 509 ou da CCaç Nativos 3?). Além fronteira via-se a testa duma força de blindados da República da Guiné, salvo erro Panhard´s, com os seus esguios canhões apontados à tabanca. O capitão Lacerda fez o reconhecimento e cuidamos de aprontar um potente fornilho, no eixo da aproximação, ribeirinho ao pequeno rio Piai, que se nos interpunha, um molho de granadas de morteiro e de bazuca, os detonadores conectados a um extenso fio condutor, ligado ao dínamo-explosor, que ficou no posto de comando. Constava que ele havia feito explodir uma ponte, à guarda do pelotão de Cavalaria mecanizada e do seu comando, decidido a opor-se ao avanço de uma força de blindados indianos, na sua agressão ao Estado Português da Índia, havia 4 anos. Caiu prisioneiro e teria sido sujeito de maus tratos extra, por tal valentia. Vivemos mais uma das incontáveis noites de insónia e de prevenção extrema, particularmente aos bazuqueiros, municiadores e remuniciadores, as reservas de granadas à livre disposição, que cobrimos com os panos de tenda individuais.

Nessa noite, a Natureza brindou-nos com o início da época das chuvas, diluvianas e trovejantes, relâmpagos prolongados, o céu em fogo e a dardejar raios e coriscos. Não obstante as propriedades de tanto metal de armas e munições a expor-se à sua atracção, dispersas quanto nós, Santa Bárbara terá orientado um deles a penetrar pelo cabo condutor eléctrico e a viajar directo aos detonadores do fornilho, que se consumiu, numa explosão medonha; o chão tremeu e, por momentos, ficou mais fogo que o fogo do céu. Amanhecemos pela enésima vez ensopados até à medula dos ossos e a tiritar, mais do desconforto que do medo, inseparável companheiro, esgotados pelo cansaço endémico e pela tensão e angústias das vigílias que precedem os combates; e logo nos sentimos mais soltos, ante a gratificante visão de uma enorme cratera, capaz de engolir mais que um dos blindados ameaçadores e pelo desaparecimento destes, sem nos dar combate. O reconhecimento coube à secção e ao furriel Simas que os topou recolhidos no quartel estrangeiro de Kandica, situado a cerca de 1,5 km de Buruntuma e de nós.

A informação posterior encheu-nos o ego. Ao ter conhecimento da vinda para Buruntuma da “cavalaria” de Bissau, o comando guineano da região mandou aqueles blindados para a fronteira, com missão dissuasiva. A fama dos novos vizinhos, a fazer a sua apresentação com a dantesca explosão duma “arma secreta” fê-los dar meia-volta. Tal cavalaria referia-se ao BCAv 705, apodado de Cavaleiros Marinhos e a esteira da sua fama vinha das constantes intervenções pelo Sul e pelo Norte e a economia das suas baixas. Sem embargo os bons comandantes das subunidades, companhias 702, 703 e 704, que a vinda do major Ricardo Durão, para segundo-comandante, veio potenciar, considerávamo-nos soldados afortunados, com mais sorte que valentia, eficientes como pilha-galinhas, pouco dados à lamechas e propensos à maroteira. Começamos a operar no Leste em interacção com a CCaç 727, destacada em Canquelifá e Ponte Caium, comandada pelo capitão madeirense Evónio Vasconcelos; a sua malta era muito fixe, tinha menos tempo de serviço, mas contava 16 mortos em combate. Dir-se-ia que cada tiro cada baixa.

Incluí a equipa da Soares da Costa que, em 1982, negociou o estaleiro e o património mecânico da Tecnil, na estrada de Santa Luzia. Diligenciamos pela contratação de alguns dos seus quadros, já transferidos para Angola. Seria o António Rosinha? Na ocasião, o engº Ramiro Sobral presenteou-nos com garrafas de vinho do Porto, de sua produção no Douro. Num espaço fronteiro a esse estaleiro jaziam as estátuas derrubadas em Bissau, escondidas pelo capim. Paguei 50 contos pela do navegador Nuno Tristão e obtive o respectivo BRE (Boletim de Registo da Exportação), destinando-a ao meu jardim, em memória patriótica. Começara o seu embalamento e apareceu um jovem, apresentou-se como Secretário de Estado da Cultura e anulou a transacção, a incumbência do ex-ministro, o angolano Mário de Andrade, ex-MPLA, alegando que as estátuas pertenciam ao património histórico da Guiné-Bissau. O memorial ao descobridor da Guiné continuou estendido no capim e os meus 50 contos reverteram para os cofres (?) do novel Estado.

O comandante Alpoim Calvão passou por situação idêntica, recentemente. Comprou a estátua do presidente americano Ulisses Grant, derrubada em Bolama, o negócio acabou anulado, mas a ele calhou-lhe ficar arguido de tentativa de contrabando. Que a nossa memória enferruje, mas devagar...

Manuel Lomba
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10203: (In)citações (42): Bombeiro ou Militar, há que optar (José Martins)

Guiné 63/74 - P10598: Agenda cultural (228): O livro "O Outro Lado da Guerra Colonial - Cantina Oliveira, Moçambique", de Manuel Francisco de Oliveira Ramos, foi apresentado em Torres Novas no passado dia 28 de Outubro de 2012 (Carlos Pinheiro)

1. Mensagem de Carlos Manuel Rodrigues Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), com data de 29 de Outubro de 2012:

Camarigo Carlos Vinhal
Ontem tive o prazer de assistir ao lançamento de um livro - "O outro lado da Guerra Colonial - Cantina Oliveira, Moçambique".
Entendi por bem fazer uma pequena noticia do evento, noticia esta que anexo. Apesar da noticia se referir a Moçambique e não à Guiné de que trata mais especialmente o nosso bloque, mesmo assim resolvi enviar-te a mesma com o fim de ser publicada se assim o entenderes que é possivel e que a mesma merece ser publicada.
Fica à tua consideração.

Um abraço
Carlos Pinheiro


“O outro lado da Guerra Colonial – Cantina Oliveira, Moçambique” 

Mais um livro sobre a guerra colonial, “O outro lado da Guerra Colonial – Cantina Oliveira, Moçambique”, foi apresentado hoje, 28 de Outubro de 2012, no anfiteatro da Taberna do Aspirante em Lapas - Torres Novas perante uma plateia agradável e interessada na obra.

É seu autor Manuel Francisco de Oliveira Ramos que foi Furriel Miliciano de Operações Especiais (Rangers), na 2.ª Companhia de Caçadores do Batalhão de Caçadores 4810 - Tete -Moçambique 1972-1974 e actualmente é Presidente da Junta de Freguesia de Lapas, localidade onde foi feita a apresentação da obra.

A obra foi editada pelo Núcleo de Torres Novas da Liga dos Combatentes e contou com o apoio da Câmara Municipal de Torres Novas na normalização, revisão e editing, coordenação e grafismo da mesma e ainda com a colaboração de vários camaradas de armas do autor e foi prefaciada pelo Presidente da Liga dos Combatentes Tenente General Chito Rodrigues.

Começou por usar da palavra o Comandante da Companhia a que pertenceu o autor do livro, o Presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes, o autor, o Vice-presidente da Câmara e a terminar o Presidente da Liga dos Combatentes.

Todos foram unânimes em elogiar o autor e a obra, tendo o Presidente da Liga tecido ainda algumas considerações acerca do dia de hoje, o Dia do Exército comemorado nas Calda Rainha, e feito a apologia do autor tendo também proferido algumas palavras sobre a guerra propriamente dita e ainda pela forma interessada como a Liga apoia este tipo de iniciativas visto que, na sua opinião, é o conjunto de livros sobre a guerra que um dia irá permitir que se faça a verdadeira história desse período conturbado. Nesse sentido e porque todos os contributos são importantes, deixou bem claro que a Liga já apoiou várias edições de livros e está preparada e interessada em continuar a apoiar futuras edições.

Mesa de honra. Da direita para a esquerda: O Comandante da 2.ª Companhia do BACÇ 4810; o autor; o Tenente General Chito Rodrigues, Presidente da Liga dos Combatentes; Dr. Pedro Ferreira, Vice-presidente da Câmara Municipal de Torres Novas; o Presidente do Núcleo da Liga dos Combatentes em Torres Novas e o orador, no uso da palavra, como representante da Junta de Freguesia de Lapas 

Encerrada a sessão, seguiu-se a habitual sessão de autógrafos do autor aos inúmeros livros que muitos dos seus amigos se prontificaram a adquirir.

Seguiu-se um beberete de confraternização entre os presentes.

Nota finalA Taberna do Aspirante é um edifício da Junta de Freguesia que foi recuperado e é composto por um anfiteatro onde se desenvolvem com alguma frequência manifestações culturais de vária índole, possui também um pequeno bar e outras instalações de apoio e mantém o nome original da taberna que foi tem tempos idos.

Carlos Pinheiro 28.10.12
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 30 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10595: Agenda cultural (227): Lançamento do livro "Goa - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas, dia 16 de Novembro de 2012, pelas 18h30 na Casa de Goa, em Lisboa (Maria Teresa Almeida)

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10597: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (19): A pobreza em chão manjaco


1. No Diário da Guiné, do António Graça de Abreu (AGA), há algumas referências à "pobreza" e à miséria" em que viviam as populações guineenses, nomeadamente  no chão manjaco... AGA tinha chegado à Guiné, há pouco tempo, tinha vivido em países ricos como a Alemanha... O contraste é duro, aos seus olhos, mesmo cotejando as duas pobrezas, a nossa e a deles...  Aqui se reproduz essa parte do Diário do AGA, com a devida vénia... (LG):


(...) Teixeira Pinto ou Canchungo, 27 de Junho de 1972

Fui dar uma volta pela terra e já ouvi uma enormidade de coisas sobre o lugar para onde me atiraram os acasos da sorte e da pouca fortuna.

Teixeira Pinto ou Canchungo é a quarta ou quinta maior povoação da Guiné, tem uma larga avenida central quase com um quilómetro e casas razoáveis estendendo-se para ambos os lados. Ao fundo situa-se a praça Dr. Oliveira Salazar. Isto é airoso e parece sossegado. À volta da avenida, para norte, ficam as tabancas ou moranças, centenas e centenas de casas pobres da população predominantemente de etnia manjaca, uma das muitas existentes neste território. Estamos no Chão Manjaco, a terra destes negros. Os miúdos pretos são uma ternura que dói. A carapinha, os olhos muito escuros, nus e sujos, as barrigas grandes, subalimentados, mas por dentro são iguais aos meninos loiros e morenos da nossa Europa. O mundo à sua volta é que os faz diferentes! (...).

(...) Canchungo, 5 de Julho de 1972 

Não é tempo de inventar coisa nenhuma, são horas de tudo descobrir.  Não posso falar, escrever sobre a guerra se não a conhecer, se não a viver até dilacerar o sentir, não posso falar deste povo, deste solo queimado se desconheço os negros e os brancos, a terra que pisamos.

Hoje, a primeira saída. Fui até ao Bachile, um aquartelamento uns quinze quilómetros a norte, na estrada para o Cacheu, junto às florestas que dão acesso ao Balanguerez e à Caboiana, zonas libertadas pelo PAIGC. Dois jipes, no da dianteira, um capitão e dois cabos armados, no meu, três homens desarmados. Fui à confiança, esta zona é controlada pelas nossas tropas, não há perigo. As populações da região, de etnia manjaca, parecem estar do nosso lado e os guerrilheiros vivem ainda longe, não atacam, não costumam atacar.

O que vi? Logo à saída de Canchungo, tabancas paupérrimas cobertas de colmo, negros indolentes, lixeiras, vacas esqueléticas, cabras, porcos passeando pela estrada. A savana africana, terras pobres para se cultivar o que quer que seja. O jipe do capitão atropelou um porco e seguiu em frente.  (...)

(...) Canchungo, 11 de Julho de 1972 

Faz amanhã um mês que estive de serviço como adjunto do oficial de dia no quartel do Depósito Geral de Adidos, na calçada da Ajuda, em Lisboa. Há quanto tempo isso foi! 

Precisava de comer um bom bacalhau ou um borrego assado, um cozido, um esplendoroso bife em qualquer parte do nosso Portugal mimoso. Parece que saí daí há três anos e ainda não tenho três semanas de Guiné.

Hoje dei comigo a pensar na grande Europa por onde já derramei algum suor durante um dos meus vinte e cinco anos de vida. Quero atravessar outra vez o velho continente, saltitar de país para país, falta-me conhecer Londres, Viena, Budapeste, Florença, Roma, sei lá, tanta coisa! Há-de acontecer. A esperança é uma menina com olhos de todas as cores.

De tarde, resolvi sair e dar uma grande volta a pé, sozinho pelas ruelas e tabancas de Canchungo, Guiné, África. Tanta pobreza! Só o que os alemães gastam para alimentar principescamente os seus cães de estimação - o que tanta admiração me causou quando dos dezanove para os vinte anos ancorei a minha vida em Hamburgo, no norte da Alemanha, - só esses marcos, moeda forte alemã, davam para alimentar milhões de crianças desta África pobre.

Mas isto não é assim tão simples. Os problemas do continente africano são muito complexos e é aqui que têm de ser resolvidos. Está quase tudo por fazer. Como passar de uma sociedade primitiva e agrária para estádios de desenvolvimento mais decentes? Há ventos que sopram quer do leste, quer do ocidente e ajudam quem? Essa ajuda é mesmo “ajuda”? Aqui na Guiné a agricultura é um desastre e funciona como a única fonte de subsistência e riqueza. Eles têm as bolanhas, os arrozais, mas são tão difíceis de cultivar! Hoje, nas tabancas vi os negros a comer. Fazem uma bola de arroz e metem-na na boca com a mão. Não têm facas nem garfos, fiquei impressionado. 


(...) Canchungo, 3 de Agosto de 1972 

Estou rico. No meu quarto tenho agora uma cadeira com encosto de lona, outra de pau e uma mesa quadrada sobre a qual escrevo. A Companhia 122 de pára-quedistas seguiu ontem para Bissau a fim de reforçar a segurança da capital nestes dias “tenebrosos” que se aproximam, com as comemorações do aniversário do PAIGC. Fui incumbido da difícil tarefa de guardar as chaves dos quartos dos alferes pára-quedistas, companheiros de degredo nas terras da Guiné. Vai daí, fui-lhes buscar duas cadeiras e uma mesa que tanto jeito fazem no meu quarto. Os páras regressam daqui a doze dias e então devolverei a mobília, ficarei de novo pobre.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > 1972 > Meninos (manjacos) a caminho da escola, em transporte militar.


Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados




Canchungo, 4 de Agosto de 1972 

Ontem a brincar com a minha pobreza, hoje a sentir a pobreza a sério, brutal, dilacerante. Como se já não bastasse a guerra!... 

É uma fatalidade nascer na Guiné, a terra é avara, o clima é mau, as populações também sofrem com o calor e as doenças.

Esta manhã Canchungo foi assolada por um pequeno tufão que passou sobre uma extremidade da vila e arrasou vinte tabancas, as casas de adobe e colmo das famílias negras. Meti-me no jipe e fui ver o que se podia fazer.

Um espectáculo impressionante. Os telhados das casas de palha ou de zinco voaram e despedaçaram-se, estilhaçados. Algumas tabancas ruíram completamente arrastando as pobres mobílias, os tarecos e as gentes. Felizmente não morreu ninguém, só três feridos graves que foram hoje evacuados para Bissau.

O que me arrepiou foi a atitude dos negros. Os homens tentavam salvar os restos dos haveres, as mulheres choravam, um choro feito de berros, de esponjar na lama, de gestos como eu nunca tinha visto. O corpo encarna a dor total, é o máximo da expressividade possível. Ao olhar para aquela miséria toda e para os negros transfigurados em desgraça, lembrei-me do que será a destruição de uma aldeia aqui perto, nesta mesma Guiné, pela guerra, pelo napalm, pelo fogo. São coisas que escapam à nossa compreensão. Só quem as vive pode entender.

Isto do tufão e miséria está mal escrito. É tudo muito pior do que as palavras possam dizer. Eu ainda sou “periquito” nesta guerra. Vi pouco, continuo a tentar entender. (...)


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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de junho de 2012 > Guiné 63/74 - P10025: Excertos do Diário de António Graça de Abreu (CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74) (18): A ponte Alferes Nunes, a CCAÇ 16, o Bachile, a 38ª CCmds, o Canchungo, o cor pára Rafael Durão, o futebol, a violência, a morte...

Guiné 63/74 - P10596: Memória dos lugares (194): Ilhavo, Costa Nova... a terra do meu amigo e irmão mais velho e, porque não ?, meu camarada, o arquitecto Zé António Paradela, que hoje celebra 3/4 de século de existência, antigo marinheiro da pesca do bacalhau, último representante de um povo que tem o mar no ADN!... (Luís Graça)


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Ao centro, eu e o Zé António; e à nossa esquerda, a Alice Carneiro e a Matilde (esposa do Zé António); à nossa direita, o Jorge Picado e o Jorge Paradela, o caçula do casal Zé António & Matilde. A foto foi tirada pelo filho mais velho, o Marco, que anda na Escola Superior Náutica Infante D. Henrique.


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > O nosso comum amigo, meu e do Zé António, e nossoo grã-tabanqueiro Jorge Picado, depois de termos trocado dois dedos de conversa... Outro amigo que encontrei nesse dia, foi o João Vizinho, outro ilhavense ilustre com casa na Costa Nova. Médico do trabalho, meu velho amigo e companheiro das lutas da saúde ocupacional. Também vi nesse dia, à tarde, lá para os lados da Bruxa, o José Manuel Bastos Cachim, que foi nosso camarada no BENG, no CTIG, em 1966/68.

O Jorge lá foi ter com a neta...da! Gostei de o ver, em boa forma!


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Os  antigos palheiros (cabanas de madeira onde os pescadores tradicionalmente guardavam as redes e os demais apetrechos de pesca), agira transformados em restaurantes e bares... ou inspirando a arquitectura das casas de veraneio. Um regalo para a vista. Um postal turístico. Um verdadeiro ex-líbris desta famosa estância de veraneio que pertence ao concelho de Ílhavo, terra de marinheiros, pescadores, tripulantes da marinha mercante...


Ílhavo > Costa Nova > 21 de agosto de 2012 > Uma das muitas belas janelas das casa de praia...


Vagos > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor I.  Fomos lá comer uma bela caldeirada de enguias.


 Vagos > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor II


Vagis > Praia da Vagueira > Restaurante Caravela > Largo  Parracho Branco > 21 de agosto de 2012 > Pintura a óleo, de António Carlos. A arte da Xávega. 1998. Pormenor III.  Fomos lá comer uma bela caldeirada de enguias.


Ilhavo > Gafanha da Encarnação Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012  > Um barco moliceiro, com o seu belo perfil fenício,  agora modificado para o transporte turístico de passageiros... Ao fundo, a Costa Nova, vista do outro lado da ria...


Ilhavo > Galhanha da Encarnação > Ria  de Aveiro > 21 de agosto de 2012  > A praia da Barra vista da zona portuária


Ilhavo > Gadafanha da Encarnação > Ria  de Aveiro > Cais acostável, junto ao largo da Bruxa >  21 de agosto de 2012  > Jovem em posição acrobática de mergulho para a água... Ao fundo, a Costa Nova


Ilhavo > Gafanha da Encarnação >  Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012 > A Bruxa, misto de tasca, café, bar, cervejaria e esplanada...


Ilhavo > Gafanha da Encarnação >  Ria  de Aveiro > Largo da Bruxa > 21 de agosto de 2012 > A Bruxa.... onde ao fim da tarde se vai beber uma bebida agradável, tipo sangria, feita de cerveja e vinho branco, acompanhada com os populares tremoços, azeitonas e amendoins... desfrutando a ria, as embarcações, o pôr do sol e dando dois dedos de amena conversa com os amigos... Gostamos de lá ir, o Zé António e eu mais as nossas caras metades (e os nossos filhos, quando nos podem e querem acompanhar).

Fotos: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados


1. No verão, em agosto, no nosso querido mês de agosto (que ninguém nos há-de roubar!),  eu gosto sempre, quando a caminho do norte, de passar pela Costa Nova e  gozar um dia  da minha existência na companhia da minha Alice e dos nossos amigos Zé António e Matilde Henriques, ele arquitecto, ilhavense, e ela, socióloga, lisboeta. Somos amigos, e velhos amigos, desde há mais de trinta anos. Eles moram habitualmente em Oeiras, Miraflores. Têm casa de verão na Costa Nova.

De seu nome completo José António Boia Paradela,  é também conhecido no Facebook onde tem uma página com o seu nome literário, Ábio de Láparo.. (Confesso que não sou muito "facebook...eiro", não acompanhando a sua página com a atenção que ele me merece; temos priviligeado, em contrapartida, o convívio, de prefreência à mesa...).

Na Costa Nova ele tem muitos amigos, alguns da infância e da adolescência como  o  Comandante Valdemar Aveiro, um dos últimos "lobos do mar" da Terra Nova, e notável memorialista dos tempos heróicos da pesca do bacalhau: dois dos seus livros já aqui foram objeto de recensão crítica no nosso blogue, há uns anos atrás......

O Zé António, como bom ilhavense, é, também ele, filho e neto de gente do mar, tendo passado, aos 16 anos, pela pesca do bacalhau, na Terra Nova... Foi verdadeiramente a sua tropa, a sua guerra da Guiné... Uma experiência, duríssima, de seis meses, que o marcou para sempre... Homem de múltiplos talentos, também ele acabou de escrever um livro - a pensar nos amigos -  a que deu o belíssimo título Uma Ilha no Nome: Crónica dos Dias Líquidos, e que eu tive a honra e o prazer de prefaciar.

O que o meu/nosso querido Zé António escreveu em 2007, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssimo e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados....

Como eu escrevi no prefácio, não se pense, todavia, que é uma narrativa passadista ou pessimista... No final, Irineu - um dos personagens da narrativa e, seguramente, um alter ego do autor - (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago, e que um ilhéu, um ilhavense, mesmo quando deixa a sua ilha, em busca de mundo, de mais mundo,  nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Passados cinco anos, o nosso Àbio [Boia]  de Lápara [Paradela], chegou muito naturalmente ao quilómetro 75 da sua autoestrada da vida..."Três quartos de século", comentou ele há dias, quando fomos ao encerramento do Doclisboa2012... Comentou ele, com uma ponta de orgulho, um outra de ternura, e uma terceira de desencanto... "Três quartos de século" é obra e vida, e  merecem ser comemorados, foi a minha resposta. Comemorar o nosso aniversário, todos os anos, "faz bem à saúde"... E eu sei que o Zé António gosta de se rodear da família e dos amigos nesse dia...

Estou, por isso,  seguro que ele vai gostar de ler estas palavrinhas que  hoje lhe escrevo, em dia de aniversário, e que vou publicar num sítio inesperado para ele e para os meus amigos e camaradas da Guiné. Mas este blogue não lhe é estranho, ele aparece aqui, mais do que um vez, não com um marcador próprio (a que não tem direito) mas através da referência "pesca de bacalhau"...

Ativo, como sempre, não tão superativo e produtivo como gostaria de continuar a ser   (,que a crise afeta e muito os gabinetes de arquitetura e planeamento, mas também a sua saúde aconselha já alguma moderação...), o Zé António, apesar de reformado (face à Segurança Social), continua a tocar o barco, o seu barco, e agora até a navegar por  mares nunca dantes navegados...

É homem de muitas paixões, para além da arquitectura e o planeamento urbanístico (de que foi um dos pioneiros entre nós),: o desenho, a música, a fotografia, a escrita, a multimédia.. Espero que ele tenha muita saúde e longa vida para poder mostrar os seus outros talentos, para além dos da esfera profissional.... Pessoalmente tenho-me deslumbrado e emocionado com as suas  criações em multimédia, algumas das quais já têm sido apresentados ao público, na Costa Nova...


Zé António:

Podia chamar-te, com justiça e propriedade, "meu amigo, meu irmão mais velho, meu camarada"... A ter um irmão, rapaz, que não tenho, podia ser alguém como tu, com quem a  gente aprende, com prazer, e convive, com naturalidade, por que és  uma pessoa culta, bem formada, com valores, vivida, afável, agradável, bem disposta, e não menos importante, humilde, que assume as suas origens, que é  amigo do seu amigo, alguém que  sabe também ouvir...

"Camarada" seria mais forçado: na realidade não fizeste a guerra (colonial), embora tenhas andado na "guerra dio bacalhau", servvindo outros senhores, lá pelos idos anos de 50 (1953?)... Algum camarada meu, militar, mais ortodoxo, poderia achar abusivo sentar-te aqui ao pé de mim, ao pé de nós, à sombra do mágico, secular e fraterno poilão da nossa Tabanca Grande.

Meu camarada é o Jorge Picado, mais eu sei que não vais ficar com ciúmes, meu amigo, meu irmão mais velho... De qualquer modo, tirando o Jorge Picado, quem é que dos ilhavenses foi parar à guerra colonial ? Claro, a malta da marinha de guerra, muitos dos teus amigos,  que  vocês só podiam ser duas ou três coisas na vida: pescadores, marinheiros, tripulantes da marinha mercante...

Não tenho aqui à mão o livro que me ofereceste, com uma bela dedicatória tua, e que está profusamente ilustrado, com sugestivas fotos do antigamente da vida da Costa Nova do Prado  (, imagem da capa acima)... Creio que o autor é o engº Senos Fonseca, cunhado ao que julgo do nosso Jorge Picado.  Com as inevitáveis limitações de tempo e de saber, quis apenas homenagear-te e associar-me à celebração dos teus bem vividos e bem merecidos  75 anos.

A Costa Nova, onde passo um dia por ano, é apenas um pretexto, e uma forma habilidosa de te pôr aqui na montra deste blogue que já não é meu... Por umas horas, que seja, tu mereces,  meu amigo, meu irmão mais velho, meu camarada de outras guerras... Mereces pelo que viveste, mereces pelo que ainda vais viver, mereceres pelo muito que tens dado a todos nós, da família aos amigos, dos clientes ao país...

Um xicoração apertado do Luís (+ Alice + Joana + João). Que tenhas um resto de dia feliz, com a tua Matilde e os teus "marinheiros" Marco e Jorge... Haveremos depois de beber um copo... à saúde, à  vida, à felicidade, à amizade, á fraternidade!... E para que nenhum  f.. da p... tenha um dia a lata ou a ousadia de troikar as nossas amizades, cumplicidades, memórias e afetos.

PS - Tomo a liberdade de reproduzir aqui o prefácio que escrevi, com muita ternura, para o teu livrinho, há cinco anos atrás.

2. Prefácio ao livro de Ábio de Lápara, Uma Ilha no Nome: Pequena Crónica dos Dias Líquidos. Lisboa: edição de autor, 2007, 77 pp. (Impressão: Critério - Impressão Gráfica Lda). Ábio de Lápara é o o pseudónimo literário de José António Boia Paradela, natural de Ilhavo, onde nasceu em 1937. Arquiteto, é o sócio-gerente da empresa PAL - Planeamento e Arquitectura Lda.

É num cenário pré-apocalíptico, mas perfeitamente verosímil, de destruição da orla costeira devida à progressiva subida das águas do mar, que se desenrola este conto – ou quiçá novela - , sob o título Uma Ilha no Nome… Prefiro simplesmente chamar-lhe narrativa.

Pela temática que lhe está subjacente – a morte, o mal escatológico, o pecado, a condenação – faz-me lembrar romances como A Peste, de Alberto Camus, ou o Ensaio da Cegueira, de José Saramago. Tem também ressonâncias da tragédia grega e, no mínimo, poderia dar uma belíssima peça do teatro português.

A originalidade (e o talento) do autor (ou não fosse ele arquitecto, de formação e profissão) consistiu em ultrapassar a questão do género ou ter criado um género novo, ao incorporar na sua narrativa o coro dos que se expressam através da palavra muda dos pichadores e grafiteiros das nossas cidades...

Eles funcionam, de algum modo, como o coro da tragédia grega, invectivando os deuses, causticando o poder, contestando a (des)ordem estabelecida… No palimpsesto, mil vezes escrito e reescrito, o narrador vais buscar pérolas e pérolas de sabedoria, que vão pontuando e secundando o discurso dos penitentes, reunidos na Assembleia Final do Tempo:
- A saudade, mano… a nossa última riqueza! Porque a lembrança é a fonte de onde parte toda a riqueza….
- We are born to loose everything, everytime and nothing at all.
- Não faças sempre a mesma pergunta. Apenas luta por uma resposta diferente.
- Mudei a passagem para ir para a outra margem, esperando que o futuro não seja uma miragem…

O que o nosso querido Zé António escreveu, ao quilómetro 70 da sua árdua, mas generosa e bem sucedida caminhada da vida, foi nem mais nem menos do que um belíssima e comovente regresso ao passado, à sua infância, à sua ilha, à sua origem ilhavense… É também a redescoberta da sua/nossa insularidade e da situação-limite que é a própria vida, cercada de sinais de fragilidade, de solidão, de morte e de finitude por todos os lados…

Além do narrador, há um alter ego – Irineu – ou mais do que um – seguramente, o Ábio – e uma plêiade de personagens que ainda têm ou tiveram carne e osso:

O Avô Materno de Ábio, mais conhecido como O Valente, sepultado na Praia da Tijuca; o Pai de Ábio, marinheiro com 12 anos; a Avó materna, a mãe Rosa… Sem dúvida, o núcleo da sua intimidade, do seu doce lar… Como o pai, sempre ausente e sempre presente, gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Mas há também outros homens e outras mulheres ilhavenses, recriados pelo autor, que fazem parte desta galeria de memórias: O Mestre Zé, marinheiro; o Manuel da América; o Sacerdote Manuel, cego; o Sant’Ana, merceeiro e chefe dos escuteiros; o Ismael, o poeta, amigo dos gatos, funileiro, contador de estórias; o João Bocanegra, mais conhecido entre o povo como o Trampolineiro, homem de muitas falas e poucos saberes; a Rosa Cravo, a oficiante do Templo de Vénus; a Joana Paciência, vendedeira de peixe, matriarca, mãe de muitos filhos espalhado pelo mundo….

Criado no matriarcado, cercado de mulheres e das suas recordações, Ábio faz, o entanto, da figura do pai a mais bela evocação da narrativa:

- Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde…

Narrativa, é o termo mais exacto: é uma tocante narrativa que se lê de um ápice e por onde perpassa a memória de um povo, de um colectivo: povo das matas costeiras, gentes da areia, povo das águas, homens do bote, pescadores e marinheiros da Terra Novo… Mas também a memória dos lugares da infância: o Vale Central, a Gândara, o Vale das Padeiras, a Laguna, o Mar, sempre o Mar, atraindo e repelindo as gentes tal como Pátio dos Ressoeiros atraía e repelia os adolescentes…

Não se pense que é uma narrativa passadista ou pessimista… No final, Irineu (re)descobre o anátema da ilha… no nome, mas também (re)descobre que faz parte de um vasto arquipélago , e que um ilhéu, mesmo quando deixa a ilha, nunca destrói as pontes, o cordão umbilical que o liga ao passado e ao futuro…

Zé António, ao quilómetro 70, já não precisavas de provar nada, nem muito menos de fazer jus à ironia queirosiana do Zé Fernandes em relação ao seu príncipe, o Jacinto de A Cidade e as Serras (“Fazer um filho, plantar uma árvore, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser um homem”…). Os teus amigos já conheciam e apreciavam o teu talento criativo, mas agora tramaste-os, deixando-os com água no bico, à espera da próxima surpresa…

Fica, desde já, marcada na agenda uma próxima paragem ao quilómetro 71. E até lá os meus duplos parabéns, ao jovem escritor e ao veterano corredor de fundo! Escusado será dizer, para mim e para todos nós, quanto é grande o privilégio de te ter como amigo!


[Fonte: Luís Graça > Blogpoesia > 23 de novembro de 2007 >  (Pré-)Textos (1) - Crónica dos dias líquidos]

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Nota do editor:

Último poste da série > 27 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10580: Memória dos lugares (193): O inferno de São Domingos, em março de 1972, ao tempo da CCAV 3365 / BCAV 3846, Os Quixotes (Bernardino Parreira / Plácido Teixeira)

Guiné 63/74 - P10595: Agenda cultural (227): Lançamento do livro "Goa - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas, dia 16 de Novembro de 2012, pelas 18h30 na Casa de Goa, em Lisboa (Maria Teresa Almeida)

1. Mensagem da nossa amiga Maria Teresa Almeida, da Liga dos Combatentes, com data de 29 de Outubro de 2012, com pedido de publicação do convite para a apresentação do livro "GOA - O Preço da Identidade - Invasão 50 Anos Depois", de autoria do Prof. Doutor Valentino Viegas:

Bom Dia Querido Combatente Sr. Carlos Vinhal
Espero que se encontre bem.
É mais um livro, que peço o favor de divulgar no Blog, um Livro de muito interesse, relativo à Invasão da Índia.

Junto envio o convite do Livro "GOA O PREÇO DA IDENTIDADE – INVASÃO 50 ANOS DEPOIS".

O Autor, é natural de Goa, é Combatente do Ultramar, em Angola, e condecorado com uma Cruz de Guerra.

Grata por mais este favor, envio o meu abraço, de imensa gratidão e estima
Maria Teresa Almeida


C O N V I T E

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10581: Agenda cultural (226): A banda musical portuguesa Melech Mechaya no 20º Festival Sete Sóis Sete Luas: seis concertos em quatro ilhas de Cabo Verde, 6-11 de novembro de 2012 (João Graça)